VOU JOGAR MINHA PERNA.

PARTE 01.

Joaquim Antonio e Maria Soledade, era um casal muito feliz; tinha uma empresa de sucesso e um casal de filhos muito inteligentes, estudiosos e de uma educação lapidada. O casal veio de Portugal, por motivos de trabalho e se instalou em São Paulo. A empresa, cada vez mais, sobressaia sobre as outras, em tudo. Mas por uma infeliz coincidência do destino, dentro de uma semana, eles perderam tudo na bolsa de valores, voltando a estaca zero. Agora se via em desespero, sem família que os apoiasse, sem empresa, sem amigos, sem dinheiro para voltar a Portugal, sem nada. Apenas os dois filhos: Maria Valentina e Luiz Felipe.

Não podendo manter o padrão de vida no condomínio onde moravam e envergonhados com a situação que se encontravam agora, resolveram comprar uma casa antiga no interior de Minas Gerais; a casa pertenceu a uma família quatrocentona de São Paulo; a qual já havia sido habitada por várias pessoas de um passado bem distante; entre eles, um coronel, senhor dono de escravos e conta-se de passagem, que era um dos piores donos de escravos que houve na época.

Na viagem para Minas Gerais, naquelas grotas que até o sol custa a chegar, mas sempre é o primeiro a ir embora; longe de conhecer suas estradas cheias de curvas e perigos; vieram a se chocar com uma carreta, morrendo o casal no local e os dois filhos foram parar em um hospital público nos confins de Diamantina, Vale do Jequitinhonha. Com pouco tempo, eles se recuperaram e se viram mais perdidos que nunca; agora, além de tudo, sem os pais, porto seguro em suas adolescências. Maria Valentina, 14 anos; Luiz Felipe, 16 anos. Ambos, meninos ainda e perdido naquela selva de pedras brancas e morros íngremes de Diamantina. Pegaram o que restou do acidente, tomaram o ônibus rumo a velha casa no interior de Chapada do Norte – ainda no Vale do Jequitinhonha -, cidade onde no passado havia sido um quilombo. A casa ficava a 5 kms da cidade de Chapada do Norte. Ao chegar enfrente o casarão, eles sentiram um arrepio na pele e a sensação de ouvir burburinhos dentro da casa e alguém parecia gemer ao longe. Aquela sensação foi sentida pelos dois adolescentes. O sol se punha; a noite prometia muito frio ; o vento uivava nas árvores, fazendo um barulho aterrorizante e a sensação de solidão e noites difíceis invadiam o corpo daquelas crianças.

Eles se olharam, agarraram um ao outro e com passos lentos foram aproximando da casa e empurram a pesada porta, que fez um barulho bem estranho, como se fosse uma sanfona velha ao ser escancarada. Os dois entraram e foram logo procurar lenha para acender o fogão a lenha, pois ali não havia luz, eles não tinham cobertores e a noite e o frio aproximavam velozmente. A fome foi saciada com um pedaço de pão trazido de Diamantina; cansados, os dois deitaram nos “Pés” do fogão, um ao lado do outro e o sono os roubou; mas foram em seguida acordados por um barulho estranho vindo da parte de cima do casarão; assustados, eles se agarraram ao outro e cada vez mais, o barulho foi aumentando e transformando em gargalhadas, gritos e no meio de tantos barulhos, haviam gemidos, que transpareciam dor e lamentação e a noite pareceu infinita; mas as crianças, ainda com a inocência de adolescentes em apuros, acreditavam que seriam pessoas que vieram amedrontá-los, para que eles deixassem a casa; mas decidiram que dali não sairiam de jeito nenhum, mesmo porque não havia para onde ir. E passaram aquela noite tão acordados como chegaram; mas os gemidos, gargalhadas e passos pesados no velho assoalho, não cessaram a noite inteira; mas eles nas suas crenças, se preveniram de um pedaço de madeira cada um e sentados aos pés do fogão, esperaram por toda a noite, o visitante que vieram os assustar, para que eles deixassem a casa; segundo eles acreditavam.

PARTE 2

O dia amanheceu e os dois adolescentes foram visitar o casarão e conhecer cada canto daquele assombrado castelo caindo os pedaços, literalmente. Ali, encontraram objetos tão antigos e que eles nem sabiam do que se tratavam. Nos fundos, haviam pés de laranjeiras e bananeiras, as quais lhes serviram no café da manhã e também no almoço e jantar, juntamente com a pescaria no rio ali próximo ao casarão.

