Manifesto de um demônio abandonado

Eu observava aqueles longos cabelos loiros derramados no chão. Se antes foram como capim dourado, agora não passavam de um opaco capim seco, sem vida.

Os olhos de esmeralda agora eram uma bijuteria vagabunda. De toda sua expressão sedutora e ao mesmo tempo infantil, restara apenas a imensidão do vazio. Um vazio profundo, mas muito longe de ser a profundeza que muitas vezes engolia e devorava quem observasse, levando ao torpor do encantamento.

As suas mãos, suas doces e suaves mãos, não passavam agora de um saco inútil e pesado, deixando morbidez por onde a pousassem. E elas queriam ser pousadas, elas queriam mostrar o quão pesado era o fardo da mortalidade, da fragilidade humana.

A pureza de sua pele se extinguira há muito. Foi-se embora aquela suave palidez iluminada, que iluminava meus dias. Restava-me agora tons ostensivos de roxo e verde, como demônios possuindo um anjo indefeso e fraco. Mas o demônio era eu mesmo.

Eu possuíra o anjo caído aos meus pés. A minha obsessão a possuíra, as marcas que agora ela possuía na pele não passavam de facetas dos demônios que em mim habita.

Se as lágrimas que corriam pela sua face (no começo de alegria, posteriormente, de amargura) haviam se transformado nas fétidas gotas da morte, que por todos seus poros pingavam, era culpa minha. Minha culpa.

Se antes as abelhas que a rodeavam seu cabelo em busca do seu perfume a incomodavam, agora nada pode fazer quanto aos operários da morte que em si trabalhavam.

Quanto ao seu perfume aliás, de nada sobrara do agradável aroma de rosas, pois nem mesmo as rosas mortas exalam tal odor.

Restam aqui comigo, apenas a solidão, com as mãos nos meus ombros, enquanto corro os dedos pelos cabelos da minha pútrida amada. Mas o remorso nunca chega.

Não fui capaz de entender que havia uma parte do mundo a qual ela pertencia, porque a mim ela era o único mundo existente. Não fui capaz de enxergar que ela não era minha propriedade. Não fui capaz de entender que os anjos eram alegorias criadas pelos poetas para descreverem a beleza, tal como agora fiz, e não uma materialização dos próprios.

Eu não podia deixar um anjo ir embora. Eu não podia deixar que o mundo corroesse a doce pureza que ela mantinha sua doçura. Inadmissível que eu deixasse o mundo corrompe-la e viola-la.

E agora jaz aqui, pútrida deitada em meu colo. O corte em seu pescoço transmite o grito que sua boca não pode gritar, seus antes vermelhos lábios, agora roxos. Não salvei sua pureza. Não salvei nada de si. Mas hei de ficar consigo em meu colo até só os ossos sobrarem, até a morte de fato leva-la.

Salvei-a dos homens, mas não do próprio destino.