Help!
 
Help me if you can I'm feeling down
And I do appreciate you being 'round
Help me get my feet back on the ground
Won't you please, please, help me?
tumblr_mkyhekXN3U1snygyio1_500.gif

 
Capítulo 1                                                   
 
  Os cabelos longos pendiam esbarrando na face, os olhos jaziam amarelados pela doença, enquanto a palidez do corpo denunciava a má alimentação.

 Ainda assim era bela, a jovem que tinha apenas dezenove anos de idade.


  Dona de um corpo de mulher formada. Seios pequenos, no formato de peras verdes, lábios carnudos, chamativos, pareciam desenhados a lápis por um pintor profissional ou quiçá pelas mãos de um Deus. Possuía olhos negros, tão negros como a lúgubre noite em que pisara naqueles corredores pela primeira vez.

  - Então é uma suicida? – Perguntou Glória, a enfermeira chefe, mas não obteve resposta – Temos muitos suicidas por aqui – continuou, enquanto a jovem mantinha, olhos e cabeça voltados para o piso de porcelanato, inerte e calada – parece que ficará conosco por alguns dias, isso se tudo correr bem. Ou porventura decida permanecer mais um tempo conosco – frisou a mulher em tom mais ríspido, e já ávido, até que por fim explodiu comedidamente – é surda muda por acaso menina?

 - Não – A garota grunhiu como uma águia pronta para atacar, os lábios pulcros semicerrados ostentavam um pouco dos dentes, dentes bonitos e pequenos, brancos e colados uns nos outros, já os olhos, nesses transbordava certa acidez, um misto de ódio e intrínseca melancolia.

 - É, pelo que consta nesse pedaço de papel, não acho que seja louca – disse a enfermeira suspirando pelo conteúdo daquela maldita carta – mas ainda assim está sob meus cuidados por enquanto, e enquanto estiver aqui – a mulher apontou o dedo para o solo, referindo-se ao manicômio, e o tom da voz oscilou, e mesmo que mais brando, soou assustador – enquanto estiver aqui você me obedecerá, falta um tempo para você fazer o que quer, antes disso mando eu – e então  deu uma olhada para os punhos de Karol e pôde ver as recentes cicatrizes, fitou o pescoço da jovem e notou outra marca que particularmente se revelava de orelha a orelha, tal como um colar desenhado ao pescoço, ainda em processo de cicatrização. Até mesmo a fortaleza Glória ficou impressionada com aquilo – venha, vou te mostrar o seu aposento – convidou-a num tom de voz comedido.

  Constrangida, baixou a cabeça e seguiu-a. Saíram pela mesma porta que entraram e adentraram no enorme corredor. Um metro e meio de parede á parede. O silencio torrencial chegava a ser inquietante. Karol podia sentir o próprio barulho de seus passos a espreitando, ecoando no subconsciente, enquanto erguia os olhos e olhava os retratos emoldurados na parede, pinturas dos antigos diretores do hospício. Nestes, era fácil identificar os períodos de regência de cada um dos anfitriões.

  À medida que lia, ouvia Glória explicar-lhe a rotina daquele lugar, que até então, em toda magnitude assemelhava-se a uma tétrica prisão, álgida, melancólica e cheia de segredos.

 - Bem, aqui todos acordam ás seis, todavia como é um caso a parte, ajudará em algumas tarefas, já que quer tanto compreender o lugar e seus mistérios – a ultima palavra parecia ter sido silabada – portanto esteja de pé ás cinco e quinze – enquanto falava notara em certo momento a diligência da garota quanto às fotografias – e todos se deitam às nove da noite, todos sem exceção – Karol assentia com simples “ahans” e “sim senhora”, mas havia algo mais, enfim viu a foto dele, e subitamente brecou – o que foi menina? – indagou.

 - Ele ainda é o diretor? – o tom era irônico.

 - Sim – a resposta veio breve – sempre será, menina – respondeu com um nuance dissemelhante na fala, ao mirar na pintura à fronte de ambas. Um suspiro denso fugiu do peito, denunciando-a – Certamente o verá amanhã, acho que só o reconhece assim, digo, por fotos – respondeu, e em seguida chamou-a para continuar andando.

