Fazia algum tempo que eu e meu amado Dosan não produzíamos uma obra juntos... Este é um conto que era pra ser de um jeito mas acabou ficando de outro... Tipo uma receita modificada, com um resultado satisfatório no final!

 Alias, Julio Cezar Dosan não é só bom em escrever contos de terror, ele também é um excelente cozinheiro, só Deus sabe o quanto cuidado tenho para não engordar kkkkkk
 Obrigado pelo carinho dos leitores para conosco, obrigado por prestigiarem e,felicidades!!!

 

Bom Apetite!
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 Se você gosta de um prato fino (requintado, chique, apurado, elegante, primoroso, sofisticado), deveria apreciar as iguarias do Restaurante Casa Vallucci.
 Embora digam com repudio que os donos de lá são um velho pútrido e seu neto encapetado, que preparam todos os pratos, a comida de lá tem um gosto magnífico!
 
 Mas se querem mesmo saber o grande segredo do tempero, lhes recomendo que averiguem por si mesmos. Para tal feito, se faz necessário que entrem cautelosos pela porta dos fundos... Pulem a mureta baixa onde ficam as garrafas vazias e os sacos de lixo, fiquem a espreita atrás dos gigantescos botijões de gás e testemunhem em silencio a mágica acontecer... Mas eu disse em silencio, absoluto silencio, pois se forem pegos, podem fazer parte desta tal  “mágica”.
 Foi bem isto que aconteceu com Edvaldo. Ele tomou tanto cuidado para não ser pego... Mas, fracassou.
 
 Depois de jantar com sua noiva Estefânia uma suculenta carne ao molho de girassol e pasta de fígado levemente cozida com sangue grosso, Edvaldo lambeu os dedos e perguntou ao garçom:
 — Mas que carne é essa? Bovina ou suína? Frango eu sei que não é!
 — É carne humana, senhor. – respondeu o garçom, com a maior naturalidade do mundo.
 Estefânia riu, mas Edivaldo não. O garçom igualmente sério pediu licença é saiu, pomposo e firme, rumo á outra mesa.
 Mas aquela indagação permaneceu firme na cabeça de Edvaldo. E por mais que tentasse dormir, não conseguia, pois o gosto suculento daquela carne que lhe deu tanto prazer, não queria calar seu delírio. Poderia realmente ser de um ser humano?
 Há, estava tão bem cozida! O pedaço suculento deixava escorrer molho temperado com o corte da faca.... Quando levou o primeiro pedaço na boca, lambuzado com a pasta de fígado, Edvaldo não teve duvidas de que aquela seria a melhor refeição de sua vida. E o molho de girassol então? Deus meu... As sementes trituradas e semi-torradas estouravam em câmera lenta na sua boca, como que se a comida descesse até seu estomago tal qual uma caravana em festa! Os atritos da faca e do garfo no prato de porcelana soavam como musica, que ritmavam a excêntrica refeição.
 — Qual diabos é o segredo deste prato? – se perguntou após acordar de um sonho – Será mesmo carne humana? Búfalo? Avestruz?
 
