O Quintal

Desculpem a falta de tempo. Às vezes é preguiça mesmo, mas na maioria das outras vezes, é projetos antigos que ainda me sufocam...

Dentre a correria, estou criando coisas novas com um grupo cultural, espero lhes trazer boas novas em breve (nada de terror, por enquanto. É humor ao extremo mesmo).

Felicidades aos amigos leitores, nos vemos em breve, em outras linhas... Ou nessas mesmo.

Era uma antiga casa de madeira. Simples, tosca e velha, longe dos olhos das pessoas comuns da cidade pequena.

Mas em outra perspectiva, era esta casa o palacete particular de um homem raquítico e simples, absurdamente tímido e dono de uma personalidade totalmente calma.

Se chamava Fernando, mas os conhecidos o apontavam como “Caveira”, devido ao seu porte esquelético e desengonçado. Pobre homem magro, até ele próprio sentia pena de sua condição...

Se olhava no espelho manchado e se sentia totalmente desprovido de carne. Às vezes tinha a nítida impressão de que apenas uma fina camada de pele lhe cobria os ossos brancos e secos. Sabia que isto espantava as pessoas, sabia que as mesmas o olhavam com desprezo, lançando piadas sujas e comentários sarcásticos contra sua aparência fúnebre.

Trabalhava em uma metalúrgica de fundo de quintal para um patrão jovem e medíocre, que explorava todo o potencial que ele tinha e pagando uma miséria. Se mantinha como podia vivendo humildemente, totalmente desprovido de qualquer luxo.

Ia todas as manhãs de domingo à igreja do Padre José, este, era o único que o respeitava como homem comum, o único que lhe dava conselhos e ouvia sua voz rouca e tímida, voz de alguém que já estava cansado de viver entre as pessoas normais que o abominavam por não ser como elas.

Padre José administrava a igreja que ficava no meio do Cemitério Jardim da Saudade, e embora o local fosse cercado por tristezas, era sempre lotado de fiéis que iam as missas rezar por eles e pelas almas dos entes queridos que se foram.

Fernando sentia-se bem na igreja fúnebre, parecia que não estava sozinho, parecia que os esqueletos sepultados eram sua sagrada companhia, e que os vivos dentro do salão paroquial, estavam totalmente em desvantagem! Isto o anestesiava, lhe gritava na alma um bem comum que o fazia respirar de novo e ser quase como eles. Quase.

Tinha o vicio grotesco de comer pequenos insetos. Não o fazia perto das pessoas, pois sabia que aquele costume nojento lhe renderia apelidos piores do que já tinha. Saboreava os grilos, besouros e até mesmo as baratas cascudas quando ninguém estava olhando... Fechava os olhos e sentia na boca as garras e asas se baterem entre seus dentes, até finalmente serem esmagados pelos seus dentes largos e engolidos, tal qual um delicioso banquete.

Era este seu único vicio, seu simples luxo, a única coisa que o fazia se sentir sereno e tranquilo.

No entanto, chegou o dia em que os fatos foram demais para o homem magro. Não suportou as chacotas, os risinhos escondidos e os comentários maldosos. Desligou a maquina de solda, encarou o patrão com os olhos fundos, alisou os cabelos crespos e soltou a voz tímida e rouca para pedir demissão.

Decidiu viver só, as suas próprias custas, tendo apenas sua própria e repugnante companhia nos dias que traçou para serem os últimos. Se refugiou em seu mundo, em sua casa cercada por grades de ferro que ele mesmo havia feito na metalúrgica, na esperança surda de que fosse aquele seu tumulo, seu abismo imundo onde podia se atirar a qualquer momento, sem culpa, sem pudores, se alimentando do que tinha e mascando entre os dentes grandes e amarelos os insetos que tanto apreciava.

Trancou os portões grossos e os soldou, para nunca mais querer sair dali.

Na terceira semana sem a presença do amigo na missa, Padre José foi até sua casa. Bateu em seu portão mas não foi atendido, parou de gritar o nome de Fernando e enfim compreendeu sua decisão. Sabia que aquele mundo mesquinho jamais entenderia um homem igual a ele.

