Ageu e as Ruínas do Mundo.

“E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia; e foi-lhes dado o poder de matar a quarta parte da terra, com espada, e com fome, e com peste, e com as feras da terra”. Apocalipse, capítulo seis, versículo oito.

“O senhor não dorme por que tem medo de não acordar, painho?”. Essa pergunta ecoa em meus ouvidos todas as noites, todas as longas e insones noites. Quanto tempo faz isso? Quanto tempo eu não escuto sua voz? Quase quatro anos. Hoje o tempo não faz mais sentido, tornou-se um doloroso suplício, é uma pena capital onde a punição é estar vivo. “Painho, vamos dormir.”; “Painho, o senhor não dorme?”; “Mamãe disse que o senhor não dorme por que tem medo de não acordar. É verdade, painho?”. Ah, meu filho querido, quanta saudade! Mas, como dormir? Eu pergunto. Como? Como dormir quando o que há de mais hediondo o espreita? Só aguardando um pequeno descuido para te levar ao inferno. E por mais que eu tenha fugido dele, do inferno, nada adiantou, ele me encontrou e me encurralou. O horror emergiu das profundezas como lava vulcânica, espalhando seus odores pútridos por toda a superfície. Maus cheirosos, asquerosos, famintos e vis, eles devoram os incautos, aumentando mais e mais seu inominável exército. Uma horda de assassinos que se multiplicam como se brotassem da terra, feito erva daninha, destruindo tudo. Eles são os gafanhotos, e nós, humanos sadios, a desprotegida lavoura.

Meu nome é Ageu, fui um conhecido médico patologista, um brilhante cientista, hoje sou um solitário sobrevivente. Tenho quarenta e três anos. Refugio-me dentro do que sobrou do condomínio de prédios, de três andares, em que eu residia antes do início do caos. Faço deste monte de entulhos minha fortaleza; meu castelo. Aqui, nas ruínas do mundo, eu sou o Rei.

“Eu não dormia para tentar de proteger, meu filho! Não consegui salvar nem a ti nem a tua mãe. Falhei! E viver com essa culpa é o flagelo que carregarei enquanto eu viver ou até descobrir a cura dessa monstruosa enfermidade.” Repito isso todos os dias, durante os minutos em que a luz se esvai dando lugar às trevas, ou na hora em que as lembranças mais medonhas me abarcam. É o meu mantra, minha oração. Descobrir a vacina para o vírus é o meu Deus atual. É o meu objeto de veneração. É só nisso que tenho fé. É essa esperança que me faz viver; lutar. O Outro, o Todo-Poderoso, me abandonou há muitos anos, por isso o desprezo. Vivemos no mundo onde o diabo existe, mas, Ele não! Ele não passa de um conto da carochinha, sem graça e sem final feliz.

A insônia começou quando descobri a maldita doença. Lembro-me de todos os detalhes daquele longínquo dia. O ano era 2013, no mês de julho, precisamente quinze de julho, aniversário de meu filho. Naquele dia ele fez sete anos. Foi seu último aniversário. Eu estava no laboratório examinando uma lâmina com células de um indivíduo supostamente morto em um acidente de carro, quando ele se encaminhava, justamente, para o hospital, por estar infectado por uma estranha moléstia, no entanto, as células pareciam ativas e, por mais absurdo que parecesse, produziam energia. Daquele dia em diante nunca mais dormi em paz.

Meu estoque de alimento está se esgotando. Duas latas de ervilhas, três de milho, uma de feijoada, duas conservas de picles, uma de azeitonas, quatro de salsichas, cinco quilos de sal e um quilo e meio de carne salgada. Carne de rato. A doença não acomete animais. Vivo em uma cidade longe, muito longe, do campo, animais por aqui só mesmos os de estimação, e estes estão praticamente extintos. Nos dois primeiros anos, após a doença se espalhar, a carne nas cidades desapareceu, o jeito foi matar a fome com os fofinhos, mimados e peludos animais domésticos. Não vejo um cachorro ou um gato há quase dois anos. Que saudade do sabor de um cão cozido! Podia ser mesmo um poodle, não me importaria, mesmo eles sendo só couro e osso depois de tosados, uma sopa de poodle é muito melhor que a detestável carne destes imundos roedores. Carne amarga e fedorenta! Contudo, é o que resta de proteína animal, salvo os ovos de urubu e as próprias aves necrófagas, que vêm aumentando sua população geometricamente, construindo seus ninhos por todos os pontos da cidade, no tempo que a raça humana diminui a passos largos. Vai uma omelete de ovo de urubu aí? Ainda não tive a devida coragem para apreciar esse cardápio. Quem não tem cão, nem gato, come rato! Essa é a regra para quem vive aqui, nestes destroços de civilização. E, para o bem, ou para o mal, esses bichos escrotos ainda existem de monte. “Bichos escrotos; saiam dos esgotos, bichos escrotos; venham enfeitar, meu lar, meu jantar, meu nobre paladar!” Visionários. Tempos difíceis. Duros.