  Antes a moça fitou mais uma vez o quadro, e prosseguiu seguindo a guia.       Vislumbrou uma criança ao lado do homem, ambos de pé, ele apoiava-se em uma bengala, a qual segurava com a mão esquerda, a outra mão permanecia pousada no ombro esquerdo da filha, uma garotinha de sorriso singelo e olhos estreitos. Sentiu um calafrio aguçar-lhe o estomago, os dois estavam á frente de um lago, abraçados e aparentemente felizes, os pés de Karol ligeiramente renderam-se a seus instintos, e assim, ela continuou.

 - Esse será seu quarto – disse a outra – não é uma suíte presidencial, no entanto servirá – disse a mulher à medida que enfiava a chave na fechadura. Alguns murmúrios podiam-se ouvir dali.

 - Eles ficam aqui perto? – interpelou, enquanto os olhos buscavam algo além das paredes que se estendiam à sua vista.

 - Sim, um pouco mais à frente, há dois quartos vagos e depois são os dormitórios. Dezoito pacientes ao todo. Não sei por que você veio para cá menina, não entendo dessas coisas, nem sei se acredito nelas, a lei é válida, deve ser cumprida, mas acredito que encontrará algo mais do que procura nessa antiga mansão, talvez um sentido para sua vida – disse a mulher, que forçava a chave, que parecia estar emperrada – só há mais uma coisa que precisa saber mocinha – revelou em tom de cautela, como se aquilo fosse um segredo, e tentava evitar que alguém as ouvisse.

 - Pode falar, senhora – admitiu-se ouvir.

 - Não é permitido ir ao quarto treze, e tampouco ao lago – Sussurrou, e a porta finalmente se abrira, após ranger escandalosamente. A mulher não disse mais nada, era só aquilo. Deixou-a em seus novos aposentos, e saiu enquanto a vela queimava por sobre o castiçal que carregara no negrume da noite, a cera derramava-se chorosa e as chamas dançavam criando suas sombras. Glória partiu sem ao menos desejar-lhe bons sonhos.
 


 
Capítulo II
 
  O sanatório Municipal Félix Bornél era situado em um bairro rural da cidadela de Fênix, cerca de dezoito quilômetros do bairro central. Há muitos anos aquela mansão havia sido doada por um antigo dono, cujo nome foi dado ao sanatório, e desde então o mesmo passou a servir de asilo para pessoas com problemas mentais.

  Deitada na cama de solteiro, desconfortável, ao som do ranger das molas do colchão empoeirado. Revirava-se receosa, ainda tentando compreender tudo aquilo. Os olhos ainda teimosos vislumbraram os caibros sobre a cabeça, o teto, as telhas antigas e cobertas pelas teias de aranha. Era tudo tão inexorável e soturno.

  Além da ventana, o céu paria a lua fosca daquela noite fria. Lobos reinavam em algum canto da mata lá fora e a única certeza da presença deles, era os uivos funestos e longínquos que chegavam aos ouvidos da moça.

  Não bastasse isso, a fenestra abriu-se, as cortinas se agitaram presas ao trilho que as sustentava e as abas de madeira bateram fortemente contra a parede rústica. A janela se apartou como se algo a houvesse arrombado. Logo um arrepio gelado encontrou o calor da pele aveludada de Karol, que sentiu o vento penetrando ileso e sem cerimônia, adentrando junto a um assobio soturno.

  A nova hóspede ergueu-se da cama, os passos incertos, cadenciados e mansos. Caminhou até a janela e olhou para fora daquelas paredes. Estava no segundo andar da velha mansão, observou a ventania assombrosa que rondava aquele manicômio, e mais abaixo viu a parte que desconhecia, o quintal dos fundos da grande propriedade.

  Observando a grama alta abaixo dos olhos, viu o lago, o tal lago proibido. Experimentou outro calafrio, talvez o frescor frio lhe tocando intimamente, e subitamente os pêlos eriçaram-se em ricochete a sensação. Suspirou e fixou os olhos mais uma vez no lago, e ao fazer isto viu algo.

  Estranhamente a água movia-se, turbulenta, não como o mar, tampouco como um lago, agitava-se sim, mas como se houvesse algo ali, e subitamente como se uma pedra enorme houvesse caído n’água, o lago sentiu a queda do invisível, a jovem viu o lago receber o impacto, espalhar-se em respingos desmedidos e por fim aplacar-se como se nada tivesse acontecido.