Como era de se esperar, ninguém se preocupou com a decisão do pobre Caveira, que se mantinha como podia, passando meses e meses dentro de seu plano de fuga. Quando o pouco de comida que tinha estocado se acabou, não viu outra saída a não ser pensar no suicídio. Segurou o pote de veneno para rato e pensou nos sermões do Padre José, sermões sobre a decisão covarde do ato extremo.

Foi bem por isto que decidiu que não se mataria, mas também não quebraria os portões soldados e se agruparia ao mundo dos que lhe rejeitavam.

Sua casa velha, lar dele e de insetos rastejantes, passou a ser sua base e sua rendição. Danou-se a comer apenas os pequenos vermes que saiam de seu jardim seco, dentre as folhas podres e murchas do ultimo outono. Capturava as ligeiras baratas que escapavam do assoalho podre e as comia, se extasiando do mais intenso prazer... Vez ou outra ia mais além, caçava os filhotes de ratos que nasciam dos ninhos do sótão e os devorava com o maior prazer do mundo. Quando nada encontrava, acendia uma luz fraca em seu quintal limpo, em meio à terra dura. Os besouros vinham em direção à claridade e caiam tontos, se esperneando no chão frio. Fernando os pegava da terra e os devorava com fome e desespero.

Era um grotesco mas se sentia feliz, e além do mais, preferia aquilo há viver em uma sociedade perfeccionista e preconceituosa, onde os olhos lhe buscavam e as bocas sujas escarravam comentários ardilosos e primitivos sobre sua aparência seca. Os insetos e ratos era um luxo comparado àquela desgraça toda!

Em uma noite acinzentada, os domínios de Fernando foram invadidos por três moleques sujos. Garotos vândalos residentes na cidade vizinha. Pularam as grades altas e adentraram no quintal espaçoso.

Um deles pisou na lâmpada apagada no chão, ao estalar do vidro, os olhos fundos de Fernando se abriram e ele se levantou, olhando pela fresta da parede de tabuas a pequena gangue de delinquentes juvenis.

Ele que até então estava retido em sua insignificância, se escondeu de medo, segurando uma faca enferrujada. Rezou em voz baixa rogando há todos os santos, pedindo para que os pivetes não adentrarem em seu lar. No entanto, suas preces não foram ouvidas por nenhum sagrado.

O primeiro menino entrou em sua casa, arrombando a fraca porta trancada. Revirou suas coisas, seu armário vazio e suas roupas surradas jogadas no sofá. Ele tremia de medo embaixo da cama de solteiro, apertando o cabo de madeira da faca, torcendo para não precisar usa-la...

De repente, outro menino entrou e foi direto em seu quarto. Fernando o viu perder o interesse em seus objetos bobos, ouviu o zíper da calça jeans se abrir e a urina despencar no piso de madeira. A pequena poça escorria pelas tabuas e seguia até seu rosto... O Caveira torcendo para não ser percebido, ficou imóvel e sentiu a urina lhe molhar a face. O terceiro menino entrou e repudiou a ação do amigo:

— Cara! Que coisa nojenta ficar mijando no chão de uma casa! Você é um desrespeitador! Aqui pode ser o lar de alguém!

— Não seja ridículo! Quem iria viver em um lugar desses? Aqui já fede bastante, já esta podre o suficiente pra eu entender que uma mijadinha não fara diferença nenhuma.

O menino chacoalhou o pinto e o guardou. Viu a cama e sorriu. Soltando o espirito infantil que ainda o acompanhava, subiu nela e começou a pular, feito um macaquinho. O terceiro menino segurando a bíblia velha entrou no quarto, olhou para o amigo e jogou o livro sagrado na poça de urina, pulando na cama tal qual o outro. Do chão, o terceiro menino antes de pular junto indagou:

— Depois eu sou o desrespeitador!

Os três vândalos pulavam aos risos, se apertando no espaço pequeno e dando saltos e mais saltos, prestes a quebrarem o leito do Caveira.