A água, - mesmo com o lançamento de bombas nucleares durante o auge do conflito -, por enquanto, ainda não é problema, isto é, se estivermos perto de uma fonte natural, um lago, um rio, um minadouro. Os reservatórios estão escassos. Tenho em meu apartamento uma caixa d’água de 500 litros, - fora as garrafas e os médios e pequenos vasilhames -, que está chegando ao fim, durará três ou quatros dias no máximo, sendo muito econômico. Devo enchê-la. A temperatura da terra aumentou drasticamente, sobretudo esse ano, por conta disso, a água é consumida rapidamente e se tornará uma moeda valiosa no futuro; se houver futuro; se houver com quem negociar. Não vejo um não doente há sete meses. Embora, de um mês para cá, até a água começou a se deteriorar. As chuvas têm trazido uma água impura, com um gosto detestável, que causam cólicas e diarreias terríveis. Há alguns quilômetros do meu prédio, num antigo parque, existe uma cisterna, e era de lá que eu trazia toda a água que eu consumo. Para meu infausto, ela foi contaminada pela chuva tóxica que tem caído ultimamente. E do jeito que as chuvas são constantes e perduram por dias, não tardará em contaminar também os rios e lagos de água límpida.

Aquelas células trabalhando dentro de um tecido necrosado espantou-me. Passei o resto da noite pesquisando aquele assombroso achado. Liguei para minha mulher avisando que não voltaria para casa naquele dia. Brigamos. Trocamos ofensas e insultos. Ela estava doente, mas eu tinha que trabalhar. Falei com meu filho, desejei felicidades a ele, desliguei o telefone e voltei ao trabalho. A televisão ligada, acoplada a um suporte no canto superior esquerdo do laboratório, no volume baixo, mostrava mais uma queda de meteorito. Os últimos meses do ano de 2012 foram muito agitados pelas especulações do fim do mundo, diziam que a civilização dos Maias teria a data exata em que o planeta seria aniquilado. No dia marcado, no soturno calendário, nada de extraordinário aconteceu. Porém, em 2013, já nas primeiras semanas, alguns episódios começaram a assombrar a população mundial. Asteroides colossais passaram raspando nossa atmosfera, sem nenhuma previsão por parte das instituições espaciais, sendo detectados somente há alguns quilômetros de nossa órbita, felizmente, nenhum deles atingiu o planeta. Maremotos, tsunamis, terremotos, vendavais, mortes inexplicáveis de milhões de cardumes de peixes, incêndios em florestas, epidemias de doenças extintas, pragas dizimando plantações, tudo isso acontecia nos quatro cantos do globo. Os religiosos mais fanáticos, os exotéricos, os loucos e os aproveitadores de plantão, já anunciavam o fim do mundo. O apocalipse era evocado em prosa e em verso por falsos e jactantes profetas. Contudo, o mundo ainda não acabou.

“O senhor não dorme por que tem medo de não acordar, painho?” Despertei de um salto. Cochilei sentado no sofá olhando por um buraco, onde um dia foi janela, a noite que se arrastava abafada e úmida. Os resquícios do supermercado, em frente ao meu destruído recanto, recebiam os primeiros raios solares. Amanhecia. Ontem não tive muitos contratempos. Apenas dois malditos andadores conseguiram me farejar, na hora que desci para caçar alguns ratos. Consegui me esconder e não precisei confrontá-los. Isso é o que sempre faço, quando posso, evito o combate e me escondo. Desta forma sobrevivi todos esses anos. Vi muito valentão gastando suas munições e seu fôlego para serem infectados ou mortos pouco depois. O corpo a corpo não é o mais indicado para se livrar destes seres repugnantes. Eles são lentos e parecem estúpidos, é só aparência. Também são numerosos, farejam carne humana viva a quilômetros de distância e são incansáveis. Camuflo o meu cheiro, pendurando em mim, pedaços maus cheirosos dos corpos destes zumbis de merda. Assim consigo confundi-los e ganhar tempo para a fuga, além de poder me aproximar, quando desejo, e arrancar suas cabeças com meu facão. Não corro o risco de contaminação usando esta estratégia, hoje o vírus é exclusivamente transmitido pela saliva do infectado em contato com os fluidos corporais da vítima na hora da mordida. A transmissão é imediata. No início de tudo, antes dos primeiros doentes começarem a vagar pelas ruas a procura de alimento, o contagio se deu pelo ar, como uma simples gripe, e ocorria um período de prostração, antes da completa corrupção do organismo. Os vírus vieram flutuando, carregados por nuvens nefastas, surgidos não se sabe de onde, contaminando um quarto da população mundial. Esses primeiros hospedeiros viraram uma espécie de incubadora para o aprimoramento da nano partícula patogênica.

