DTRL A BORBOLETA AZUL

Nunca diga à crianças que sonhos são bobagens, cultivei tantos sonhos, porém, o sonho que sempre quis, era sonhar. Sempre convivi com pesadelos, minha infância foi regada de histórias tristes e medo. Sempre o medo. Minha alma foi roubada pela pessoa que deveria falar as palavras de Deus. Quanta ironia deste traiçoeiro destino.

-Isabela, vamos à missa vai começar.

-Eu não quero ir mamãe.

-Já conversamos isso, Isabela. Vamos logo!!

-Isabela, você sabe o quanto isso é especial para o senhor, certo? E eu, sou o mensageiro da vontade do senhor, não sou eu que quero, é nosso criador. Dizia o padre sempre antes de mexer comigo.

Mamãe sempre deixava-me na igreja quando saía. O padre se encarregava de levar-me em casa depois dos ensaios do coro da igreja.

Carreguei durante minha infância, Samanta, minha amiga imaginária. Com ela, compartilhava meu choro, minha dor, minha esperança. O único momento de alegria, era quando no intervalo da escola, ficávamos nas árvores observando os casulos de algumas lagartas, sempre na esperança de ver uma borboleta nascer. Nunca aconteceu.

-Isabela, minha filha, o que está acontecendo com as suas notas da escola? Perguntava minha mãe todo mês.

-Não consigo entender, mamãe. Tudo é tão difícil. Respondia.

Passei por alguns psicólogos, mas nenhum descobriu meu problema. Eles sabiam que eu tinha um, mas em nome de Deus, era obrigada a negar.

Com apenas 9 anos, fui tocada cruelmente. Minha calcinha de ursinhos, era tirada por aquele enviado do senhor. Com palavras doces, ele colocava os dedos em meu sexo, que sangrava. Eu via as santas todas tremendo, reflexo dos meus olhos cheios de lágrimas. Samanta, nessas horas desaparecia chorando também.

Sempre no dia seguinte, não ia olhar os casulos. Samanta insistia, mas, eu ficava no balanço, balançando sem motivo, me sentido a pior das aberrações.

Por duas vezes tentei me cortar com a faca, mas os olhos chorosos de Samanta me paravam sempre. Tentei muitas vezes abraça-la, mas ela já tinha me dito que eu não conseguiria, pois ela era uma amiga que morava em minha cabeça.

Mamãe sempre pedia para eu parar de me coçar durante o banho, pois eu estava me cortando, tive até que dormir de fralda. Não era eu.

Durante uma noite fria, fugi com Samanta.

Beirava quase duas da madrugada, quando um carro parou no nosso lado e puxou-me pra dentro.

-Isabela, o que está fazendo na rua minha filha? -Dizia-me o padre olhando discretamente para o relógio- Já são 2 e meia da manhã. Hoje, você vai dormir comigo, amanhã te levo pra sua casa.

Queria chorar, mas pude. Queria gritar, não podia.

´´Que Deus é esse? Que Deus deixa isso acontecer com seu pequeno anjinho?´´ Pensava com dor.

Samanta já tinha ido embora chorando. Uma boca com um bafo de vinho beijava minha boca, aquela barba me machucava.

-Sabe Isabela, Deus quis hoje você comigo. Não podia dormir sozinho. Amanhã você diz a sua mãe que eu a encontrei bem de manhã cedo viu? Deus pede pra você fazer isso.

Eu rezava, não sei pra qual Deus, mas eu rezava. Eu rezava para aqueles dedos dentro de mim me rasgarem, acabar com minha vida, mas tinha medo de morrer e ir conhecer Deus.

Em minha mão, guardava longe de todos esses medos, um pequeno casulo que pegamos de manhã na escola. O padre percebeu algo em minha mão, pois eu não abria. Ele me bateu na cara e pediu pra eu abrir.

Eu abri a mão revelando o pequenino casulo verde. Ele disse sorrindo:

-Ah, é só isso minha filhinha, pode ficar. Pensei que era algo contra o senh.....

Nesse momento eu vi Samanta aparecendo me mostrando um gesto de silêncio, e cochichando em meu ouvido:

-O senhor me deixou te ajudar.

Nesse momento entra um homem armado dentro do quarto onde estávamos, no fundo da igreja. Eu estava nua e ensanguentada, o homem apavorado, chorou. E chorou, não acreditando na cena.

-Olhe meu filho, não é o que está pensan....

TÁAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

O zumbido do tiro ecoava em minha cabeça. O padre caiu sobre meu corpo, eu com nojo, empurrava-o. Não lembro de nada do que aquele rapaz me disse, só lembro dele me vestindo e me colocando no colo e me ajeitando no fundo de seu carro. Samanta a todo momento estava abraçada comigo. Eu podia tocá-la, agora eu podia. Dormi, e sonhei. Agora eu também podia sonhar.

-Minha filha, snif snif snif, minh..snif..snif..fi... -O choro soluçado da minha mãe e do meu pai machucavam em mim.

Eu estava na delegacia, o meu salvador recebeu um beijo na bochecha de Samanta. No momento do beijo, ele olhou para os braços e viu os pelos eriçados, olhou para o céu com paz nos olhos.

O nome dele era Adalberto, minha mãe não cansava de abraça-lo depois da história contada e depois do delegado tirar-lhe a algema. Ele foi absolvido do julgamento.

Não diga para crianças que sonhos são bobagens, hoje eu sonho, e sou criança. Tenho alguns pesadelos, é verdade, mas Samanta me disse que Deus está preparando muitos sonhos bons pra mim. Estou conhecendo o verdadeiro Deus agora.

Depois de eu tanto dizer a minha mãe, ela reserva um lugar vago na mesa para Samanta. Só eu sei o quanto ela gosta de sentar ali.

Numa manhã de sol, Samanta me acorda e diz:

-Vem, vem, Isabela. Vai nascer.

Dei um pulo da cama em direção a janela. Ali estava, rachando, com a respiração ofegante eu observava sem piscar o casulo. Duas lindas asas azuis venceram a casca grossa que revestia. Estava livre.

Ela voou em meu quarto e parou na ponta do meu nariz. Flexionando as asas, ela me encarava com um olhar negro e doce. Abri a janela e vi Samanta pulando e correndo atrás da borboleta azul.

-Vem Isabela, vem!!!!

Eduardo monteiro
Enviado por Eduardo monteiro em 11/07/2013
Reeditado em 17/07/2013
Código do texto: T4382979
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