Fernando temeu que a cama velha quebrasse e os três pivetes lhe esmagassem. Sem alternativas e no desespero de sua agonia, espetou a lamina enferrujada no colchão e torceu por um dos pés gordinhos pisarem sobre ela.

Durante a aterrissagem de um belo salto, o pé de um dos moleques caiu como um abacate podre sobre a lamina pontiaguda, que o atravessou do outro lado. Fernando a puxou e o sangue lhe respingou na testa, enquanto escutava o garoto urrar de dor e medo.

Um dos amigos o acudiu, enquanto que o outro olhou debaixo da cama, para ver o que havia atravessado o pé do amigo. Instintivamente o Caveira segurou em seus cabelos e riscou a faca enferrujada sobre seus olhos. A lamina ainda suja rasgou os rasgou, chegando a raspar no osso. Fernando por puro instinto, enfiou a faca na boca aberta do menino que mal teve tempo de gritar.

O outro delinquente estranhou o amigo bater as pernas e o puxou. Viu sua face dilacerada.

Gritou alto enquanto o magrelo saiu debaixo da cama e lhe cravou a faca bem no meio do peito. Fernando encarou o menino com o pé perfurado, este já não tinha forças para gritar. O Caveira se aproximou lentamente dele e lhe cortou a garganta.

Antes de morrer, o vândalo tentou estancar o sangue que lhe escorria em abundancia, enquanto via os dois amigos mortos e o magro lhe observando dar o ultimo suspiro...

O caveira em seu próprio desespero, arrastou um a um os três jovens cadáveres até seu seco jardim.

Para se livrar dos corpos, decidiu enterra-los. Cavou com extrema dificuldade a terra que mais parecia pedra. Depois de abrir uma enorme valeta, que se parecia bem de longe com um tumulo, jogou lá dentro os três corpos frescos. A terra dura caia sobre os três cadáveres amontoados. O magro suado e rangendo os dentes, rezava para nunca ser descoberto, ao mesmo tempo. Lamentou pelo seu instinto, que se acendeu alto devido à súbita invasão.

Quando o tempo correu e o desaparecimento dos três jovens da cidade vizinha passou a ser um mistério, o delegado Belchior fez uma visita matutina á propriedade do rapaz raquítico. Fernando arrebentou a solda do portão e o recebeu, com a maior cara de suspeito do mundo. Ficou incomodado com a presença do desconfiado homem da lei, mal olhou para os olhos da autoridade que lhe entupia de perguntas.

O homem robusto de meia idade, desconfiou de tudo o que via. Adentrou na casa e ficou atento a qualquer evidencia, evidencias que Fernando teve tempo de sobra para apagar durante todas as duas semanas depois do crime.

A faca sem vestígios foi encontrada dentro da pia. O delegado ignorou a lamina ainda com sinais de ferrugem. Respirou fundo, limpou a camisa suja de poeira e andou pelo terreiro vazio. Viu ao lado da lâmpada no chão os cacos da outra:

— Porque tens uma lâmpada no chão, bem no meio do quintal?

Fernando pisando sobre o tumulo escondido dos garotos, sorriu com seus dentes grandes e respondeu rápido:

— Minha mãe dizia que trás boa sorte.

Belchior olhou a velha casa da Caveira e disse sorrindo:

— Não parece ser o tipo de sujeito que tem boa sorte.

O Caveira sorriu incomodado, baixou a cabeça com os olhos no chão que cobria as carnes pútridas dos três jovens e respondeu:

— Algumas pessoas tem muito menos, senhor.

O delegado sorriu também, botou na cabeça seu chapéu e antes de partir, o alertou:

— Você esta certo. Mas vou te dizer uma coisa: logo o delegado da cidade vizinha onde os meninos moravam virá em sua casa e começará a fazer um bocado de perguntas. É bom que sua sorte ajude a respondê-las melhor do que desta vez, pois aquele sujeito não tem o mesmo estilo que eu. Ele é perigoso, do tipo que bate e depois pergunta. Sabe que eu e ele temos uma... Uma pequena rivalidade, não?

