Ela, Minha Inimiga - DTRL

Peço desculpas por não aparecer sempre. Mas acreditem, procuro estar presente nos bastidores, por vezes observando no silencio este belo espetáculo das palavras que é o Recanto das Letras. E nessas idas e vindas vez ou outra reencontro esses Desafios que sempre adorei.

O texto a seguir não é novo, mas quando li os temas do Desafio percebi que ele se encaixa em dois deles e por isso eu decidi participar com ele, se somente contos novos puderem participar este texto fica apenas como uma contribuição. Bem, é isso, uma boa leitura e parabéns pela iniciativa.

Ainda me lembro de quando ela surgiu pela primeira vez em minha vida, eu era tão pequena ainda, tinha somente sete anos, e naquele trágico dia eu brincava no quintal com nosso gato Silvester, apenas ele e eu. Foi quando ela apareceu e não me poupou, não se importou com o fato de eu ser uma simples e inocente criança. Inocente sim, pois foi essa minha inocência infantil o que impediu de ver quem ela era realmente, um monstro disfarçado atrás de um sorriso zombeteiro e cativante. De início achei que ela queria apenas se aproximar, fazer uma amizade, mas estava redondamente enganada.

Ai, como doem as lembranças! Ela me fez elogios, disse que eu era uma mocinha muito linda, também elogiou Silvester, disse que adorava gatinhos e se eu não poderia deixa-la pega-lo um pouco. Eu prontamente atendi seu pedido e vi Silvester espernear um pouco em seu colo, de início não achei nada errado, meu gatinho sempre foi muito arredio, mas aí ela abriu ainda mais seu sorriso e começou a estrangular o pobrezinho! Pobre Silvester, foi tudo muito rápido, quando vi, ela já o havia jogado sem vida sob meus pés.

- Tome seu gatinho – ela disse rindo – pode brincar com ele agora.

Ela saiu correndo antes que eu a alcançasse, eu apenas chorava desesperadamente tentando acordar Silvester de seu sono eterno. Meus pais ouviram o berreiro e logo vieram me acudir, tentei explicar-lhes que uma estranha matara meu gato, eles procuraram e nada encontraram. Todos ficaram com medo que ela aparecesse novamente, mas não a vimos mais. Porém ela voltaria.

Quinze anos, é uma idade especial para toda menina e para mim não era diferente, em breve dançaria uma valsa com meu adorado pai. Mas foi naquele dia que minha inimiga escolheu para voltar, foi naquele dia que ela deu um de seus golpes mais cruéis. Estava em meu quarto terminando de me arrumar quando a vi, me espantei com sua presença e a questionei:

- Quem é você? O que faz em meu quarto?

Ela apenas riu e devolveu outra pergunta:

- Não se lembra de mim Daiana? Não se lembra de brincarmos juntas com Silvester?

- É você! Foi você quem matou meu gato! Mas o que quer de mim e como sabe meu nome?

- Sei tudo de você menina. E sei também que seu pai guarda uma arma em casa. Sabe que ele já pensou em usa-la muitas vezes não sabe? Só precisa do estímulo certo para usa-la de novo.

Eu sempre soube que meu pai tinha uma personalidade suicida, mas nunca levou essa tendência a termo. Porém o fato de guardar uma arma em casa, para desespero meu e de minha mãe, provava que um dia ele tentaria.

- Não! Você não faria isso! – gritei.

- Observe Daiana.

Ela saiu do quarto e fechou a porta atrás de si. Eu tentei segui-la, mas descobri que a porta estava trancada. Tentei abri-la a força, não sei quando tempo fiquei ali esmurrando aquela maldita porta, mas sei quando parei, foi quando ouvi um tiro, um tiro vindo do quarto de meu pai.

- Não! – o desespero se apoderou de mim e a porta, como que por encanto, finalmente se abriu.

Corri até o quarto de meu pai, esperando não encontrar o que eu já sabia estar lá, e quando cheguei senti apenas o cheiro da pólvora e o vi caído em meio a uma poça de sangue, com a cabeça estourada e segurando a arma na mão.

- Pai, não! – chorei como a criança que ainda era até aquele dia, pois dali em diante toda a alegria da infância morreu junto com meu pai.

