Memórias de uma suicida

Ainda me lembro daquele dia chuvoso. Naquele quarto de hotel, tudo muito simples e confortável. Seria ali mesmo que a minha jornada terminaria. Escolhi o mais barato, sem rádio ou TV, nada que pudesse distrair ou mudar minha decisão.

Estava tudo planejado: a carta confissão colocada à beira da cama, os e-mails enviados aqueles que eu mais amava. Enfim, desapareci por três dias, sem aviso. Sei que estavam a minha procura, no entanto não deixei rastros.

Confesso que pensei muito sobre o assunto. Duelei com meus conceitos e ideologias, mas fui vencida pelos meus demônios ( vulgo: neuroses ). Esperei mais da vida, do que ela poderia me oferecer, e no final, foi apenas frustração. Minha mãe dizia: quanto menor a expectativa, menor a frustração. Deveria ter escutado. Não vou ficar apontando os fatos que me levaram a tal, seria muito blá, blá, blá....maçante para este pobre psicografista ( nem sei se este o nome que dão a ele ) escrever neste momento tão oportuno. E provavelmente me julgariam como egoísta. Vamos evitar este stress e julgamentos precipitados.

Naquela noite coloquei a roupa mais bonita, um pijaminha de ceda com rendas negras que eu havia ganhado do meu ex-noivo-vivo. Passei o melhor perfume, um pouco de creme rejuvenescedor (irônico, não) um hidratante para o corpo. Por fim, tomei todas as pílulas disponíveis de medicamentos antidepressivos e outras drogas combinadas, e para acompanhar um pouco de Jack Deniel´s ( ok, admito foi a garrafa toda). E apaguei.

Despertei, se é que posso classificar dessa forma, aos pés da cama, olhando diretamente para o meu corpo estendido, com os olhos entreabertos, perdidos em algum lugar. O copo havia caído por entre meus dedos e uma parte dos remédios havia sido expelido em um jato de vômito.

Tudo como eu havia planejado.

E pensei: o que será que viria agora? Um anjo negro e torto? A morte com suas asas ossudas e a foice nas mãos? iria vagar pelo vale da morte?. Não. Não aconteceu nada. Fiquei observando meu corpo por quatro dias, algumas chamadas perdidas no celular, e logo algumas moscas bailavam ao meu redor, acho que comecei a feder. Isso chamou a atenção do gerente, se não fosse por ele, acho que teria ficado lá por mais alguns dias. Logo chegou a polícia, depois o IML, depois uma equipe de televisão para cobrir todos os ângulos do sofrimento da minha família, fizeram até uma enquete sobre o suicídio no Brasil ( como se viver nesse país, não fosse motivo suficiente para cometer um suicídio). Entrevistaram meus amigos, meu noivo e até gente que eu não conhecia e me elogiava sem me conhecer, depois de morto todo mundo é bom.

O problema é que fiquei tempo de mais neste quarto. Não pude ir ao meu enterro, pois da porta para fora, havia um abismo imenso de onde ouvia vozes e sussurros, alguns clamavam meu nome, outros eram gritos de dor. Então preferi ficar onde estava, por mais tedioso, era seguro.

De vez em quando recebia novos hóspedes: casais em lua de mel, amantes, idosos, jovens que queriam apenas transar ( e sem escolha assistia a tudo ). Vi a decoração do quarto mudar inúmeras vezes, do cafona ao eclético, ao moderninho. Vi novos funcionários, novos proprietários, etc, etc...

Comecei a me entediar de verdade e aprendi como os vivos poderiam notar a minha presença. Primeiro de maneira sutil: coisas mudando de lugar, luzes piscando, sons de risadinhas, sussurros a noite, e todas aquelas babaquices que vemos em filmes de terror. Até um jovem maconheiro ouviu um sussurro bem no ouvido, eu apenas disse: tenha uma boa noite e não abra os olhos. Ele se borrou todo ( não no sentido literal) e saiu correndo pelos corredores completamente nu. Isso me rendeu umas boas risadas.