— Ouvi dizer sim – respondeu com a voz quase sumindo.

— Pois bem, este homem fará de tudo para provar que sou um grande idiota. E se ele vir até o seu jardim e ver o que você tem plantado... Nossa! Ele certamente vai querer encher nosso cú de cisco!

— Eu sou inocente, doutor...

— Todos somos Fernando. Todos, menos os moleques da cidade vizinha que irritam nossos moradores, não?

Quando o delegado entrou na viatura, Fernando levou as mãos na cabeça e temeu ter sido descoberto. Correu para dentro de casa, se banhou e vestiu o velho terno de missa. Montou desengonçado na bicicleta e pedalou até o Cemitério Jardim da Saudade, onde ficava a igreja do velho amigo Padre João José.

Os presentes na missa das oito horas encararam o homem ainda mais magro que antes, o admiraram enquanto seus passos curtos procuravam por uma cadeira vazia na igreja lotada. Os olhos dos fiéis testemunhavam com desprezo seu corpo esquelético vagar pelo corredor do imenso salão paroquial. Não encontrou lugar nas cadeiras, o Padre feliz pela chegada do amigo, desceu do altar e o abraçou, antes de prosseguir com a missa que já estava pela metade.

Fernando desconfortável assistiu o resto da missa de pé, rezando para o sermão passar logo. Quando passou e os fiéis foram embora sem ao menos lhe olhar. Acostumado com tanta indiferença, caminhou até o amigo Padre, lhe sorriu e sem fazer rodeios, contou seu problema absurdo:

— Padre José, eu cometi um grave erro. Fui imprudente e atentei contra três vidas inocentes...

O Padre ouviu boquiaberto a confissão do amigo que contou os detalhes do desespero e do assassinato dos três meninos sujos. Após ouvir, o Padre confuso tentou manifestar sua opinião:

— Bem... Os três eram vândalos, arruaceiros que vinham cometer delitos em nossa cidade. Mas mereciam sorte melhor, Fernando... Eu realmente não sei como posso te ajudar...

Diante das mãos atadas do amigo, Caveira caminhou pelo cemitério totalmente sem rumo, temendo que a ameaça da chegada do delegado fosse verdade.

Todos conheciam a maldade daquele homem sujo, que era conhecido como “criatura dos infernos”. O Caveira sabia que ele era mal, que guiava a lei com braços de ferro, massacrando os mal feitores antes de joga-los nas grades. Toda vez que pensava no confronto com tal ser, tremia a ponto de bater os dentes de medo... Não podia ser descoberto! Não podia!

A noite choveu forte. Fernando suava de dar pena em cima de seus lençóis limpos. Escutou um barulho vindo do seu quintal... Os olhos fundos e amarelados se abriram com o ranger das tabuas. Mãos batiam nas paredes e desciam nelas, causando um incomodo som aos seus ouvidos.

Ele levantou-se da cama apertada e olhou pela fresta da parede de tabuas. Viu o local do tumulo clandestino, próximo à lâmpada ainda acesa. Olhou a tento a terra eslamaçada se mexer, como que se os garotos tentassem sair do sepulcro... Os olhos do homem magro contemplaram os meninos brotarem da terra e respirarem o ar dos vivos, ele em todo seu desespero e descrença, sentiu seu coração fraco disparar... A mão pesada bateu ainda mais forte próxima a seu rosto, quebrando a tabua da parede velha. Caveira tentava gritar e não conseguia, os meninos quebravam as paredes sem dificuldades e entravam no quarto da casa velha, podres e molhados pela chuva, atacando famintos seu algoz..

O Caveira sentia os vermes lhe pingarem na face magra... Enfim gritou e acordou assustado do maior de todos os seus pesadelos.

Levantou-se ainda tremendo e olhou em meio à chuva forte o tumulo intacto. Naquele exato momento, a lâmpada estourou, graças à agua que despencava em abundancia.

Fernando caminhou inseguro pelo quintal, então viu a terra fofa. Em seu medo, correu até o orelhão na beira da rodovia e discou para Padre José:

— Padre! Preciso que me ajude!

