*O MORTO* (continuação do conto do LUCIANO SILVA VIEIRA)

**ESTE TEXTO É A CONTINUAÇÃO DO CONTO "O MORTO" DE LUCIANO SILVA VIEIRA.

Nunca esquecerei o dia em que o vi: o morto.

O homem morto jazia no chão, seus olhos, tais como duas diminutas esferas de vidro, refletiam o vazio.

“Ele pulou” – falou alguém – “o pobre coitado se matou.”

Nunca havia visto um morto antes e na minha mente infantil aquele acontecimento marcava uma fronteira em minha curta existência, pela primeira vez me dava conta da finitude da vida, não éramos eternos como pensava até então, um dia a vida acaba.

Assim deixei o morto, mas o morto não me deixou. Foi comigo em meus pensamentos, seus olhos de vidro se abriam sempre quando eu fechava os meus...

Foi assim que naquele dia resolvi matar aula. Depois de ver o morto simplesmente atravessei a rua e desviei da multidão que se formava em volta do corpo. Eu sentia um frio na alma, uma solidão inexplicável. Corri o mais rápido que pude, quase me perdendo entre as ruas do centro da cidade.

Cheguei em casa apavorado.

Ouvi minha mãe preparando o almoço. Já no quarto, joguei a mochila num canto e fiquei paralisado sentado ao lado da cama.

– Luciano , meu filho? É você?

Ouvi minha mãe chamando lá da cozinha. Não respondi.

– Luciano? O que aconteceu criatura? Não era para você estar na escola uma hora destas?

– Não teve aula mãe, menti em voz baixa.

– O quê? Não ouvi. Vem já aqui, dizia dona Délia, sem paciência.

Levantei do meu refugio e fui tentar explicar o inexplicável:

– Não teve aula mãe, teve um acidente perto da escola e a gente foi dispensado.

– Que acidente? Ai meu Deus, você está bem?

– Tô mãe. Para, não aconteceu nada comigo, eu dizia me esquivando das mãos preocupadas de mamãe que já procuravam possíveis machucados hediondos em meu corpo.

Contei a ela metade da história. Disse que no caminho houve um acidente, alguém fora atropelado, ou se jogou de um prédio.

– Minha nossa senhora. E você viu alguma coisa?

– Não, não vi nada. Me deixa mãe. Tô com fome. O que tem pro almoço, disse eu desviando o assunto.

– Ah Lucinho ainda vai demorar. Perdi muito tempo tentando falar com seu avô. Me atrasei com tudo, reclamava dona Délia falando sem respirar. Ele está cada vez mais difícil. Você acredita que já liguei três vezes e ele não atendeu o telefone? Você sabe que...ah, deixa pra lá. Já que você não teve aula, vá ler alguma coisa enquanto termino essa comida.

Obedeci. Voltei ao quarto, me joguei na cama e fechei os olhos. Cada vez que eu tentava pegar no sono, os olhos do morto me encaravam. Abriam-se em minha mente. Era como se eu e ele fossemos um só. A primeira vez foi um susto. Quase cai da cama.

Os olhos se abriam dentro de mim e passaram a me mostrar o que viam. E eu via a mim mesmo. Mas não conseguia entender: eu estava deitado e me via em pé na minha frente. Foi quando me dei conta que eu via através dos olhos do morto. Era a cena do acidente. O momento em que passei por ele.

Acordei num pulo e abafei um grito. Nesse momento mamãe me chamou para o almoço. Sentei a mesa sem conseguir comer muita coisa.

– Este menino tá muito estranho hoje, comentava minha mãe com o passarinho de estimação que mantinha na gaiola perto da lavanderia.

Voltei ao quarto e estava com medo de fechar meus olhos novamente.

Desisti de ficar sozinho. Sai, fui andar pela rua. Encontrei a turminha do futebol, aceitei uma partida. Fomos lanchar na casa do Fernando e a tarde passou rapidamente.

Quando voltei pra casa meu pai já estava na sala com seu tradicional copinho de cerveja na mão.

– Boa noite, Luciano. Vai logo tomar banho que sua mãe já vai servir o jantar.

Assim fiz. Fui jantar. Assisti um pouco de TV e sucumbi ao sono. Fui quase me arrastando de volta ao quarto.

Puxei a coberta e mesmo sem querer fechei os olhos. Nesse momento cai. Cai num buraco profundo e quando cheguei ao chão me vi andando. Andava por ruas escuras cheia de bêbados. Postes mal iluminavam as pedras da calçada. O lugar cheirava a mijo. Na esquina uma mulher de cabelos cacheados, de vestido avermelhado, me chamava com o cigarro na mão:

– Senhorzinho, o programa custa menos de mil-réis.

Dobrei a esquina e me deparei com a polícia cuidando de um caso de morte. Cheguei perto e pude ver mais uma vez um corpo. O corpo de um homem estrangulado.

Encarei o morto e mais uma vez veio aquela sensação de estar conectado a ele, éramos um só. Eu via ele e me via através dele. Nessa hora acordei. Pulei da cama como se levasse um choque. Olhei o relógio da cabeceira e percebi: eu dormira apenas meia hora.

