No Necrotério

Ele tinha medo e isto era errado. Não, não, esquisito é uma palavra melhor.

Ele tinha medo, e isto era muito esquisito.

O cara trabalhava a dez anos ali, passava mais tempo no necrotério do que em sua própria casa, mas sempre que seu velho radio-transmissor era ativado e ele ouvia alguém lhe solicitando para descer até aquela sala escura no sub-sulo, seu coração disparava e ele ficava com medo.

Era esquisto, muito esquisito.

BIP fez o rádio e ele ouviu:

MARCELO.... COMPARECER NO NECROTÉRIO, GAVETA 67 PARA AUTOPSIA."

E assim ele foi, pegou o elevador e desceu até as profundezas do Pronto-socorro de Cachoeiras, o único Hospital da região.

"Maldito lugar que foram escolher para construir este hospital, justo nesta cidade pequena, onde tudo parece assombrado."

O pensamento era a mais pura verdade. Cachoeiras era conhecida por ser uma cidadezinha fantasma, repleta de lendas e boatos sobre espíritos e monstros inexplicáveis. Mas até este papo era coisa do passado, coisa que ninguém mais comentava.

"Só que eu lembro, eu esqueço dessas coisas". Respondeu Marcelo, novamente discutindo com parte de seu inconsciente.

É, As vezes as coisas seguem um rumo estranho, esquisito. Afinal, Marcelo, um cara que desde criança demonstrara uma certa sensibilidade em relação ao desconhecido e a morte, acabara caindo em um hospital, trabalhando como "enfermeiro" em um setor nada agradável.

"Eu não tenho medo, não sou nenhum galinha... Mas, este lugar é tão..."

Esquisito! Sim, o necrotério era muito estranho. Pelo menos quando visto de cima, da porta, de frente para as escadas.

Parecia um porão abandonado, ou melhor uma adega velha! Sim, igual aquela que o falecido George Denbrough tanto temeu, igual o lugar onde habita a Coisa.

Ele encarou os degraus e lá de cima conseguiu sentir o cheiro de morte.

"Cheiro de peixe podre" Foi o aroma que ele associou aos mortos, uma vez.

"É gente podre seu palhaço, gente!" Ele sabia e aquilo o deixava com ainda mais medo.

Desceu as escadas devagar, um passo de cada vez, era a primeira vez naquela noite que lhe haviam solicitado um dos cadáveres.

"Não sei o que dá nesses merdinhas de fazer autopsia essas horas? São o que? Duas, três da madrugada?"

Eram três, e a hora pouco importa.

Chegou aos pés da escada e caminhou em direção as gavetas. Andou assobiando, tentando mandar o medo embora.

A melodia de Dust in The Wind fora a primeira a vir em sua cabeça.

(I close my eyes)

Desviou das macas espalhadas por todos os cantos, por sorte todas vazias.

(Only for a moment, and the moment's gone)

O cheiro aumentou, mas já não importava, ele havia conseguido. Estava imerso em outros pensamentos. Iria chegar até a gaveta, retirar o corpo, lhe colocar em uma das macas, sair pelo fundos até o elevador da área de serviço e em poucos segundos estaria no laboratório, no segundo andar.

"São e salvo!"

Marcelo nunca havia pensado, mas a distribuição dos setores no Pronto Socorro de Cachoeiras era muito mal feita. O certo não seria a sala de autopsia ser no mesmo lugar que o necrotério?

Não sei, e a questão não vêm ao caso agora, o caminho de Marcelo já foi escrito e eu não tenho culpa.

(All my dreams, pass before my eyes, a curiosity)

Tirou as luvas do bolso e as colocou.

(All they are is dust in the wind)

Puxou a gaveta com o numero 67 e preparou-se para encarar o cadáver, se perdeu na música e em sua mente cantarolou outro trecho, para que assim, tudo fizesse sentido.

(All we are is dust in the wind)

Mas para sua surpresa, a gaveta estava vazia.

Deixou de assobiar, deixou de ouvir uma de suas músicas favoritas, deixou de pensar de maneira coesa.

Estava apavorado e era um medo esquisito.

"Não pode ser."

Antes de tomar uma atitude ouviu um barulho. Olhou para trás as pressas e a porta que havia deixado aberta, agora estava fechada.

"Por que você foi deixar a porta aberta???"

Só para ela fechar, apenas para isso. Só para lhe apavorar, fazer você borrar nas calças.

"Mas eu não fechei... eu não lembro, mas que merda!"