  Agora segurava firme a lateral da janela, agarrava-a absorta num misto de medo e coragem. Ficou ali, estagnada por cerca de quarenta segundos, mas não houve mais nada. A noite se despiu do vento, o lago era só um lago, e a janela foi fechada. Caminhou até a cama e deitou-se, fechou os olhos e devaneou. Nem sonhos, nem pesadelos, tão-só lembranças, memórias recentes e possivelmente reais.

 



Capítulo III

  Mantinha-se agachada, costas amparadas á parede lisa e fria revestida de cerâmica. Vislumbrava a nuvem de vapor que surgia junto d’água quente que vertia do chuveiro ligado a mais de quinze minutos. Nem mesmo isso amolecia a baixa temperatura daquele inverno frígido.

  A porta do banheiro jazia trancada, o que buscava era compreender o que havia acontecido, o porquê de ainda sentir aquela amargura dentro de seu ser.   

  Olhou para o espelho uma última vez, ou para o que restou dele no chão, e ao fitar os cacos, vislumbrou um borrão de sangue. Enxergou a si própria e a parte da pele banhada em sangue. Sentiu o cheiro adocicado daquele que era o símbolo da vida e da morte, e percebeu a poça carmesim acariciando-lhe viscosamente os pés desnudos.

  Nua e trêmula, diante da poça de seiva escarlate que insistia em aumentar, permitiu que os olhos perdessem-se na cadência d’água escapando pelos orifícios do chuveiro. Em segundos que passavam terrivelmente devagar o ar foi se transformando num aroma terrivelmente fétido enquanto percebia que a água se tornava purpúrea e pegajosa. Á princípio não entendia o que era, mas logo reconheceu o sangue. Sangue podre.

  O mesmo fluido começava a brotar da boquilha presa a laje de cimento, e depois deslizar sinuosamente pela lâmpada espiral, fazendo uma trilha perigosa e suicida. No inicio pequenas gotas brincando de pique e pega, até que ganharam volume e consistência tornando-se um fio fino e contínuo de sangue, seguindo em direção ao chão até beijar a poça aos próprios pés.

  Em poucos segundos o sangue expelia por entre as juntas dos azulejos, a lâmpada piscara por três vezes até explodir após um curto circuito. Fagulhas e fumaça deram um matiz mais sombrio ao ambiente, e os cacos voaram por sobre a pele da jovem.

  Nada daquilo podia ser real, ou podia? Enfim ouvira as batidas altas, o sangue continuava a brotar, e agora fugia vivo da pele. Apavorada, sentiu a pressão cair, e olhando uma ultima vez para os resquícios do espelho, recordou-se, afinal nunca se esqueceria, nunca mais...

 

 
Capítulo IV

  Sonhou, ainda havia nuvens e imagens, mas agora era só isso que eram, e nem o suor extremo que havia banhado os lençóis a impediria de se levantar.

  Despertar de manhã nunca havia sido um problema para ela. Acordou, tinha os cabelos desarrumados, o hálito denso, e os belos olhos, jaziam avermelhados e dilatados. Bocejou e pulou da cama como uma criança, afinal sabia o que devia fazer.

  Abriu a porta barulhenta, e assim que os pés tocaram o corredor, o som dos gritos e pancadas ocas, surrupiaram toda tranqüilidade do espaço.

  Tal qual uma ópera lúgubre, repleta de gritos agudos, graves, roucos, outros quase demoníacos que surgiam em meio ao vácuo do caminho, ecoantes e ensandecidos. Havia ainda as pancadas, essas ecoavam como o som de tambores rufando numa banda de loucos, ou quiçá de uma tribo indígena a zombar das almas que ali se perderam.  Afinal o que um louco é senão uma alma perdida em seu próprio corpo?

  Olhou para a o imenso corredor e caminhou em direção a cozinha, encontrou-se com um homem no caminho, um senhor de chapéu e terno, aquilo a estranhou, mas sabia quem era. Este passou por ela como se não a notasse, nervoso e falante.

 Queria contê-lo, mas não pôde, ninguém poderia. Apenas ouviu o que o diretor falava.

