O Escritor

O relógio antigo badalou meia-noite no escritório escuro. Escuro exceto pela luz mortiça que o monitor do computador de Enzo emitia. Fora o tique-taque incessante do relógio na parede também havia o som irritante das teclas do teclado à medida que o escritor digitava. Seu semblante imutável pela concentração e fantasmagórico pela penumbra. Com o nariz adunco quase colado a tela transmitia o que sua imaginação criava para a página do Word.

Enzo ergueu os braços sobre a cabeça e espreguiçou-se.

- Ufa, trinta páginas em uma noite.

Estava empolgado com a história. Não era uma de suas melhores, mas tinha bom gosto. Besouros era o nome. Talvez devesse apimentar um pouco a personagem, mas temia que isso rebaixasse sua obra.

- Uma porcaria pornô qualquer babaca pode escrever - disse ele, estalando os dedos.

Talvez devesse reabastecer sua caneca de café antes da próxima maratona. Pretendia escrever mais dez páginas antes das duas da madrugada. Era sexta e Samara dormia o sono da beleza desde as vinte duas horas. A mulher trabalhava como Operadora de Tele marketing e aquilo minava toda sua paciência. As dores de cabeça a faziam dormir cedo e Enzo não reclamava. Podia escrever sem o remorso de não estar dando a atenção devida à esposa.

Caminhou nas pontas dos pés e saiu do escritório. A casa estava escura, exceto pelas luzes do corredor. Seu escritório ficava ao lado do quarto e além deste ele podia ver a curva que o corredor fazia para a escada. Estava perturbadoramente escuro daquele lado. A cozinha ficava no andar debaixo e era por ali que ele teria que passar. O Timing da luz só seria acionado no primeiro patamar então ele teria que descer o primeiro lance de escada - oito degraus - em completa escuridão. Ele era um escritor e já publicara dois romances e mais de quinze contos para revistas, mas ainda assim era humano. E um humano com medo.

- É só chegar até a escada, porra - repreendeu-se em um sussurro. Se tivesse um cachorro o malandro estaria provavelmente em seus calcanhares. E com certeza não teria medo de ir encher a droga da caneca de café.

Por fim, Enzo conseguiu chegar ao patamar pensando em sua história. Ela lhe servia de distração quando houve aquele zumbido familiar e a luz surgiu.

- Que haja luz - falou e sua voz soou tão sepulcral que resolveu não dizer mais nada até estar de volta ao seu escritório.

Foi até a cozinha que já estava iluminada, pois o interruptor automático da escada acendia todas as luzes do andar inferior e abasteceu sua caneca. Voltou para a escada com aquela vontade de disparar correndo até o quarto. A vontade que temos quando crianças ao atravessarmos um beco escuro ou mesmo ao subir as escadas. Dizemos que não vamos correr, mas na metade do caminho o medo fala mais alto. Aquela sensação de que algo está atrás de nós e nos observa quando não estamos olhando. Causava medo, por Cristo e sempre causaria. Enzo já usara aquele artifício em dezenas de contos seus e funcionava.

O escritor repousou a caneca sobre a mesinha do computador e sentou-se com um suspiro de alívio. Não precisaria se levantar novamente até as dez páginas estarem escritas. Escreveria aquele capítulo e iria dormir. Foi quando estava na quinta página com suas pestanas pesando pelo sono que ouviu os cliques. Parou de digitar e virou o pescoço para trás ouvindo. Nada daquela vez. Voltou a digitar e depois de alguns segundos ouviu novamente.

- Que... - disse, parando novamente. Era um som agudo e familiar. Um clique. Onde ouvira aquele som? Parecia... pinças se abrindo e fechando.

Click, click, click

Estava ficando assustado. O coração disparou, as pupilas dilataram e o pulso acelerou. Adrenalina em suas veias. Mais cliques se adicionando ao primeiro. Logo havia uma orquestra no escritório de quatro metros quadrados. Levantou-se bruscamente derrubando a caneca no chão fazendo um Crash suprimindo todos os outros sons.

Enzo arfava como um cachorro que acabara de correr atrás de um gato. O cheiro de café tomou o aposento. Apertou o interruptor ao lado da porta apavorado e a luz se acendeu iluminando o escritório.

Silêncio. A caneca escrita “Para meu grande amor” dada por Samara espatifada em mil pedaços com café espalhado pelo chão. O relógio que era seu maior tesouro; uma verdadeira antiguidade seguia seu ritmo com o pêndulo a oscilar. A pequena estante com seus livros favoritos no mesmo lugar. Impecável.

- Você precisa dormir, cara - disse para si mesmo - Está ouvindo coisas.

Todo aquele barulho. Samara não acordara. Tal coisa era impossível. Qualquer ruído acordava a esposa. Por isso não tinham um alarme contra ladrões. Samara acordava com um simples suspiro ao seu lado, mas não tinha ouvido todo aquele barulho?

"A resposta é simples, meu chapa. Você imaginou tudo..."