Depois de horas debruçado sobre o microscópio, descobri uma pequena partícula proteica contendo RNA, envolto por uma membrana lipídica. Não tive dúvidas de ter encontrado o menor parasita que existe; o vírus. Um vírus completamente desconhecido, nunca catalogado. Ele era o responsável pelo funcionamento celular em tecidos mortos. Aquilo era intrigante e paradoxal. Registrei tudo que descobri e passei para um pen drive. Minha intenção era informar meus superiores sobre a extraordinária aberração. Infelizmente não consegui. Os dias subsequentes ao meu grande achado foram de total terror. Desencadeou-se uma sucessão quimérica de fatos, que mudaria completamente a história do mundo. Milhões de pessoas em todo o planeta foram infectadas por uma desconhecida e avassaladora doença. Os sintomas se confundiam com o de uma gripe, entretanto, durante a evolução da moléstia, os enfermos eram acometidos por uma catatonia aliada a uma degeneração cutânea de odor mefítico, culminando para um estado de letargia profunda e terminal. Para depois despertarem famintos e sedentos. Movidos por um sortilégio, como se acordados pelas trombetas do inferno, eles levantaram do leito de morte, em todo o planeta, simultaneamente, e vagaram pelas ruas a procura de alimento. Começaram os primeiros ataques, e com eles, o início do fim da espécie humana. Com o aparecimento desta súcia de bestas-feras, os governantes das potencias mundiais acusaram-se mutuamente, afirmando que a estranha infecção viria de armas biológicas, e se atacaram sem dó nem piedade. Quarentenas e toques de recolher foram acionados. Exército na rua, correria, anomia, saques e mortes; muitas mortes. Nem assim a corja de mortos-vivos diminuiu, ao contrário, aumentou a olhos vistos. Tranquei-me com minha família em meu apartamento e fiquei de vigília durante quase três meses. Com o tempo o cansaço ia definhando minha resistência. Eu tinha cochilos intermitentes e agitados. Até o dia em que dormi profundamente. E nesse dia perdi minha mulher e meu filho para essa amaldiçoada doença. Eles, os Zumbis, entraram pela varanda e atacaram. Quando despertei, já era tarde demais para salvá-los, o pior já estava feito. Os perversos agiam como que guiados por uma única e perniciosa consciência, instintivamente eles selecionavam suas vítimas. Matavam os fracos e contaminavam os mais fortes. Minha esposa estava debilitada por uma neoplasia maligna, seu estado de saúde era grave, e por isso foi trucidada. Meu filho por ser macho, saudável e jovem, foi infectado. Numa atitude insana e violenta parti para cima daqueles monstros e degolei e esquartejei três deles com o meu facão, e estraçalhei algumas cabeças com minha espingarda calibre 12, conseguindo fugir para o andar de cima, já completamente desabitado e em ruínas, e me fechei no que restou de um apartamento, onde vivo até os dias de hoje. Naquele dia eu gritei pedindo a ajuda Dele. Ajoelhei, orei, chorei, implorei. Ele nada fez. Foi o dia do rompimento definitivo. Este lugar, com o passar do tempo, virou meu quartel general e laboratório. Só não enlouqueci, se é que não estou louco, pela ferrenha convicção que vou descobrir a cura para esse vírus.

Eu os caço uma a duas vezes por mês. Faço retalhos de seus corpos e estoco. As partes que não me são uteis eu incinero. O futum de decomposição já não me nauseia mais. Acostumei-me. Do mesmo jeito que um dentista não sente mais o enjoativo e amedrontador odor de eugenol de seu consultório, eu não sinto mais os miasmas que me rodeiam. Calejei meu olfato.

Hoje irei atrás de água e alimento, vou ter que ir mais longe desta vez. Partirei para o pequeno rio que corre próximo a carcomida Universidade Federal, numa direção completamente oposta a que eu sempre seguia. Vou encarar um terreno desconhecido, talvez perigoso, todavia, quem sabe, não encontre um peixinho para saborear no jantar. Tenho que aproveitar o dia de sol. Com a elevada temperatura, - um dia considerado ameno, nos dias de hoje, marca quarenta e três graus Celsius -, muitos dos zumbis não saem de suas tocas para vagar. A pele adulterada de seus corpos é altamente sensível ao calor, o que faz com que eles fiquem entocados em dias sem chuvas, só saindo para caçar durante a noite. Quando estão famintos e impossibilitados de sair, eles devoram-se uns aos outros, os mais fracos servem de alimentos para o mais fortes. Eles não são tão tolos como parecem ser e, a cada ano que passa, tornam-se mais espertos e mais rápidos.

Sei que existem outros como eu espalhados por aí, inclusive, reunidos e somando forças. Mas, não posso abandonar meu posto, não agora, não antes de encontrar um antídoto, eles não me entenderiam.

Visto minha casaca de couro marrom, calço meus coturnos, coloco meu chapéu de pescador, ponho meus óculos escuros, embainho meu facão, empunho minha doze, e estou pronto para mais um dia de batalha. Sinto-me como o personagem de Richard Matheson, com a diferença que isto aqui é vida real. Sim, Eu Sou A Lenda! Mas, antes de partir, tenho que alimentá-lo. Dirijo-me a jaula improvisada e jogo pedaços apodrecidos de corpos, enquanto falo com ele: “Eu não dormia para tentar de proteger, meu filho!...”.