 - Já te disse menina! Eu já te disse! Não pode ficar me desobedecendo, nunca mais permitirei que vá lá entendeu! Nunca mais! Fique longe dele, ele é louco! Todos aqui são loucos, Manuela, todos! – gritava e Karol assistia a cena. O homem teimava em puxar as orelhas dela, como se aquilo fosse certo, seguia encurvado e na direção oposta da jovem que o via afastar-se cada vez mais. A nova residente pensou na garotinha, tentou imaginar as possibilidades reais.

 “Como poderia uma garota viver ali? Afinal, como é que se cria uma menina em meio a um bando de loucos? Seria possível, que se fosse necessário, ela mesma tivesse vivido ali quando criança? Não, não mesmo! Concluiu”

  Deixando de lado o inusitado fato, andou pelo longo passadiço e avistou a enfermeira que a recebera na noite anterior, essa estava junto de um homem negro e alto. Não era para ser engraçado, ao menos não para ele, mas o pobre senhor não tinha um dos dentes da frente.

  O homem era corcunda e calvo, de certo parte do cabelo havia caído por conseqüência da idade avançada. Os trajes estavam um pouco sujos, aparentemente de terra, terra e esterco, pelo cheiro que carregara o ar. Logo deduziu que aquele seria o Senhor Joaquim, o velho jardineiro do manicômio.

 - Bem, essa é a nova menina, a neta dele – disse com certo desdém, e Karol sentiu o tom da voz de Glória – talvez em breve nossa anfitriã – revelou enquanto a menina olhava para o velho e notara a barba rasa e grisalha que se espalhava na face castigada pelo tempo, e quiçá pelo trabalho pesado debaixo do sol ardente de tantos verões – Dormiu bem menina? –perguntou.

 - Sim, como se estivesse em minha casa – respondeu, deixando escapar no ângulo dos lábios um riso cínico, e nem mesmo ela notara a própria ironia.

 - Seja bem vinda, Senhorita – disse o homem– conheci seu avô – deixou escapar, quando a mulher os interrompeu.

 - Deixem de conversinhas, e menina, já que quer tanto saber sobre esse lugar, que comece recolhendo as roupas de cama dos quartos – agora quem deixara um riso escapar fora Glória – e cuidado onde põe a mão – terminou entregando-lhe uma espécie de carrinho de duas rodas, que segurava por dois cabos. Quase no chão, por sobre as rodas havia uma plataforma onde se assentava um cesto de cinqüenta litros, vazio, feito de material plástico e em forma cilíndrica, tendo o entorno repleto de furos – a moça deu as costas a ambos, e começou a caminhar na direção dos quartos, mas não conseguiu conter a língua dentro da própria boca e se virou novamente.

 - Senhor? – chamou – pode me dizer ao menos se ele falava de mim? – sondou, enquanto ambos a olhavam em múltiplos sentimentos. Glória parecia enraivecida pela pergunta, enquanto no velho um semblante nostálgico se apossara do rosto.

  O homem olhou para mulher, como se pedisse alguma autorização, mas aparentemente esta não impediu que ele a respondesse.

 - Não – Karol baixou os olhos, engoliu em seco algum sentimento guardado que queria escapar impulsivo. Quiçá em lágrimas ou saltando da garganta após fugir pelo estreito dos lábios num grito enlouquecido, era o que queria até que a voz do homem coçou-lhe os tímpanos outra vez, surpreendendo-a abruptamente – não freqüentemente senhorita, mas disse algo certa vez, e me lembro bem das palavras – o homem olho-a nos olhos como se conhecesse aqueles anseios, e continuou – disse que se arrependia de não responder as cartas de sua princesinha, mas estava certo do que devia fazer – e foi só.

  A jovem olhou para Joaquim, lembrava-se de ouvir sobre aquele homem, sobre a estória do jardineiro que estivera ao lado do avô, do amigo fiel que não deixou o homem, não o abandonou nem mesmo quando o velho decepcionou tanto o próprio filho e a neta, e nem mesmo quando ele matou a filha do próprio filho.

  - Obrigada – ela disse e virou-se para fazer as tarefas, entretanto Glória a interrompeu.

 - Ei garota, conheceu o diretor? – Perguntou.

 - Ah, eu o vi, mas ele parecia ocupado demais com a menina – respondeu de supetão, as palavras saíram da boca com um sarcasmo transparente.

 - É – disse – logo vai se acostumar com a presença da menina – a enfermeira usava agora um tom de voz mais contemplativo, quase complacente – ele precisa cuidar dela, é o que fazemos com nossos filhos – terminou, vendo que falara demais.