Tudo estava muito bem, mas a noite chegou e com ela toda a barulhada: vozes, passos pesados e rápidos no assoalho, gritos, risadas e o mais assustador, os gemidos, que mais pareciam lamentações de dor; como se alguém sofresse muito e precisasse de ajuda. E assim sucessivas noites sucederam; cada vez mais os barulhos aumentando; coisas caindo, cabras berrando dentro de casa, cachorro latindo; até que em uma noite, não suportando mais aquela situação, Maria Valentina, destemida como era, resolveu gritar dentro de casa, como uma louca e perguntar bem alto o que eles queriam; o que queriam deles e seu irmão, morrendo de medo, implorava que ela calasse; mas ela andava pela cozinha e perguntava repetidamente, o que eles pretendiam, pois ela não suportava mais aquela bagunça toda, que não estava mais com medo, que eles dissessem ou então, os deixassem em paz. Nesse momento, a barulhada aumentou consideravelmente; mas em meio o barulho, eles perceberam que os gemidos cessaram e logo veio uma voz, que parecia mais tenebrosa que o próprio gemido e balbuciou essas palavras:

A VOZ- Posso cair?

MARIA VALENTINA- Não entendi! Cair ou descer? (A voz vinha da parte de cima do casarão) Então caia!

A VOZ- Vou cair; mas não se assuste. ( E o barulho parecia infernal, dava a impressão, que queria atrapalhar o contato de Maria Valentina com a Voz).

MARIA VALENTINA – Caia logo, não tenho tempo a perder, preciso dormir; faz uma semana que vocês não nos deixam dormir. Caiam logo e fala o que quer e nos deixam em paz.

A VOZ- Então vou cair. ( E barulho se tornou quase insuportável) Vou jogar minha perna! ( E a perna caiu no chão vinda do segundo piso. Os meninos levaram um susto, se agarraram e o Luiz Felipe começou a tremer e sua irmã pediu calma e falou para a voz):

MARIA VALENTINA- Anda logo! Vai ficar aí, caindo os pedaços.

A VOZ- Vai a outra perna ( E cai); vai o braço, outro braço (E cai). E de pedaço em pedaço, o corpo foi caindo; por último veio a cabeça e em seguida, cai uma corrente, que fez um barulho estridente e assustador. Quando todo o corpo estava no chão, o corpo numa manobra esquisita se juntou, formando um homem alto, negro, forte, vestido de escravo e em seguida, a corrente o amarrou todo e ele começou a chorar e contar sua sina: que até aquele momento, se encontrava preso à casa, pois havia enterrado um tesouro no pé de castanheiras no fundo do quintal e só salvaria sua alma, se alguém desenterrasse o tesouro, mas até agora não havia encontrado ninguém com coragem, para resistir sua vinda, com tantos inimigos atrapalhando, inclusive o coronel, seu antigo senhor; assombrando quem ele procurava. Pediu que os meninos pegassem enxada e cavadeira e os seguisse, que iriam os levar até o tesouro. Nesse momento, houve portas fechando, janelas batendo, uma força jogando os meninos no chão; mas Maria Valentina encorajou o irmão que queria desistir e seguiram o escravo e debaixo de pedras, gargalhadas, titica de galinha e um barulho aterrorizantes de cachorros uivando, ventos uivantes e risadas tenebrosas . Os meninos começaram a cavar o chão e quando o dia já ameaçava a nascer; eles batem a cavadeira em uma vasilha e começam a retirar; era um pote de barro cheio de ouro bruto e diamantes. Então, o escravo sorriu e disse:

A VOZ – Por esse tesouro, eu apanhei, perdi meus dentes, minhas pernas, meus braços e por último, minha cabeça; tudo acorrentado. Pensei em comprar minha carta de alforria com ele a 200 anos atrás e só hoje, vou me libertar.

Nesse momento, suas correntes arrebentam e desaparecem e uma luz branca ilumina seu corpo, seu sorriso e ele entre lágrimas e sorrisos, pede a Deus para proteger os meninos e os aconselha a cuidar um do outro. Despede e vira uma fumaça branca como a neve e desaparece no espaço. E um vento forte, arrastando tudo e murmurando descontentamento, vai derrubando árvores e desaparece na mata.

Maria Valentina e Luiz Felipe, levam o tesouro para casa e nunca mais viu assombração e nem conheceu mais a pobreza.