Olhos na Noite

Ela estava ali. Lívida, pálida, e ainda assim, sublime.

Me contemplava com ar de desdém e de admiração. Na verdade, seus inexpressivos olhos me transmitiam uma sensação de angustia. De que uma viagem, de que algo prestes a começar, e eu sabia que não gostaria nem um pouco do que se sucederia a este momento.

Estranhamente eu ouvi vozes ao meu lado. Por um instante, alguém pareceu pegar em minha mão e me arrastar. Foi engraçado. Senti meu corpo em movimento, mas era como se ele estivesse anestesiado. Eu não senti nada além dessa sensação.

Era tudo tão escuro. Eu só conseguia ver ela. Por alguma razão, ela não se aproximava de mim. Parecia temerosa, um certo receio que precede a missão. Como nos sentimos prestes a tomar uma decisão difícil... Aquele nervoso, aquele frio na barriga? Ela parecia assim. Ainda assim, ela insistia em me olhar.

Eu queria, mas não conseguia me concentrar. Que porra aconteceu comigo? É um sonho? Só pode ser... Ultimamente eu andava acordando de madrugada assustado, suado, com uma espécie de pressentimento ruim. Ainda nesses dias, minha mulher me mandou tomar cuidado.

Achei estranho. Em 30 anos de casado era aquela a primeira vez que minha esposa me falava um assunto desse tipo. Mas tudo bem. Em 30 anos eu tive muitos sonhos e pesadelos. E eles nunca passaram disso: sonhos e pesadelos.

Era ela que estava ali? Minha mulher? Seus olhos... Aqueles olhos só podiam ser dela. Mas o que minha esposa fazia parada ali? Porque a relutância em se aproximar?

Senti um aperto no peito. Algo não estava certo, por um instante passei a desconfiar que aquilo não era um sonho. Um arrepio percorreu minha espinha quando as vozes que eu ouvia se tornaram nítidas. Eu estava em algum lugar. Algo estava acontecendo, algo real.

Consegui abrir os olhos. Aqueles olhos parecidos com os de minha mulher tinham sumido. Agora, um homem apertava meu pescoço e gritava. A dor veio junto com a nitidez daquela noite. Pessoas se aglomeravam ao meu redor, suas expressões eram de pavor, e no meio delas, contemplei aqueles olhos que me encaravam em meio à escuridão de outrora.

Gritei. Pessoas se entreolharam espantadas. Talvez elas estivessem esperando pelo pior. Ainda sem entender como parei ali, vi o rosto que apertava meu pescoço se aproximar de mim. Ele começou a dizer alguma coisa, mas sua voz foi ficando longe e então mergulhei no breu novamente.

Ela estava mais perto e não era minha mulher. O frio de seu corpo chegava aos poucos até mim. Não era um frio comum, era horrível. Me senti congelando aos poucos, e quando isso começou ela deu mais um passo a frente. Carregava uma foice em sua mão e me contemplava com um sorriso de conquista.

Ela sabia que eu seria dela, e sabia que eu seria seu. Senti minha última chama de calor abandonar meu corpo. O momento para o qual todos estão destinados finalmente havia chegado pra mim. Sempre pensei que estaria pronto para encarar a morte, em meu leito, rodeado de amigos e parentes, mas aquele dia não fora assim.

Recordei-me do impacto do ônibus chocando-se violentamente contra meu corpo e arremessando-o para longe. O desespero do motorista que não conseguira frear a tempo e a chegada de curiosos. Após isso, mergulhei num sono profundo, aonde vislumbrei ao longe dois pontos claros que se aproximaram até tomar a forma de olhos. Depois disso, à volta a realidade, a dor, o choque de saber que não era um sonho, e em seguida o breu novamente.

Agora ali estava ela. Me encarando frente a frente, sugando minhas forças com sua gélida investida. A morte é muito pior do que se pode imaginar. Ela não é iminente. Ela descarrega toda angustia de seu desesperador trabalho sobre aquele que está por levar. Ela divide esse fardo.

Senti um choque. Foi quando sua expressão se transformou em um misto de dor e terror. Ela deu um passo para trás. O frio ficou mais longe. Ela tentava desesperada prosseguir, me agarrar, aparentemente arrependida por ter demorado tanto tempo para me levar. Seu esforço era sobrenatural, e ainda assim, ela não conseguia.

Outro choque, e agora ela foi arremessada. Caiu, ainda mais longe de mim, segurando sua foice e tentando se levantar. Foi quando ouvi:

-Eu vou voltar! – Sua voz parecia engasgada com terra de cemitério, ou algo assim. Ainda de longe, eu pude contemplar vermes azuis, aparentemente congelados se movendo em sua boca, enquanto ela ainda dizia:

-Eu vou voltar!

Outro choque. Os olhos dela pareceram sumir, e então eu consegui abrir os meus. O clarão simples de uma lâmpada cegou meus olhos, já fadados, e quem sabe, cientes de seu destino na escuridão, e escutei ainda ecos, que se confundiram entre o sobrenatural e a realidade:

-Eu vou (ele vai) voltar!

-Eu vou... (ele vai)

-Cessem os choques! (voltar)

-Ele vai voltar!

Bombeiros empurravam minha maca para dentro da ambulância. Eu estava em choque. Só eu sabia como ela era. Eu a vi. A morte tentou me levar naquele dia, mas não conseguiu. Hoje, aos 80 anos vivo bem em minha cadeira de rodas. Aos poucos sinto meu vigor indo embora, mas as palavras dela que se dissolveram em meio a escuridão ainda soam nítidas em meu ouvido:

-Eu vou voltar!

É engraçado, mas eu aprendi a esperar. Os sonhos acabaram, os pesadelos também. Hoje vejo seus olhos. Todos os dias quando entro na escuridão da noite e do sono, eles estão lá a me contemplar. O curioso, é que a cada dia que fecho meus olhos, os dela parecem estar sempre mais perto.

Bonilha
Enviado por Bonilha em 18/07/2013
Reeditado em 18/07/2013
Código do texto: T4392847
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