 A jovem sorriu copiosamente, deu as costas e voltou a caminhar na direção dos loucos.

 


Capítulo V

  Ainda que não tivesse medo do lugar, só de pensar em apanhar roupas mijadas e cagadas daqueles homens e mulheres, por si só isso já era algo completamente fora dos parâmetros em que vivera por todos aqueles anos.

  Indubitavelmente era estranho conhecer tão bem aquele manicômio e ao mesmo tempo ter a certeza que aquele era o primeiro dia em que colocara os pés naquele corredor. Olhou para as paredes amareladas de poeira, manchadas pelas mãos dos loucos que andavam acariciando-as como se tivessem percepção de onde realmente estavam.

  Espiou o extremo daquele corredor e vislumbrou a mulher. Uma senhora gorda, os braços quase colados ao corpo, soltos e vacilantes. Andejava como se medisse passos, passos curtos de pé em pé, descabelada e manquitolante, pisoteando feito uma bêbada, enquanto o pescoço coordenava desordenadamente a cabeça tal qual estivesse tendo um ataque de epilepsia.

  Aquela cena era no mínimo bizarra. A maluca babava e sorria ao mesmo tempo, fazendo sons estranhos, gemidos ou murmúrios, não dava para definir ao certo. O nariz apontava na direção de Karol, já os olhos miravam á esquerda de si, revirados, na direção de um bebedouro.

  A paciente aproximou-se do bebedouro e investiu contra o objeto tentando entender como apanhar o copo descartável. As tentativas incoerentes e desconcertantes fizeram com que a nova residente tomasse uma atitude.

  A moça apressou os passos e caminhou na direção do alvo, pegou um copo dependurado de cabeça para baixo em um recipiente para armazenamento dos mesmos, puxou uma simples alavanca plástica para esquerda e o copo soltou-se, desvencilhou-se dos outros e desceu, sendo seguro pela mão esquerda da ágil garota. Encheu o mesmo d’água e ergueu a mão na direção da mulher, que de perto era ainda mais bisonha.

  A paciente olhou aturdida na direção dela, fixou os olhos no copo, sorriu como um recém nascido, um riso tolo e despretensioso, pegou o copo e jogou a água no chão.

 - Mais! De novo! – Pediu a demente – A moça, entretanto, balançou a cabeça e seguiu andando. Não era possível que fosse tão louca, murmurou a si própria.

  Entrou no primeiro quarto, a porta estava aberta e a cama bagunçada. Entrou e não havia ninguém, as paredes eram vazias, sem retratos, espelhos ou qualquer tipo de objeto. Havia grades internas que protegiam as janelas, por mais que as portas não fossem trancadas aquilo era uma prisão, um tanto inóspita. Apanhou a roupa de cama, o cheiro era ruim, azedo e mesclado. Havia o aroma carregado do remédio, o odor da urina impregnada na roupa de cama, e um cheiro podre de vômito.

  Saiu do quarto, enjoada. Aquele foi apenas o primeiro, continuou passando de um em um. Conheceu Roger, um velho que vivia sentado, nu em seu quarto, olhando pela janela. As pelancas de pele expostas, e o que mais a assustou foi o cotoco entre as pernas, o homem acreditava ser um monge, retalhou-se, castrou a si próprio com o propósito insano de tornar-se um “eunuco”. Rapou a cabeça e vez em quando enrolava o lençol albino por sobre o corpo negro e saia andando pelos corredores, com os braços cruzados e uma pose ereta, mesmo um cotoco, ainda era um cotoco e tanto, notou.

  Karol continuava enchendo o cesto, perguntas e respostas surgiam aos poucos. Conhecia e reconhecia detalhes que apalpavam suas lembranças. Entrou no décimo quarto, Marta, uma mulher magra, de olhos fundos e sombrios. Ainda deitada na cama, suas feições eram cadavéricas, e a palidez da pele deixava vivas as veias, mais vivas que o normal. Podia-se ver os traços fundos nos lábios, dava para perceber a boca seca, e o cansaço daquele corpo ao perceber o extremo das olheiras que mortificavam os olhos.