A velha Caravan entrou no quintal, enquanto Fernando desenterrava os cadáveres pútridos. O Padre desceu do carro e encarou o Caveira, que cavava em meio a lama. Abriu a traseira do veiculo adaptado para carregar cadáveres e arrancou três sacos pretos.

Depois de arrancar do buraco terra e lama, a pá entrou em um dos crânios. O Padre fez o sinal da cruz:

— Deus meu, homem! Poderia ser mais cauteloso!

Fernando soltou um leve sorriso enquanto puxava a pá de dentro da cabeça do morto. Com cautela, tirou o primeiro corpo e o enfiou em um dos sacos. Dentro da valeta, em meio de toda a lama, vasculhou com as mãos a procura dos outros dois corpos, os dedos magros e cumpridos encostaram-se aos botões da camisa de um e ele sorriu vitorioso. O Padre tentando tapar o nariz com a manga da batina, não teve outra escolha a não ser ajuda-lo a puxar o cadáver podre e eslamaçado do garoto mais gordinho, este depois de ensacado foi jogado na Caravan junto do outro.

Fernando revirou toda a lama em busca do terceiro corpo. O Padre impaciente olhava o sol apontar no horizonte e gritava:

— Rápido com isto homem! Esta amanhecendo... Temos ainda que enterra-los no cemitério!

— Não consigo achar o outro corpo – disse o homem magro revirando em desespero toda a cova clandestina – Tenho certeza que joguei os três aqui!

Cavou mais e mais... Não conseguindo achar o terceiro morto. O medo dominou seus olhos grandes, o Padre enfiou o saco vazio no meio dos outros e deu o veredito:

— Tarde demais! Precisamos ir agora! Tape este buraco e vamos logo. Depois pensamos no que fazer...

Dentro do carro, Fernando tentava chegar a uma conclusão do que teria acontecido. O Padre dirigindo rápido rumo ao cemitério, perguntou eufórico:

— Tem certeza que realmente jogou os três na mesma cova?

O magro o olhou em choque e respondeu:

— Tenho sim! Arrastei um por um de dentro da casa, cavei o buraco fundo, os joguei e enterrei!

Padre José o olhou com mais seriedade e fez nova pergunta:

— Mas tem certeza de que ele estava realmente morto?

Fernando pensou no dia do crime... Da primeira facada atingindo o pé de um, a segunda e terceira rasgando e entrando na cabeça do outro... A quarta facada no peito do terceiro menino... E a faca rasgando a garganta do primeiro, o que teve o pé furado.

É, chegou à conclusão de que os três estavam realmente mortos. Olhou para o amigo e arriscou:

— Talvez alguém tenha o arrancado de lá!

O Padre tentou pensar do seu modo. Achava difícil que um homem magro daquele poderia derrubar tão rápido três garotos fortes como os maloqueiros da cidade vizinha. Ficou confuso e serio, pensando no corpo desaparecido... Se ele não fugiu ferido da cova, possivelmente alguém o arrancou de lá. Possivelmente.

— Contou a mais alguém sobre esses assassinatos?

— Não. Mas o delegado Belchior foi até lá e me encheu de perguntas. Tenho certeza de que ele descobriu!

O Padre finalmente riu:

— Belchior é esperto... Deve ter investigado estes três desaparecimentos dando rizada. Ele tentou pegar esses três calças curtas. Sabia que eles andavam aprontando feio aqui na cidade... Sempre os levava para a delegacia, mas depois os soltava, certamente temendo a irá do Delegado Sandro. Os pestinhas invadiam residências, roubavam o que queriam e quebravam o que não queriam. Sou capaz de acreditar que se ele sabe que cometeu tais assassinatos, quando quiser te pegar dará um tapinha em suas costas e lhe dirá: “muito bem, Fernando”, antes de te enfiar atrás das grades.