Um dia recebi uma visita ilustre. Meu ex-noivo-vivo. Entrou no quarto sentou aos pés da cama, na mão esquerda vi um anel de ouro. Ele havia casado ( pelo menos espero que não tenha enrolado essa também). Seus cabelos estavam grisalhos, a face triste e flácida. Os anos foram cruéis com ele. Então começou a chorar, pois não havia me esquecido, disse que me amava, mesmo com todos os meus defeitos. Eu também o amava, mas não amava a mim mesma.

Eu queria dizer que estava ali, poder tocar no seu ombro e tentar consolá-lo. Mas não pude. Doeu vê-lo assim, tão impotente, indefeso, eu o havia machucado muito com a minha morte. E ele ainda se perguntava o por que... não havia resposta, nem mesmo eu sabia a resposta.

Súbito uma menininha magricela entrou no quarto, ele ficou surpreso. Ela tinha os cabelos lisos e negros como os dele, e tinha os seus olhos também.

Vamos papai. A menininha que nos desejamos, sonhamos com nomes, e suas características físicas. Sua esposa veio a seguir, atravessou o meu corpo. Vamos querido. Ele havia casado, teve uma linda menininha, tudo o que havíamos um dia sonhado. Quando partiu ainda olhou para trás como se pudesse me ver, mas sei que olhou através de mim.

Eu ainda estava ali...

Muitos ainda se hospedaram e foram assombrados, é claro. Devido à fama de hotel mal assombrado, poucos ficavam no meu quarto, o temido quarto 1705. Os mais corajosos saiam um pouco atormentados (virei profissional na arte de assombrar). Sei que parece cruel, mas o que poderia fazer, estava entediada.

O tempo novamente passou. O prédio foi vendido, e colocaram salas comerciais para locação. Primeiro um salão de beleza, ficava horas e horas a ouvir as fofocas femininas, fiquei bem atualizada sobre; moda, celebridades, novelas, livros, e até sobre o caso escandaloso de um político que se envolveu com uma prostituta, que na verdade era um travesti. No início, assuntos interessantes, depois comecei a me entediar novamente. O salão fechou depois que misturei acidentalmente duas cores de tintas, e a cliente saiu com os cabelos na cor azul. Ficou bonito, mas ela não aceitou muito bem, principalmente depois de ver meu reflexo em um dos espelhos.

Depois foi alugado por um grupo de advogados, presenciei um deles comendo a secretária depois do expediente (ambos casados). Fizeram acordos ilícitos, libertaram quem não deveria, defenderam políticos corruptos, enfim, protegeram a moral e os bons costumes do nosso pais. E também foram embora depois que descobri como deixar recados escritos a sangue nos vidros e espelhos.

Fiquei sozinha. Melhor assim, silêncio e um espaço vago só pra mim.

E, o tempo novamente passou. As ruas mudaram, os carros também, até mesmo as roupas, os jovens andam com um estilo esquisito de corte de cabelo. Os estilos, os rostos e trejeitos, tudo havia mudado... e eu permanecia aqui...

Até que um dia uma equipe de pesquisadores ´´para-anormal`` apareceram. Dei todos os indícios de minha presença e creio que algumas perguntas que me fizeram foram idiotas demais. Do tipo: se você estiver ai de duas batidas. Se o seu nome for fulana de tal de três. Nós vamos ajudá-la a encontrar a luz. Não sei de que droga de luz eles estavam falando, será que era a lâmpada?. Conseguiram até mesmo captar uma foto minha ( eu estava mostrando o dedo do meio ).E por último colocaram um médium para psicografar esta pequena carta. Desculpe-me pela letra, eu falo rápido demais e ele tem uma caligrafia terrível.

E para finalizar, sei que irei ficar aqui por mais algum tempo. Às vezes sinto que estou enlouquecendo, sinto raiva o tempo todo, tristeza e remorso. Sei que fui egoísta, o que posso dizer. No fim, sei que o abismo me espera, para devorar e tragar o que restou desta alma, tragando-me para a inexistência talvez ou para infligir torturas inimagináveis, um lugar merecido a suicidas como eu.

Se acaso passar próximo ao antigo Hotel San Martin, que hoje trata-se de um lugar abandonado. Lembre-se de olhar a última janela do terceiro andar. Tenha certeza que estarei ali, observando os passos de quem ainda vive.

23.07.2013

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 23/07/2013
Código do texto: T4399959
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