Não chorava sozinha, eu ainda a vi, estava sorrindo para mim enquanto saia do quarto e assim que saiu minha mãe e os convidados da festa entraram e se depararam com aquela cena macabra. Eu e minha mãe nos abraçamos e choramos juntas enquanto todos os demais observavam estarrecidos.

- Foi ela mamãe, a mesma que levou Silvester, ela agora voltou e levou papai.

Mamãe nunca acreditou em mim, achou que eu estivesse sob o efeito do choque de ver meu pai morto no dia de meu baile de debutantes. Por isso desde aquela época eu comecei a frequentar psicólogos e psiquiatras que tentavam me convencer que minha inimiga era uma invenção, fruto da imaginação de uma mente perturbada para explicar os traumas pelos quais passara. Mas eu sabia que ela real, e ela voltou para confirmar isso.

Vinte e dois anos. Tempo de mudança. Formatura na faculdade, uma nova vida começaria, quem sabe uma bela carreira não estava me esperando? Lembro que mamãe estava radiante, desde a morte de papai eu não a via tão feliz, ela tinha se tornado uma pessoa doente, sofria de uma grave hipertensão e não podia ficar sem um coquetel de medicamentos, era isso ou era o risco de ter um infarto ou derrame cerebral, mas mamãe continuava forte e foi através de seu esforço, dedicação e, principalmente, amor que eu estava ali. Mamãe investiu toda sua energia e toda sua vida em sua única filha, e eu fazia de tudo para retribuir, aquela era a mulher mais maravilhosa do mundo, eu tinha certeza que era. E por isso mesmo ela foi a escolhida por minha inimiga como sua próxima vitima.

Como das outras vezes tudo aconteceu de forma rápida e inesperada. Era minha colação de grau. Tudo correu muito bem, tudo foi muito emocionante e quando terminou várias pessoas vieram me cumprimentar, todas pessoas de quem eu gostava, todas pessoas que eu conhecia. Não sei como, mas ela se infiltrou entre aquelas pessoas e quando dei por mim estava abraçando minha inimiga!

- Parabéns Daiana – disse ela, o mesmo sorriso de sempre.

- Você! – disse eu paralisada.

- Sua mãe deve estar orgulhosa – disse ela plantando em mim a semente do medo – Uma cerimônia tão emocionante, será que seu coração suportará tanta emoção? Seria uma tragédia se alguém trocasse seus remédios, não seria?

Eu me desesperei:

- Você não ousaria! – disse eu.

Ela me largou e desapareceu em meio a multidão, neste momento vejo minha mãe de braços abertos esperando meu abraço, observo em sua face toda a emoção de ver a única filha se formando. Corro em seu encontro, mas é tarde demais. Sua expressão de alegria se transforma na própria personificação da dor, ela cai ao chão, várias pessoas a cercam, consigo chegar até ela, mas parece tarde demais.

- Mamãe! Mamãe! – grito – Chamem um médico por favor.

Infelizmente nada mais podia ser feito por ela, infarto fulminante. Minha inimiga conseguiu de novo, levou a pessoa que eu mais amava, agora eu estava só.

O golpe foi forte demais, afundei. Continuei a viver apenas com a ajuda de meus terapeutas aliado a um arsenal farmacológico. Fiquei muitos anos isolada, tinha medo de formar laços, tinha medo que ela voltasse e levasse tudo de mim. Tornei-me uma pessoa fria e egoísta, afastava as pessoas de meu convívio, meu coração era duro, frio, congelado.

Surpreendentemente até um coração assim tão frio pode se aquecer se a pessoa certa acender a chama. E foi isso que aconteceu quando conheci Felipe, eu tinha vinte e oito anos e ele trinta. Ele se aproximou devagar, pouco a pouco conheceu minha história, respeitou meus temores e se ofereceu para ajudar, dizia que se um dia minha inimiga voltasse ele mesmo se encarregaria de manda-la para o inferno. Eu confiei nele, ele confiou em mim.

Quando tinha trinta e três anos de idade e cinco de namoro nos nós casamos. Pensava que minha felicidade seria duradoura, pensava que minha inimiga se intimidaria agora que eu tinha alguém do meu lado. E acreditei mais nisso quando dois anos mais tarde tivemos um filho. Agora tinha uma família, uma nova família, minha vida estava completa de novo. Tudo eram flores. As flores porém sempre murcham, e ela, minha inimiga, surgiu novamente e fez murchar todo meu jardim.