O Padre gargalhou, mas o amigo magro com as unhas cheias de terra, não ria. Apenas tentava pensar no que teria acontecido com o terceiro corpo:

— Foi o garoto que eu havia degolado – disse olhando a frente – Vivo eu sei que ele não esta. Acredito que alguém o tirou da cova... Não vi vestígio de quem o fez, mas como poderia? A chuva pode ter apagado... O pesadelo que tive pode ter me confundido... Eu já não sei mais... Só quero que isto acabe...

O Padre voltou a ficar serio. Entrou nos portões abertos do cemitério e dirigiu até as covas novas.

Os dois sacos foram jogados dentro de um tumulo recém cavado. Fernando o cobriu com a terra molhada, sem deixar de pensar no terceiro cadáver.

Na cozinha da igreja, o Caveira já banhado tomava o café feito pelo Padre, enquanto tentava colocar a cabeça no lugar:

— Preciso achar o corpo... Eu preciso!

Padre José olhando o cemitério da grande janela manifestou sua opinião:

— Talvez fosse melhor você se entregar...

Fernando se levantou, e de cabeça baixa respondeu:

— Pensei em fazê-lo. Mas assim, eu estaria nas mãos do Delegado Sandro... E isto é pior que a própria morte! Ele me esmagaria como há um inseto! Assassinato, ocultação de cadáver... Pode escolher por quais formas o maldito me condenaria!

O Padre chegou no consenso de que estava feito, não haveria como mudar e a condenação só iria piorar tudo.

— Vou pra casa. Vou cavar o quintal todo e tentar achar o corpo. Talvez em meu delírio eu o tenha sepultado mais fundo que os outros... Já não sei mais...

O Padre o abraçou:

— Sabe que pode sempre contar comigo. Caso encontre o corpo, me ligue que faremos com ele o mesmo que fizemos com os outros dois. Certo?

O Caveira sorriu leve, caminhou de a pé até sua casa distante. No caminho pensou em todos aqueles planos sujos, nas reações inesperadas e na ajuda do grande amigo. Pensou também que talvez o Delegado Belchior poderia ter invadido seus domínios e desenterrado um dos garotos... Mas a troco do que? O coração disparou quando viu a viatura do Delegado Sandro estacionada quase em cima de sua calçada. Apertou os paços e caminhou em direção ao confronto.

Sandro pisava sobre a lama do tumulo recém coberto. O coração descompassado do Caveira bateu mais forte que nunca. Entrou apressado dentro do quintal e ouviu o homem serio dizer:

— Ainda não revirei a cidade de merda de vocês. Mas daqui, só daqui, olhando para este seu quintal e sua casa velha, encontro motivos para acreditar que sabe de alguma coisa. Alias, sou capaz de acreditar coisas que vão além disto. Sou capaz de acreditar que você não só sabe o que aconteceu, mas também, fez acontecer ou ajudou a acontecer.

Fernando sorriu constrangido, abriu os braços e se defendeu:

— Já fui interrogado pelo Delegado Belchior. Nadas sei sobre os garotos e...

— Belchior – disse o homem frio ensaiando uma risada – Belchior investigou do jeito dele. Certamente te fez as perguntas erradas, como sempre faz com os suspeitos que interroga. Eu estou aqui para fazer as perguntas certas e tenho extrema convicção de que você me dará as respostas certas...

— Eu adoraria ajudar, mas estou sempre em casa, raramente saio e...

Antes que pudesse terminar de falar, um soco forte lhe preencheu todo o rosto... Caiu sentado na lama, enquanto o delegado alisava a mão machucada ao confrontar com os ossos do crânio do Caveira:

— Ainda não terminei de dizer, raquítico de merda! – indagou alto totalmente sem paciência – Ainda nem cheguei a te perguntar nada, e quando eu o fizer, as respostas viram pro bem ou pro mal! O seu delegado bananão recolheu depoimentos. Ninguém na cidade viu os garotos. Eles eram tipos fáceis de notar, eram baderneiros, faziam estardalhaços pela rua. Eu acredito que eles fizeram uma parada aqui. Pularam ou arrombaram esses portões altos, entraram em sua casa podre e você não sei como, conseguiu dar um jeito neles. Acho que agora já estou pronto para te perguntar, e espero que o soco não tenha feito um estrago tão grande assim, a ponto de você não conseguir me responder o que quero saber.