 Na noite seguinte, lá foi ele novamente. Sozinho, sentou-se á mesa e olhou o cardápio. Linha por linha, vasculhava as palavras em busca de um prato que identificasse o tipo ou a origem da carne. Não encontrou, mas ao final do cardápio, viu um prato comum, comum em muitos e muitos restaurantes do mundo: o prato do chefe.
 No entanto, esta opção diferenciava-se por uma coisa: o preço.
 Era caro. Muito caro. Tão caro que era impossível alguém pedir, pois com aquele mesmo valor, seis ou sete pessoas comeriam fartamente inúmeras iguarias naquele mesmo restaurante:
 — Eu quero o prato do chefe. – pediu Edvaldo ao garçom.
 — Perdão senhor, mas não entendi.
 — Eu quero o prato do chefe. Acompanhado com o vinho Português Cavalo Maluco.
 O garçom arregalou os olhos enquanto tirava o pedido. De fato, do que ele lembrava, aquele prato nunca havia sido vendido. Ao menos nunca despertou um interesse tão obsessivo em alguém. O garçom chegou até a cozinha e espetou o pedido. O velho cozinheiro decrépito pegou a comanda, leu e se arrepiou:
 — Não creio! Quem foi o infeliz que pediu isto?
 O dedo foi apontado até a mesa 21, onde estava sentado o curioso Edvaldo.
 O velho conformado respirou fundo, olhou para o neto de apenas 12 anos e disse:
 — Sandrinho, vou precisar da sua ajuda.
 Os dois caminharam até os fundos do restaurante. O velho baixou a calça branca, deitou-se de bruços sobre uma bancada e pediu ao neto:
 — Corte um bom pedaço do meu glúteo. Arranque uma fatia um tanto grossa, um corte rápido e eficiente, sem outras dilacerações.
 O menino olhou com atenção para as nádegas de seu avô... Reparou lá uma enorme cicatriz, como que se um bom pedaço de seu traseiro já houvesse sido arrancado antes. O velho antes de morder uma rolha de vinho contou:
 — Já faz algumas décadas que alguém não pede o prato do chefe! Tinha esperança que com um preço tão alto, tal iguaria seria um luxo desnecessário. Me enganei.
 O velho de fato não gostava de desagradar seus clientes. O menino que era muito eficiente em seu corte, arrancou uma banda da bunda (hehehe) do velho avô. A dor era tão violenta que o ancião talhou ao meio a rolha entre os dentes.
 