  A jovem parou de fronte a ela, os olhos fitaram o lençol, era impossível não ouvir a respiração profunda da paciente. Estava com os olhos abertos, abertos como sempre. Marta sofria de um tipo de insônia terrível, não havia pesadelos, tudo era real. As alucinações começaram aos doze anos após perder os pais em uma chacina. Por ordem da mãe, que ouviu a porta ser arrombada e escutou os gritos do marido logo em seguida, a menina se afundou dentro do guarda roupas, mas tortuosamente assistiu pela fresta da porta à mãe ser torturada, estuprada e morta. Desde aquele dia ela não dormira mais sem o auxílio de remédios.

 - Pode me dar licença – Karol a pediu educadamente – a mulher moveu-se lentamente, como em câmera lenta, apenas o pescoço se dobrara para os olhos fitarem a jovem que via pela primeira vez – Já é hora de acordar – observou.

 - Você a viu, não foi? – perguntou – Ele tem razão, ela ainda está viva – expôs num tom sombrio, insano na verdade, mas a moça sabia do que a louca estava falando.

 - E você, você a viu? – perguntou, pousando as mãos no ombro de Marta.

 - Não – respondeu – Mas sei que a viu, pois ouvi o barulho dela se escondendo no lago noite passada, ela não gosta que a vejam.

 Lembrou-se do que vira pela janela, do barulho do lago, e indagou, sem perceber quão tola era sua pergunta.

 - Você estava acordada?

 - Nunca durmo – Marta ergueu-se da cama – Nunca durmo – repetiu, e olhou na direção da janela. Parecia querer saltar dali, no entanto seria impedida pelas grades. Voltou os olhos na direção dela, e lágrimas amargas despencaram dos olhos magros. Abraçou a jovem que acabara de conhecer, como uma criança, por segundos o afetivo abraço a consternou, mas logo a maluca começou a gritar desvairadamente.

   Cléber chegou quando Karol já estava no chão, sendo enforcada por Marta. A mulher a estrangulava, era assim, desde a morte dos pais. Em um momento ela te abraçava como se fosse aos pais, noutro lhe odiava como ao assassino.

  - Está tudo bem com você? – perguntou.

  - Sim, mas – ela dizia.

  - Não se aproxime deles. Não pense neles como pessoas normais – O homem dizia com a voz firme – Cuido deles há sete anos, são traiçoeiros, são loucos, e acredite, são perigosos – terminou sacudindo a cabeça afirmando que concordava consigo mesmo.

 - Eu sei disso, foi um erro – Karol apanhou o lençol e saiu do quarto acompanhada do homem.

  - A enfermeira chefe me falou de você, do motivo de estar aqui – a voz do homem ao seu lado era rouca, grave e um tanto sexy – minhas condolências – continuou enquanto ela o olhava, e não entendia como uma voz tão bonita poderia caber a um homem tão bisonho.

  Sabia quem ele era. O nome era Cléber Campos, psicólogo do hospício, um homem estranho, tinha cabelos longos e esbranquiçados, o nariz era quase pontiagudo, o rosto comprido e a cabeça em formato quase cônico. Era baixo, não media mais que um e sessenta e sete de altura, e dentro daquele jaleco branco e por detrás daqueles óculos de lentes de fundo de garrafa, era deveras assustador.

 - Não vi o diretor hoje ainda – Mencionou – ele não está por aqui? – indagou – ou está lá fora – insistiu.

 - Ninguém vai lá fora, nem mesmo ele – a voz agora era amarga– e o diretor deve estar com a criança – o doutor respirou fundo, a moça pôde ver o peito dele inflar por sob o traje que vestia, e em seguida o suspiro escapou pelas narinas. Ela estranhou o excesso de pêlos que despontavam daqueles orifícios – sei que tem um propósito aqui, mas não o perturbe sem motivos – disse, e seguiu com uma prancheta, papel e caneta. Decerto devia ter algo importante para anotar, pois saiu trotando como um cavalo.

 

Capítulo VI

  Karol agora olhava para o fim do corredor, era um beco sem saída, havia ainda quatro quartos, mas no fim dele não restavam esquinas a serem dobradas, apenas uma porta branca, de detalhes cilíndricos, tal como molduras vazias.

 Dois loucos vinham a seu encontro, como zumbis, dopados, olhos avermelhados, cabelos despenteados e balbuciando estranhamente uma canção, como bêbados após sair de um baile dos anos sessenta. Inclusive já sabia quem eram.

