O Relógio da Morte. DTRL

Passo os dias olhando o sol. Percebo que, se eu olhar ele direto, ele não irá se por. Porém, cada segundo de distração, o sol abaixa cada vez mais, dando lugar as trevas.

-Enfermeira, espectros podem tocar em algo físico?

-O que é espectro senhor, Jurandir? O que quer que seja, depois eu te digo, mas agora, está na hora do senhor tomar sua insulina, deu HI de novo.

-Deixa pra lá,- como se diabetes fosse o pior dos meus problemas.- No braço esquerdo, por favor.

-Já está anoitecendo senhor, vai ser trocado o plantão. Quer que eu coloque o senhor na cama, ou vai jantar?

-Não vai anoitecer.

...

-Vamos papai, o senhor vai ter que morar em uma casa que tem suporte, não é um asilo. Olha, eu mesmo vou pagar.

-Já disse que não quero nada seu, minha aposentadoria serve pra eu me cuidar. E já disse, você e seu irmão, sumam da minha vida.

-Sabe, o senhor mudou muito depois que a mamãe morreu, aliás, desde que eu tinha uns 20 anos o senhor mudou muito. Bom, o senhor é quem sabe. Faça como desejar.

-O que você está olhando? Sai daqui, agoraaaaaa.

-Sair quem, pai? Está falando com quem?

Aquela face, o que foi aquele medo? Depois, devo ter desmaiado, eu imagino. Minha filha nunca mais a vi, nem o ingrato do meu filho.

...

-Jurandir, senhor Jurandir, Senhor Jurandir...

-Aiii, o que está fazendo sua louca, -tinha já anoitecido, meus pensamentos me distraíram,- quer me matar?

-Desculpe, mas o senhor parecia hipnotizado, tinha que ter certeza que estava consciente. Agora é hora do senhor ir deitar.

-Não, não irei deitar.

-Eu não queria ter que colocar de novo aquela camisa de força no senhor, já faz uma semana que fica insistente assim. O senhor tem que dormir, e pelas suas olheiras, não tem feito isso.

...

O quarto era coberto por trevas. A senhora Elizabeth de 98 anos, dorme sempre com os olhos abertos. Os olhos dela eram de vidro, dava pra perceber, mas eles pareciam ter vida. Aquela cena me dava pavor, nunca sabia quando estava sonhando ou estava convivendo com a realidade.

Uma certa vez, ela tirou o olho da órbita morta e estendendo-o junto a mim, perguntou quem era aquela pessoa que sempre estava ao meu lado. O olho se mexia.

No almoço da manhã seguinte, Elizabeth estava com fitas para manter os olhos fechados, e sentava-se a maior distância possível de mim.

Como descobrir se era sonho ou verdade?

...

-Mais uma dose, por favor!!

-Desculpe senhor, mas já são 3:37. Estaríamos já fechado ás 1:00. Se o senhor quiser levar pra viaj...

-Ah, me dá o resto da garrafa...

Nunca entendi esse pessoal que abre um bar, tem que estar disponível 24 horas por dia. Quem quer beber não precisa de um horário fixo, tem que estar disponível.

Me drogar, beber, esquecer um passado. Durante o efeito da bebida e da droga, eu era outra pessoa. Uma pessoa poderosa, com poderes para até desafiar o medo.

...

- O senhor deve se cuidar, os exames estão alterados demais. Primeiro, deve acabar com a bebida. Segundo deve controlar o diabetes. Sua filha disse-me que recentemente perdeu a esposa, sei como é difícil, mas ao menos que o senhor queira viver, deve se cuidar.

-Vá pro inferno!!!! Soltem já meus braços, vou embora daqui!!!

-O senhor não irá a lugar algum. Enfermeira, colete alguns exames complementares, vou conversar mais com a filha dele.

-Não toque em mim sua desgraçada!!! Minha vida é uma desgraça, prefiro morrer! Já disse, não toque em mim!!!!!!

-O senhor está apenas bêbado e drogado. Devo dizer que, tem uma sorte imensa, pois o carro que o atropelou ficou acabado, era pra estar morto.

...

-Senhor Jurandir, o que está fazendo. O que é esse sangue?

Foram momentos de hesitação, movimentos parados no meio do caminho. Em minhas mãos suadas, o molho de chaves do asilo, que ao estilo de 007, consegui pegar sem ninguém suspeitar.

Sabia que ficaria eternamente na noite, mas estava livre de ver aquela feição. Só não sabia de onde tiraria forças suficientes para penetrar aquele objeto dentro dos olhos.

Ao olhar pela última vez Elizabeth, e ver que o sol baixara no horizonte, de uma vez, penetrei bem fundo. Não era uma fechadura o que a chave encontrara, era carne. A chave abriu uma porta que jorrou sangue, e fechou a porta da insanidade. Todo dia era noite, mas graças a Deus, não via nada.

...

-Boa noite. O que deseja?

-Vá embora, não chamei ninguém da enfermagem, nem a campainha posso tocar com esses braços amarrados.

-Me chamou sim. Desculpe, não sou da enfermagem. Prazer, chamo-me Desgraça. O senhor vive me chamando.

O monitor cardíaco parecia normal, mas sentia uma arritmia sobrenatural, aquela face cadavérica não era desse mundo. Minha alma parecia que estava prestes a saltar do meu corpo. Minha voz não saía.

