Detendo assassina II

Uma característica de R. O. era a paixão pela culinária. Consumidora exigente, também se dedicava à execução de receitas. Sua especialidade eram pratos da cozinha italiana, aprendidos com a avó nascida em Nápoles e a própria mãe, que por sua vez captara da genitora os segredos dessa arte.

Mas nem só de pastas - ou não propriamente destas - como ela se referia às massas na autêntica língua dos oriundi, eram constituídas as delícias com que costumava regalar seus convidados nas eventuais recepções a pequenos grupos de amigos. As massas eram para os dias rotineiros. Aos amigos, reservava as especiarias. 

Das ascendentes, herdara, ou com elas aprendera que uma casa deve ser tão auto-suficiente quanto possível em alimentos. Formaggi (queijos), prosciutti (presuntos), grassi (gorduras) não faltavam em sua despensa, tudo de fabrico artesanal, preparado por ela própria, que não repassava as receitas a ninguém (segredos de família - rebatia quando alguém ousava perguntar-lhe sobre detalhes do fabrico). Também dispensava ajuda de terceiros no afazer dos produtos. A matéria prima era garantida por um sítio de poucos hectares que possuía em município próximo, cujo nome se recusava informar "para evitar espionagem comercial" - dizia com ares de riso. Era para lá que se deslocava - informava - quando se ausentava da cidade por dois ou três dias. Ali, - revelava prazer quase salivante quando mencionava o fato - criava pequenos animais que  só eram abatidos "quando estavam no ponto para fornecer um pernil de qualidade ou gordura encorpada", esta, dentre outras serventias, usada como conservante. Leite, hortaliças, também vinham de lá. Ao comentar sobre o sacrifício dos animais, dizia, suspirando, que sentia enorme pena e compaixão em mandar abatê-los (um empregado cuidava disso). Mas...se o destino deles era mesmo o de morrer um dia, que pelo menos servissem para alimentar humanos e outros animais também, visto que certas partes não eram aproveitadas na execução de seus pratos.  

As carnes (salames, presuntos, mortadelas) eram servidas defumadas e com dose abundante de condimentos. Em recipiente de prata, generosa porção de uma gordura de aspecto e sabor um tanto diferenciados em relação à de tipos comumente encontrados. Servia para incrementar o sabor das carnes e dar-lhes maciez, como ressaltava a anfitriã.

Os queijos também se apresentavam gordurosos e, no caso de alguns, havia pedaços muito pequenos de carnes encravados.

O líquido servido, invariavelmente eram vinhos tintos encorpados. Alguns de aspecto licoroso eram servidos no final, como digestivos. A "bebida dos deuses", despejada nas taças diretamente de garrafas sem rótulo, dizia mandar vir da Itália, diretamente "de vinícolas familiares, portanto fora das gôndolas e prateleiras do circuito comercial".  Os convidados sentiam-se gratificados e envaidecidos com o privilégio da exclusividade. Alguns, mesmo estranhando o sabor, não reclamavam, tamanho era o temor de revelar ignorância no tocante aos requintes da gastronomia.

- Paladar refinado tem que ignorar cheiros nem sempre agradáveis - dizia, fazendo analogia entre o odor de algumas de suas especialidades com o de certos tipos de queijo. Afora a justificativa, falava como se estivesse demonstrando didatismo altruista. 

- Todos devem socializar seus conhecimentos com outros e não guardá-los egoisticamente só para si, para seu deleite exclusivo - acentuava o namorado, repetindo o que dizia ser uma máxima aprendida com a própria R. O.

As recepções, entravam na pauta de conversas dos convidados tão logo deixassem a casa da anfitriã. O cardápio e a sofisticação que cercava os encontros passavam a ser assunto nos dois ou três dias seguintes. Ouvintes invejosos e alvo das esnobações eram familiares, colegas de trabalho, frequentadores de salões de beleza e de consultórios médicos.
Alfredo Duarte de Alencar
Enviado por Alfredo Duarte de Alencar em 15/06/2013
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