E então, na escuridão, Marcelo viu uma sombra. Estava parada no canto da parede, parecia lhe encarar.

"Ah meu Deus do céu, não pode ser, não pode."

(Reaja homem! Reaja!)

Ele fechou os olhos e se concentrou, tinha certeza de que aquilo não podia ser real, não mesmo.

Abriu os olhos novamente, mas evitou olhar em direção a suposta sombra. Fitou o chão (Ainda apavorado), e respirou fundo.

"Vou caminhar até o interruptor, acender a luz e pronto. TUDO ficará bem, é isso ai!"

Caminhou com calma, agora em silencio, não havia como mergulhar em outros pensamentos, pois estava mergulhado na escuridão.

Chegando onde ficava o interruptor, Marcelo pressionou o botão e o necrotério foi iluminado.

Outra vez ele respirou mais que o normal e assim, tomou coragem para olhar.

"A PORRA DE UMA VASSOURA! VOCÊ ESTAVA COM MEDO DE UMA SIMPLES VASSOURA!"

Sim, era apenas uma vassoura, mas isso porque a luz estava acesa. Certo?

Certo. Bom, pelo menos agora Marcelo está mais tranquilo, certo Marcelo?

"Isso, mais calmo."

Mas e o corpo, o corpo da gaveta 67, hein?

"O corpo está ali, ele só pode estar ali."

Com passos lentos e receosos ele seguiu em direção a grande gaveta.

E não, o corpo não estava ali.

Sentiu o coração subindo até a boca, estava sufocado, angustiado.

(All we are dust in the wind)

Não, não adianta! A porra do corpo ainda não virou poeira, ainda é carcaça! E está escondida em algum lugar! Pode estar te sondando Marcelo, pode estar prestes a agarrar seu pé.

Perdido em pensamentos ridículos, o homem nem percebeu o barulho feito atrás de si.

Ficou ali, em frente a gaveta vazia, procurando uma explicação lógica para tudo.

"Não há explicação! O defunto está solto, está rindo da sua cara nesse exato momento!"

Não ouviu o barulho dos passos se aproximando, chegando cada vez mais perto.

Estava paralisado, perdido.

Só saiu do transe quando uma mão agarrou sem ombro.

- Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhh

Deu um pulo, bateu com o joelho na gaveta 67.

Era medo e dor, mas ele nem sentia a dor.

- Desculpa cara, eu não achei que ia se assustar assim. Falou Gustavo, que não sabia se ria ou chorava.

Marcelo lhe encarou, branco de pavor.

(Filho da puta!)

- Filho da puta!

- Calma Marcelão, foi só uma brincadeira, você estava demorando demais.

- Não importa! Porra Gustavo, isso não é coisa que se faça cara, eu achei que era...

- Um defunto? Falou o outro enfermeiro sorrindo.

- Cala a boca.

Marcelo encarou o chão (outra vez) envergonhado.

- E o corpo? É pra hoje sabia, o Dr. tá esperando lá e cima.

Então Marcelo se espertou, aquele era o momento, a hora para provar o porque de estar agindo de forma tão esquisita!

- Você não vai acreditar cara, mas o corpo sumiu!

O silêncio pairou por um tempo, até que Gustavo respondeu.

- Tá falando sério? Não brinca com essas coisas cara.

"Ah agora você não é tão machão assim, neh?"

- Falo sério... veja você mesmo.

Gustavo caminhou até a gaveta e olhou dentro.

- Não é possível. - Comentou enquanto percorria com a mão o espaço vazio da 67. Então empurrou a gaveta para dentro, e neste momento explodiu em alivio. - Velho, olha aqui.

Marcelo olhou e perguntou sem entender.

- O que?

- Que número é esse?

- 67.

- Então, toma isso. - Gustavo retirou um papel do bolso e passou para Marcelo. - Confere ai, você só pode ter escutado errado, já falei para trocar a porra desse teu rádio.

Marcelo pegou a solicitação e se encheu de raiva ao ler que o corpo para a autopsia era o de nº 77.

Ficou vermelho de vergonha, de fúria.

Em silencio seguiu até a gaveta certa e de lá puxou um homem de aproximadamente 40 anos, que fedia peixe podre.

- Meu caro... você precisa dormir mais amigo.

(Vai tomar no seu cú!)

Marcelo não respondeu, apenas continuou com seu serviço. Não estava se sentindo bem. Sentia-se esquisito e não via a hora de chegar ao fim de seu expediente.

Mr Belzebu
Enviado por Mr Belzebu em 03/11/2013
Código do texto: T4555178
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