  Seus nomes eram Jordan e Geison, dois irmãos que enlouqueceram com o excesso de uso de drogas, foram apelidados de irmãos loucos, em um dia estavam no auge, pois haviam assinado contrato com uma gravadora de credibilidade, noutro estavam nas manchetes dos jornais, falidos e devendo a traficantes.


Help me if you can I'm feeling down
And I do appreciate you being 'round
Help me get my feet back on the ground
Won't you please, please, help me?


And now my life has changed in so many ways
My independence seems to vanish in the haze
But every now and then I feel so insecure
I know that I just need you like
I've never done before

Help me if you can I'm feeling down
And I do appreciate you being 'round
Help me get my feet back on the ground
Won't you please, please, help me?


  Karol podia sentir aquela canção, mesmo que desritmada, as vozes dessincronizadas daqueles dois ex-cantores, que passaram por ela como se não a tivessem visto. A jovem virou-se e observou-os caminhar, mas agora repetiam exaustivamente um verso da letra.
 

“Won't you please, please, help me?”
 
 Ela sabia bem o que significava aquilo, ouvira aquela musica desde o episódio do banheiro, repetindo-se em seus pensamentos como um alerta. “Maldição”. Pensou, e quem não conheceria em sã consciência uma das músicas mais tocadas dos Beatles? Bem, ali, até os loucos a conheciam.  Todavia a tradução era o que mais a assustava, principalmente á ela.
 
“Você não vai, por favor, por favor, me ajudar?”
 
Aquilo despertara mais lembranças...
 

 
Capítulo VII

  Um espelho deveria refletir uma imagem, isso é o que deveria fazer, não é mesmo? Entretanto a lógica inexistia, e por mais que a exatidão de seus sentidos dissesse a si mesma que estava louca, repentinamente tivera a certeza de que o que via deveras era sobrenatural.
 
  Tudo começou quando chegou a casa em que morava, abriu a porta, caminhou com o peso nos ombros até a sala e lançou a bolsa de compras por sobre o sofá, antes que o objeto tocasse o couro negro do móvel, a moça já havia disparado a chorar.  Afinal, sentia falta dele, ela estava simplesmente morrendo aos poucos, ela sempre quis ser amada por ele.
 
  Como naqueles momentos em que sente emoções tão fortes e lhe vem uma trilha sonora, uma música de fundo para acompanhar a situação, ela surgiu.
 
  A voz que cantava “Help”, aquela musica que de repente a fazia chorar, era suave, e ao mesmo tempo assustadora. No inicio era só uma voz, uma voz dentro da cabeça da jovem, mas aos poucos, enquanto procurava entender o que estava acontecendo, tornou-se mais que isso, no final era uma presença perturbadora.
 
  Olhou para os lados, pedia para que quem seja que fosse que estivesse fazendo aquilo:
 
 - Pare! Estou ficando assustada! Pare com isso! Pare, por favor! – gritava enquanto a música continuava a poluir o ambiente, como uma voz a ser reprisada histericamente, tortuosa e nefasta.
 
  Quando notou que aquilo parecia ser real, sentiu-se observada, como se algo ou alguém estivesse ao seu encalço. As cortinas dançavam sem a presença do vento, as luzes piscavam tal como lâmpadas de um pisca-pisca, porém nostálgicas e sombrias causando-lhe medo e angustia.
 
  Correu para o banheiro e trancou-se lá, estava apavorada. Despiu-se sentindo ainda calafrios, o pequeno universo a sua volta era um cubículo de três metros por um e meio de largura, dividido por um Box de vidro.
 
  Entrou debaixo do chuveiro e seus dedos giraram a alavanca em forma de cruz, a água começou a escorrer fria, e esquentou aos poucos até que começou a arder ao toque na pele. O vapor a acalmou por alguns segundos, certa tensão se desinstalava de seu corpo, e quando a musica parecia ter se esvaído, cessado abruptamente, repentinamente regressou, a voz sinistra voltou a assombrar-lhe, e agora era mais forte e insana:
 
Help me if you can I'm feeling down
“Ajude-me se você puder, estou me sentindo desanimado
And I do appreciate you being 'round
Eu gostaria de ter você por perto
Help me get my feet back on the ground
Ajude-me a colocar meus pés de volta ao chão
Won't you please, please, help me?
Você não vai, por favor, por favor, me ajudar?”
 