Quando aconteceu era noite, Felipe e meu bebê dormiam, mas algo me despertou, pensei ter ouvido alguma coisa na cozinha e fui verificar e para meu desespero lá estava ela, sorrindo como da primeira vez que a vi.

- Parabéns Daiana – dizia ela segurando uma foto minha com meu marido e filho – bela família você tem, pena as coisas boas não durarem.

- Se você fizer alguma coisa com eles! – eu a ameacei.

- Vai fazer o que Daiana? Você não pode ajuda-los, nunca conseguiu ajudar ninguém, todos a sua volta conhecem somente a desgraça! Você deve ficar sozinha Daiana! E eu vou ajuda-la com isso.

Assim que ela disse isso eu a vi riscar um fosforo, a pequena chama amarela desencadeou uma intensa explosão e o fogo e a fumaça tomaram conta de tudo rapidamente. Depois disso lembro apenas de acordar em uma cama de hospital, atordoada, mas não ferida.

E foi lá que me deram a notícia: meu apartamento havia se incendiado, vazamento de gás, os bombeiros conseguiram me salvar, mas meu esposo e filho não tiveram a mesma sorte que eu. Essa notícia me arrasou, compreendi que nunca seria feliz, ela havia levado todos que eu amei um dia.

Hoje, devastada pela depressão e pela descrença (pois todos achavam que eu estivesse louco por culpar uma inimiga invisível por minhas desgraças) meu único refúgio é uma instituição psiquiátrica e minhas únicas companhias são frascos e frascos de pílulas e comprimidos para um cérebro perturbado. Foi nesse lugar esquecido que eu vi minha inimiga pela última vez, eu estava sozinha no banheiro penteando os cabelos e ela surgiu bem na minha frente no lugar mais inesperado possível: no espelho!

- Olá Daiana – disse ela.

- Olá – disse eu, num estado de semi-torpor provocado pelas medicações – Não perca seu tempo, não há mais nada para levar de mim agora, já levou tudo o que eu mais amava.

- Eu? – ela falou – Tem certeza que fui eu Daiana? Não se lembra?

Então eu me lembrei. Talvez aquelas pílulas finalmente estivessem mostrando seu efeito e anos e anos de memórias reprimidas voltaram a minha frente. Eu fiz uma viagem profunda ao passado, ao meu passado. Me vi novamente como uma criança de sete anos brincando com um gato no jardim, acariciava o pescoço do bichinho até que, tomado por uma fúria assassina, o comprimi com minhas duas mãos até ele não mais respirar. Voltei ao dia de meu baile de debutantes e me vi entrando no quarto de meu pai e dizendo a ele as piores coisas do mundo, dizendo para ele tomar coragem e se matar de uma vez, entregando o revólver em suas mãos e dizendo que ele não faria falta ao mundo e depois ouvir o disparo da arma enquanto arrebentava seus miolos. Me vi trocando os medicamentos de minha mãe antes dela ir a minha formatura e pensando que aquela velha não merecia mais viver. E me lembrei também do dia em que acordei a noite, fui até a cozinha, abri o gás e depois risquei um fósforo pondo fim a vida de meu esposo e de meu filho.

- Viu Daiana? – continuou ela a me fitar do espelho – Sua inimiga sempre esteve mais perto do que você imaginava.

Eu tentava assimilar toda aquela descoberta.

- Eu fiz tudo aquilo! – constatei boquiaberta.

Permaneci em silêncio por alguns instantes contemplando a figura no espelho.

- Se é assim – disse eu – resta apenas uma coisa a fazer, há somente um modo de eu não ferir mais ninguém.

Abandonei o banheiro, o espelho, mas não a figura dentro dele, essa partia junto comigo. Sai do meu quarto, eu era uma paciente considerada pacifica e segura, por isso ninguém me deteve. Subi as escadas do prédio, cheguei ao terraço dez andares acima, olhei para baixo.

- Você não vai machucar mais ninguém Daiana – disse para mim mesma.

Então pulei, e minha inimiga morreu comigo.

Alicia Alves
Enviado por Alicia Alves em 04/08/2013
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