 Fogo baixo e carne na frigideira, fritada com orégano, pimenta do reino e manteiga, com molho de casca de jiló e raspas de limão. O cozinheiro decrépito perfurava com o garfo repetidamente a própria carne fresca, no intuito de que o molho penetrasse.
 Sandrinho picava rapidamente abobora e berinjela. A batata souté cozinhava na panela de pressão. Edvaldo esperava sentado a mesa, comendo a salada de entrada enquanto bebia água e vinho, ansioso pelo prato principal da casa.
 Logo o sino da cozinha tocou. O garçom rapidamente coçou o bigode fino e foi buscar o pedido.
 A carne suculenta fervilhava com o molho em uma travessa de barro seco. Edvaldo foi servido. Cortou o primeiro pedaço e ao colocar na boca, antes mesmo de mastigar, chegou a uma conclusão: valia cada centavo!
 Da cozinha, o velho com a anca dilacerada sorria em tenra satisfação, olhando o cliente meticuloso matar sua doce vontade de comer algo insano e inusitado:
 — Vou subir o preço. – disse o velho chorando e rindo ao mesmo tempo – Ou subo ou tiro do cardápio, pois pela cara dele, vai pedir mais vezes!
 Ao fim, Edvaldo parecia dar-se por satisfeito. Limpou a boca e pediu a conta, deixando generosa gorjeta ao meticuloso garçom:
 — Preciso que me leve até a cozinha, pois quero agradecer e elogiar o chefe. Pode ser?
 Com tão gorda gorjeta, o garçom o levaria até mesmo a Disneylândia, se assim ele quisesse! Que nada, aquela cozinha exótica era bem mais interessante...
 O velho decrépito limpou as mãos no guardanapo para receber os cumprimentos do cliente exigente:
 — Devo confessar que nunca comi tão bem! O senhor e seu neto são dois grandes mestres na arte de cozinhar!
 — Obrigado. – agradeceu o velho tímido – Devo confessar que seu pedido me surpreendeu. Difícil foi garantir que a casca do jiló ficasse no ponto ao entrar em atrito com as raspas de limão, mas ao fim, deu muito certo.
 Mas aquela pergunta... Aquela maldita pergunta poderia ter passado despercebida... Poderia nem ter sido feita, mas foi:
 — E a carne? A carne é do que?
 O pequeno encapetado sorriu leve, o velho engoliu seco e respondeu algo ensaiado:
 — É segredo. Mas lhe garanto que tem boa procedência e é fresca.
 De súbito os olhos de Edivaldo encontraram a calça manchada de sangue do cozinheiro. O cliente percebeu o sangue esvair do ferimento grave, que mesmo tratado as pressas, ainda necessitava de cuidados. Teve exata certeza de que a afirmação debochada do garçom era verídica. Sabia a procedência da carne, e mesmo assim não sentiu vontade de vomitar.
 Saiu dali às pressas, pensando estar louco... Em devaneio, seus pensamentos entraram em conflito contra ele mesmo, e em revelia com suas convicções, tratou de se curar, chegando a um certo ponto:
 — Vou investigar! Preciso ter certeza de que fatos e coincidências não entrem em confronto na minha cabeça confusa! Preciso averiguar se o que comi é mesmo carne humana!
 Ele então se enfiou por entre os carros do estacionamento privado... Chegou até o portão dos fundos, destinado a fornecedores e entregadores. Já lá dentro, pulou a mureta baixa e desviou seus passos das garrafas vazias e os fedidos sacos de lixo. Ganhou um espaço por dentre os grandes botijões de gás, onde tinha visão total dos imensos freezers do lado de fora da cozinha. Ficou em absoluto silencio, certo de que não seria pego.
 Foi então que testemunhou o menino abrir um dos freezers. Sem cerimônias, Sandrinho arrancou de lá o tronco de um cadáver fresco, que mal teve tempo de congelar. Com cautela, arrancava filetes magros de carne, enquanto que Edvaldo testemunha sua hedionda façanha. Eis que a lamina afiada entrou em atrito com o osso da costela. O menino invocou com os ossos. Queria quebra-los. Olhou a sua volta, procurando pela marreta. Não a encontrou:
— Vovô! – gritou atrevido – Onde diabos esta a marreta?
 Quando ouviu uma garrafa se quebrar, Edvaldo arrepiou-se dos pés a cabeça. Ao virar-se, a marreta nas mãos do velho acertou em cheio o meio de sua cabeça. Com o golpe violento, caiu em cima dos sacos de lixo:
— A marreta esta aqui, Sandrinho. Esqueça os filetes desta carne. Teremos ingredientes frescos para o resto desta noite...
 
 Edvaldo acordou com o barulho da faca de açougueiro sendo amolada na pedra. Com a boca amordaçada, tentava gritar de olhos arregalados, mas não conseguia:
— Quanta ingratidão... – dizia o velho testando o fio da faca – Foi tão bem atendido... Tão bem servido... Lhe dei parte de mim para seu deleite, e mesmo assim, ousou adentrar em meus domínios no insano interesse de desvendar meus segredos ocultos... Lhe digo uma coisa, meu jovem refinado: queria tanto saber sobre meus segredos, que agora, és parte deles!
 O restaurante estava cada vez mais lotado e os pedidos não paravam de chegar...Os garçons apertavam os passos pelo salão, enquanto as frigideiras fritavam alho e cebola. O menino lia as comandas e falava:
— Filé ao molho de mostarda e pasta de fígado com tomate seco pra mesa 12! Ensopado de costela e legumes para a 3 e também para a 2! Posta ao molho madeira...
 E a lamina afiada talhava a carne fresca do homem curioso... O homem que mesmo inerte em sua dor, sentiu estranha gratidão ao lembrar-se do seu ultimo banquete: o prato do chefe.
 O garçom danado levava os pedidos frescos na mesa, servia os pratos dos famintos, enquanto que com um sorriso ensaiado, desejava:
— Bom apetite!
 
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Zeni Silveira e Julio Cezar Dosan
Enviado por Zeni Silveira em 25/10/2013
Código do texto: T4542095
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