Fernando se levantou da lama, prestes a ouvir as perguntas, cujas respostas já sabia, e que possivelmente não diria. Nao sem a certa persuasão:

— Conhecia os três garotos?

— Sim. Todos os conheciam. Eu já os vi pela cidade.

— Muito bem... Estamos indo muito bem , meu rapaz!

Fernando tentou se limpar da lama, enquanto o delegado sorria e arriscava nova pergunta:

— Você os matou?

Ficou em choque. Olhou serio para o delegado e respondeu audacioso:

— Mas é claro que não!

Sandro aproximou do magro, o segurou pelos cabelos e afundou sua cara na lama. Sorriu quando o puxou de volta:

— Tens um quintal bem grande aqui... E com toda esta lama e a casa velha de fundo, se parece bem com um grande chiqueiro! Mas acho que este espaço pode ir além disto. Sou capaz de acreditar que todo este mar de lama, poderia ser antes disto um cemitério. Não um cemitério igual onde fica a igreja do seu amigo Padre, talvez um cemitério clandestino! Acha que se eu cavar acharia alguma coisa aqui?

Fernando todo eslamaçado não respondeu:

— Fiz uma pergunta. Combinamos que você responderia. Certo?

— Não matei a merda daqueles garotos – indagou em ira, olhando friamente para o Delegado.

Sandro esfregou novamente a cabeça do rapaz magro na lama. Se levantou e o chutou sem piedade. Arrumou a farda suja e disse calmo:

— Mas é claro que não os matou... Meu Deus! Esta foi a minha segunda pergunta, e me lembro que você a respondeu. Perguntei se poderia ter sorte cavando alguns buracos por aqui! Foi isto que perguntei, mas estou vendo que você não esta disposto a colaborar... Pois bem, você esta preso. Suspeito pelos assassinatos de Paulino Silveira Carmo, seu irmão Osvaldo Silveira Carmo e o primo Gustavo Prudêncio Carmo. É capaz de entender isto?

Antes que pudesse algema-lo, viu a viatura do Delegado Belchior estacionar ao lado da sua. O sujeito saiu calmo e caminhou até eles:

— O que acha que esta fazendo, Sandro?

— Interrogando do jeito certo um forte suspeito de triplo homicídio.

— Eu já conversei com ele ontem pela manhã. Esta longe de ser culpado. Não passa de um pobre coitado.

— Coitado ou não, a casa dele fica no rumo de sua cidade... E acredito que este foi o ultimo lugar que eles estiveram...

— Um corpo foi encontrado a 600 metros daqui, no meio da mata fechada. Possivelmente é de um de seus garotos. Estou com um suspeito detido na minha delegacia.

Delegado Sandro se espantou. Olhou para o magrelo na lama, se voltou a Belchior e sorriu desajeitado. Puxou Fernando de toda aquela sujeira, o algemou e disse tentando ser dono da situação:

— Você tem seu suspeito e eu tenho o meu. Vamos até o corpo, depois seguimos até a sua delegacia e averiguamos tudo.

Foram na viatura de Belchior, que rumo à mata fechada, ia dizendo:

— Uma denuncia anônima me levou até o cadáver. Um sujeito estava nas proximidades, o corpo já estava podre. Ao ser interrogado ele riu e disse que teve sua vingança. Estava visivelmente alterado, não encontrei os outros dois corpos, mas estou certo que ele nos dirá a localização.

Sandro olhou para o banco de trás e sorriu para Fernando:

— É cedo demais pra você respirar alivio meu rapaz. Esta historia ainda está muito mal contada, mesmo vinda da boca de um delegado.

Belchior sorriu:

— Não devia ser tão desconfiado, Sandro. Só estou fazendo meu trabalho. Você aparentemente esta “tentando” fazer o seu.

— Fazendo? – perguntou aos risos – Como aquela vez no posto da Rodovia dos Imigrantes, onde deixou passar batido um traficante suspeito que foi liberado por você e entrou em minha cidade com 3 quilos de pó?