-Presumo que o senhor não consiga falar. O senhor estaria morto, se não fosse eu, é claro. Atrasei o relógio da morte, por isso que o senhor não morreu nesse acidente. Eu sei o que o senhor fez no passado e recentemente. Não quero nada em troca por salvá-lo, quero apenas ficar presenciando essa cara de medo que o senhor está agora. É meu alimento preferido ver rostos assim. Permanecerei sempre ao seu lado quando estiver no asilo, retiro-me somente ao dia, quando vou descansar, mas a noite, sempre estarei ao seu lado. Então, nos vemos no asilo, pois já vi que sua filha está cansada do senhor. Disse ao médico que, quando o senhor receber alta, irá direto pra lá. Estou tão excitada pra isso!!

-Por que no asilo o senhor deve estar me perguntando, certo?

-Porque lá vocês são todos loucos, esquizofrênicos, moribundos, ninguém os escuta. Lá o medo prevalece, e ninguém escuta os velhos loucos. Até mais.

...

-Jurandir, você vai mesmo fazer isso? Vai conseguir mesmo carregar isso pra sua vida inteira?

-Cala a boca, você está comigo ou não? Se arrepender logo agora é ser fraco. Não combinamos isso o mês inteiro?

-Eu sei, mas ele está com o filho. Não é certo.

-Não é certo ele trair a mulher dele, ainda mais com a vaca da minha. A ela, não vou matar, vou fazer ela sofrer o resto da vida.

Paaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

-Vamos!! Esse desgraçado não levanta mais.

....

-Doutor, ele simplesmente fez isso com os próprios olhos. Não sei qual a razão. Vi ele todo ensanguentado e o trouxe o mais rápido que pude.

-Ele vai ficar bem. Só preciso de umas perguntas complementares, pode me acompanhar por favor?

-Claro.

....

-Olá, Jurandir. Tudo bem? Que pena que não pode mais me ver. Não tem problema, sua cara de medo, ao me escutar, é a mesma de quando me via. Tenho uma notícia triste a mim mesma, tive que reajustar o relógio da morte. Vim o mais rápido que pude, antes dela chegar.

´´Eu devia mesmo estar com a feição de medo, mas com certeza era menos do que antes. Havia vencido a morte, ou pelo menos, por segundos, achei que tinha vencido´´.

....

-Enfermeira, pode me trazer um copo d´agua?

-Claro, senhora Júlia.

-Enfermeira, disseram que viveu um senhor aqui que furou seus próprios olhos, como foi isso?

-Ah, sim. Foi o senhor Jurandir. Resumidamente, a história dele aqui conosco foi assim;

´´Ele tinha 93 anos, era totalmente neurótico. Ficava dias sem comer, e morria de medo da noite, disse que uma pessoa sempre fazia medo a ele. Minto, eram duas pessoas que o assustavam. Uma outra apareceu depois.

Uma dessas pessoas, dizia ele que, era um espirito que o atormentava, e que, esse espírito vivia do medo em seus olhos e tinha atrasado o relógio da morte. A outra pessoa era uma mulher chamada Elizabeth, uma velha que dormia na cama ao lado dele e não tinha olhos, no lugar dos olhos, tinha próteses de vidro. Era loucura, pois nunca houve uma senhora com olhos de vidro internada aqui.

Enfim, furou seus olhos com chaves, e quando eu o vi, estava todo ensanguentado mas estava rindo. Levamos ele no médico, até que ficou bem. Ficou 3 dias internado, e voltou aqui pro asilo.

Quando ele entrou dentro de casa com a cadeira de rodas, sussurrou algo em meu ouvido e, simplesmente teve um ataque fulminante e morreu´´.

-O que ele disse no seu ouvido, enfermeira?

´´Ele disse que estava ouvindo Elizabeth dizer que ele ia morrer. Só mais uns segundos até ela arrumar seu relógio que fora atrasado. Que a eternidade seria de sofrimento pra ele. E pediu desculpas por ter matado a mulher, os pais dela, os irmãos e um homem que havia traído ele com a mulher. Depois disso, morreu´´.

-Nossa!! Que história triste. As pessoas tendem a enlouquecerem mesmo. Que Deus tenha piedade de sua alma. Aquele quadro ali, é ele?

-Sim, são os pacientes do asilo. Foi tirada 4 dias antes dele morrer. Ele é esse senhor gordo de óculos.

-Quem é essa senhora olhando seu relógio de pulso? Ela me dá medo.

-Não sabemos, ela nunca foi interna daqui. O fotógrafo não soube explicar, disse que pode ter sido reflexo da lente da câmera, pois tirara muitas fotos naquele dia. Na verdade, esse quadro me dá arrepios também. Sempre no meu plantão, eu guardo esse quadro, acho que vou jogá-lo fora. Tome sua água, senhora Júlia. Vou arrumar sua cama e já venho buscá-la.

Dedico esse conto a minha avó, que se foi em 06/09/13. Dona Damiana, te amo e pra sempre irei te amar. Sei que Deus tem seus planos, não dá pra questionar suas vontades. Um dia espero estar ao seu lado e de todas pessoas queridas que tenho ai no céu.

Eduardo monteiro
Enviado por Eduardo monteiro em 08/09/2013
Reeditado em 15/09/2013
Código do texto: T4472760
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