 - Aaaaaaaahhhh – Gritou insanamente, sentiu-se tonta e saiu de debaixo d’água, deixando que a mesma continuasse caindo e descendo pelo ralo. Tapou os ouvidos, saiu do boxe e logo parou de frente ao lavatório, abriu a torneira e começou a lavar o rosto com a água fria que escorregava pela tubulação alimentada pela caixa d’água, como se achasse que aquilo a acordaria de um possível pesadelo real, ou uma provável alucinação, porém ao encarar-se no espelho viu o próprio reflexo borrado, a imagem refletida se distorcera aos poucos até que formara outra, o reflexo de outro rosto, de uma menina, uma menina triste e chorosa.
 


Capítulo VIII

  As lembranças subitamente desapareceram quando sentiu o toque das mãos dele. O homem a sua frente parecia ser ainda mais alto.

 - Você a viu? – ele perguntou aparentemente preocupado – me responde droga! – ele disse enquanto chacoalhava os ombros da jovem que se sentiu acuada.

 - Manuela? – ela perguntou em resposta, ainda tentando entender tudo aquilo.

 - Sim. Já disse a ela, eu já falei pra ela! Mandei que ficasse longe dele – o homem a soltou, e enquanto as mãos desvinculavam-se dos ombros, sentiu o calor paradoxal que aquele contato o transmitia – quem é você? – indagou.

 - Diretor, vim ajudar por uns dias – ela disse – sua filha está por aí? – o homem ergueu os olhos e fitou-a com interesse no assunto – quer que eu o ajude a procurar? – ela perguntou tentando acalmá-lo.

 - Não estaria te atrapalhando? Por favor, não sei como pude fazer isso com ela – o diretor parecia estar se punindo – ah, ser diretor desse lugar sempre foi um fardo, e depois que minha esposa se foi e depois que elas se foram – os olhos do homem pareciam perdidos em um mar, tristes – odeio ter que mantê-la aqui.

 - É – sentia a tristeza dele – não deve ser fácil para ela – disse melancolicamente, lembrando-se de tê-lo visto pela primeira vez no corredor, curvado, e xingando a menina – onde quer que eu a procure? – perguntou.

 - Eu não sei onde ela está, acho que ficou chateada porque chamei a atenção dela de manhã – dava para perceber a preocupação na voz dele – mas ela só pode estar em dois lugares – ele então se afastou da jovem – ou no lago, ou no quarto dele – terminou como se temesse aqueles lugares.

 - Quarto dele? Dele quem? – Indagou.

 - Ele não devia ficar tanto tempo com ela – o homem a olhou com estranha ternura – Você não devia estar aqui, é uma menina também, quem te mandou pra cá? Sua mãe? – perguntou como se Karol fosse uma criança. Ela surpreendentemente riu.

 - Não, já tenho dezenove e minha mãe está morta, diretor – disse sentindo a tristeza de toda aquela realidade cruel – mas mamãe nunca me deixaria num lugar assim, foi eu quem escolhi estar aqui, foi por causa de meu pai.

 - Entendo – respondeu.

 - Diretor, de quem está falando? Qual é o quarto? – indagou novamente.

  - 13 – revelou – mas não posso ir lá –olhou confuso – aquele quarto é perigoso, acreditamos, eu e Glória, que ele ainda está aqui.

 - Eu vou até o quarto, mas você precisa procurar ela no lago, ok? – ela insistiu, mas ele parecia não esboçar reação alguma. Ela não entendia como aquilo poderia ajudar, mas era um impulso, talvez uma intuição –  Hey!? Está me ouvindo? – ela então agarrou os ombros dele e o sacudiu, não teria força para movê-lo, mas o corpo dele estava tão mole quanto o dos malucos que ali residiam – Você vai até lá, entendeu! E vai agora – gritou – quer ver sua filha novamente, não quer?! – ela perguntou, e a voz dela o acordou.


 - Sim – concordou subitamente e como se tivesse tomado uma injeção de ânimo dirigiu-se para saída do manicômio. Karol sentiu como se algo bom afagasse suas memórias, colocou a mão no pescoço e acariciou a cicatriz com a ponta do dedo indicador.

Continua AQUI!
Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 16/08/2013
Reeditado em 20/08/2013
Código do texto: T4437991
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.