Mais quatro páginas e depois cama, disse para si mesmo. No entanto, foi só se sentar em frente à tela que tudo recomeçou. Os cliques aumentando de intensidade como se um batalhão se dirigisse a sua porta. Levantou-se de uma vez e apontou a cabeça no corredor. O que viu foi pior do que qualquer coisa. Uma sombra negra movia-se pelo chão e parecia engoli-lo como uma onda engole a areia. Ao se aproximar da claridade que a luz do quarto lançava no corredor, Enzo viu que se tratava de milhares, não, milhões de besouros engalfinhados rolando sobre si em uma onda asquerosa. As longas pinças abriam e fechavam fazendo os cliques. Com certeza devorariam um animal de porte médio em questões de segundos. Enzo sabia, pois...

- Eu escrevi sobre eles...

Voltou para o escritório e fechou a porta com um baque tão forte que ela chegou a tremer nas dobradiças. Samara teria acordado com certeza. Enzo ficou lá encostado na madeira com a mão na maçaneta como se os besouros pudessem girá-la para entrar e devorá-lo. Por sorte a fresta na parte inferior não ultrapassava os três centímetros. Os besouros carnívoros de sua história jamais passariam por ali mesmo que se espremessem. Eram grandes. Por que tinha que tê-los imaginados tão grandes?

Estaria mesmo pensando o que sua mente sugeria? Sua história ganhara vida? Tal coisa era impossível, porém ali estava ele preso em seu próprio escritório e incapaz de gritar pedindo ajuda à esposa, pois esta seria devorada se saísse ao corredor. Entretanto, não demorou muito e os besouros começaram a roer a madeira.

Click, click, click

Olhou sobre os ombros. A janela estava aberta e a cortina vermelha oscilava por uma brisa. Enzo reuniu coragem e largou a maçaneta chegando ao parapeito da janela em dois grandes passos. Olhou lá para fora e tomando fôlego gritou.

- Socooorrro! Alguém me ajude! Alguém!

A rua estava mais deserta do que igreja em dia de jogo de futebol. As luzes dos postes criavam círculos amarelados no asfalto. Não havia vivalma. Ele olhou para baixo, para o que sobrou de uma árvore. Ele a cortara por bloquear sua visão. Samara foi contra e agora ele teve sua punição.

Foi ao se virar para a porta e constatar que logo os besouros abririam um buraco nela que notou seu celular sobre a mesinha do computador. Agarrou-o com as mãos tremendo e a primeira coisa que percebeu quando o visor acendeu foi aquele sinal irritante que indicava que “Você tem uma mensagem de voz”. Quem em juízo perfeito deixava mensagens de voz? Aquilo custava créditos a pessoa que as ouvia e era uma babaquice inútil de roubar dinheiro. Normalmente ele não ouviria, mas aquela era uma situação diferente. Discou *100 e esperou.

Seu coração acelerou e parou no instante que reconheceu a voz de sua mulher.

- “Oi Enzo. Não tenho muito tempo. Estamos recebendo muitas ligações hoje. Karla aquela vaca mandou que todas ficassem. Não sei que hora que aquela prostituta tirana vai me liberar então não me espere. Escreva bem, boa noite, amo você..."

Enzo ouviu a voz enjoada da secretária dizer que ele não tinha mais mensagens e então deixou que o celular caísse de sua mão espalhando capinha para um lado e bateria para o outro. Quando saiu do choque de descobrir que Samara não estava no quarto foi que se lembrou que ainda precisaria do celular para ligar para a polícia, controle de zoonozes ou para seu amigo Diego que ultimamente andava com uns caras da pesada e tinha uma espingarda calibre .12.

- Porra! - praguejou, arremessando o aparelho contra a parede ao descobrir que tinha se quebrado ao cair - Essas porcarias tochscreen.

Enzo colocou as mãos na cabeça quando notou que um dos filhos das putas dos besouros tinha passado - Deus sabe lá por onde - e estava parado diante de seu dedão prestes a arrancar um naco de carne. Com um som de nojo pisou com a havaiana na criatura que explodiu em uma gosma verde. Lascas caíam da porta. A certeza da morte iminente finalmente atingira Enzo quando ele olhou para a tela do monitor ainda ligado no capítulo. E se...?

Sentou-se na poltrona que rangeu ao seu peso e pôs-se a digitar forçando-se a ignorar o som dos cliques e pedaços de madeira arrancados. Não precisaria ser perfeito. Um final milagroso para os besouros.

“Enzo digitava com a velocidade de um profissional. Os besouros comiam a madeira na ânsia de sua carne. Mal ele sabia que aquela noite jamais acabaria. Contudo, por ora...”

Sentado em sua poltrona com sua esposa Melissa as suas costas o escritor Maurício terminava mais um de seus romances. Ela sempre queria o ver digitar a palavra FIM.

- Imagina se isso acontecesse? - ela indagou - Como o Enzo, ser um personagem de uma história e não saber disso? Fico arrepiada só de pensar.

Maurício girou na poltrona e abraçou a cintura da esposa.

- Não seja boba, meu bem. Eu sou o escritor e não há ninguém acima de mim.

Sr Terror
Enviado por Sr Terror em 22/10/2013
Reeditado em 22/10/2013
Código do texto: T4537588
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