Belchior sorriu, olhou desconcertado para Sandro e se defendeu:

— Dois quilos e trezentos. Mas ao fim deu tudo certo, não?

— Não graças a você. Mas é perfeitamente compreensivo. Não se espera muito mesmo de um Delegado indicado pelo tio Deputado.

O carro parou na mata e os três desceram. Se enfiaram no meio das arvores, seguindo Belchior que conhecia o caminho da desova. Fernando algemado acompanhava a tudo, esperançoso para se safar.

A uns 400 metros da estrada, virão o cadáver do garoto largado no chão, sem as roupas e totalmente pútrido:

— Ai está um de seus garotos. Já tenho alguns homens revirando a mata à procura dos outros dois. Estou certo que teremos sucesso nas buscas.

Sandro se ajoelhou junto do cadáver:

— Ainda muito mal contado... Como pode encontrar um suspeito próximo a um corpo podre destes? O que um assassino fazia próximo a uma vitima desovada?

Belchior sacou sua arma. Colocou na cabeça do delegado ajoelhado e disse sorrindo:

— Pra ser sincero eu bem conhecia seus moleques. Eles não vinham até minha cidade para vadiar, não senhor... Depois que você prendeu o sujeito dos dois quilos e trezentos, fiquei meio sem ter como sustentar essa cidadezinha de merda. Eles aceitaram fazer as entregas pra mim, mas este idiota aqui acabou por mata-los. Sabe Sandro, sempre admirei sua competência. É irônico saber que isto ira te matar!

Sandro o olhou nos olhos e cuspiu ira:

— Errado! Um babaca ira me matar!

Belchior riu engatilhando a arma:

— Tem quase toda a razão, mas em meu ponto de vista, babaca é aquele que cai primeiro! Eu desenterrei este pivete de merda do quintal deste coitado e o trouxe aqui, para te atrair e mostrar o quanto me preocupo com você!

Belchior disparou sem remorsos, fazendo corpo do outro delegado caiu sobre o cadáver podre do garoto. O policial calou seu sorriso, procurou pelas chaves das algemas, soltou Fernando e disse serio:

— Sei bem o que fez, mas não é essa o tipo de situação que eu lamento. Lamento por ter perdido a ponte entre eu, as drogas e os nossos vizinhos. Mas quer saber? Pontes podem ser reconstruídas, já um empecilhos destes não se pode matar todos os dias. Vou te dizer o que você fara: enterre esses dois imbecis! Livre-se da maldita viatura que faço vista grossa desta merda toda! Depois disto, retenha-se a sua insignificância e continue a viver sua vida imbecil, em sua casa velha!

Fernando com a boca ainda sangrando sorriu, como há tempos não sorria.

Padre José o ajudou a cavar uma valeta bem grande, onde coube perfeitamente o Delegado Sandro e o garoto que tanto procuravam. Depois de se livrar do carro, abandonou a velha casa e se dedicou a um novo emprego:

— Quero que trabalhe no cemitério – disse o Padre depois de ter conversado com o Prefeito – Consegui pra você o oficio de coveiro. Sei que é muito pouco, endereçado a um metalúrgico profissional...

— Pra mim é mais do que perfeito, meu Padre – respondeu Fernando, o Caveira, apertando com afinco o cabo da velha pá.

Dentro da igreja, a barata cascuda cruzou o escritório do padre, que errou a chinelada no bicho grotesco. Ela em fuga desceu até o salão, onde um corpo estava sendo velado. Antes que chegasse próxima ao caixão do homem morto, Fernando pisou sobre ela... Pisou com muito cuidado para não esmaga-la.

Enquanto a pobrezinha tentava escapar debaixo dos seus sapatos engraxados para a fina cerimônia, e enquanto o povo velava o cadáver, Fernando se abaixou calmamente e pegou o inseto na mão, alisando sua casca lisa.

Rapidamente, o jogou na boca. Sentiu as anteninhas lhe rasparem na lingua, fechou os olhos em intenso prazer e a apertou entre os dentes... O inseto foi esmagado, ele sorriu satisfeito.