Tentei me acalmar e voltei a respirar normalmente. Novamente veio o sono e fechei os olhos. Por dentro de mim um novo par de olhos se abriu. Era dia e eu caminhava por uma trilha florida. O sol queimava meu rosto. Olhei em volta e a praia se mostrou. Era uma bela tarde de verão. Crianças brincavam na areia. Casais namoravam em frente ao mar. As roupas de banho eram recatadas, parecidíssimas com as que eu vira em alguma obra de arte na casa de vovô. Segui andando pela passarela beira-mar. Logo adiante a paisagem mudou. Uma multidão se aglomerava na calçada. Abri caminho e vi o corpo da mulher que se estendia no chão. Uma moça de não mais de vinte anos havia levado uma facada. Sangue se espalhava pelos cabelos. Olhei a cena, e vi a mulher me encarando. Olhos quase de vidro que me imploravam por ajuda. Dessa vez não acordei imediatamente. Dei dois passos em direção a ela. Nos conectamos e nesse momento a mulher mexeu os lábios. Eu me assustei. Despertei suando.

Não dormi mais naquela noite.

A partir dali meus sonhos tornaram-se pesadelos. Toda vez que eu fechava os olhos da realidade, passava a ver com os olhos internos. E a rotina era a mesma: encontrava um morto que me olhava, me conectava a ele e via tudo o que ele via. Cada morto que eu encarava me olhava de volta. Fui perdendo o medo. Aos poucos fui chegando mais perto.

Naquela noite o morto que encontrei foi uma criança pouco mais velha que eu. Uma menina que ao me encarar me chamou pelo nome: Luciano.

Reconheci a menina. Era a mesma que estava numa foto na casa dos meus avós. Puxei pela memória e lembrei: era a filha de uma das escravas amiga de minha bisavó. Ela sussurrou meu nome mais uma vez. Fui até ela e colei o ouvido em sua boca. A moça me disse com todas as letras: foi dom Martin. Me conectei a ela e pude ver tudo o que havia acontecido momentos antes de sua morte.

Acordei gritando. Pela primeira vez pude ver e ouvir o que os mortos tentavam me falar.

Sai agitado para a escola. Uma pesquisa rápida na biblioteca e descobri que dom Martin havia sido um senhor de engenho muito conhecido na cidade. Era rico e próspero. Meu avô havia me contado que minha bisavó morou nas terras dele trabalhando na mansão para ajudar minha tataravó com os serviços domésticos. Havia algumas poucas escravas ainda por lá. E a menina era filha de uma delas.

A garota que apareceu no sonho foi encontrada morta na casa de dom Martin. A explicação registrada pela polícia foi de que a criança havia caído da escadaria da mansão e batido a cabeça. Mas eu sabia da verdade: a morta me mostrou. Ela fora espancada até a morte por dom Martin, que além de estuprar a criança quis dar uma lição para que a garota não abrisse a boca. Bateu tanto que ela morreu. E agora eu sabia de tudo. Fiquei indignado. Prometi a mim mesmo que colocaria a boca no trombone. A justiça precisava ser feita.

Fui para casa arquitetando um plano para desenterrar casos antigos onde poucos se importavam em resolver e ainda acusar um rico fundador da cidade de assassinato. Não parava de pensar naquilo. Dispensei o jantar e fui dormir sem tirar a menina da cabeça.

Naquela noite meus olhos internos me levaram para a rua onde encontrei o meu primeiro corpo. Estava eu novamente em frente ao morto que me encarava com diminutas esferas de vidro que refletiam o vazio. Dessa vez não sai correndo. Fiquei ali, firme, esperando ele mexer a boca.

E assim foi. O morto me chamou para perto. Fui andando lentamente até ele. Nessa hora ele falou: foi o delegado Diego. E a cena do delegado atirando o homem pela janela estava nítida na minha frente. Eu acabara de saber que o meu “primeiro morto” havia sido assassinado por um delegado para manter em segredo um esquema de lavagem de dinheiro.

Acordei com a boca seca. Um delegado? Como assim? Na minha cabeça infantil eu achava impossível um homem da lei matar alguém. Perdia ali mais uma parte importante da minha inocência.

Não dormi mais. Passei a pensar como diabos eu, um menino franzino, mal saindo das fraldas, estudante mediano, vou ser levado a sério para desvendar essa série de crimes? E como alguém vai acreditar que falei com os mortos? Que vi as cenas das mortes através dos olhos das vítimas?

Havia três dias que vira o homem morto pelo delegado e eu estava perdido, mas alguma coisa precisava ser feita.

No outro dia pela manhã fui correndo falar com meu avô. “Ele sabe das coisas, só ele pode me dar uma solução”, pensei.

Cheguei a sua casinha no fim da rua e a porta estava trancada. Bati, bati e ouvi devagar os passos dele.

– Entra menino, estava te esperando.

Contei toda a história para o meu avô que pacientemente me ouviu sem dizer uma palavra. Quando terminei de falar apenas me disse:

– É que estou muito cansado. Vou embora e deixo pra você essa minha herança. Se cuida moleque. Levantou e foi em direção ao quarto.

Sai atrás dele sem entender nada. Quando cheguei no quarto encontrei o corpo do meu avô deitado na cama. Duro. Frio, quase roxo.

O médico legista avisou minha mãe que o velho estava morto havia três dias. Minha mãe se culpou por não ter procurado o próprio pai pessoalmente.

– Eu sabia que tinha acontecido alguma coisa, dizia ela em prantos... Quando ele não atendeu o telefone, eu sabia... Lamentava e chorava mais ainda.

Eu guardei o segredo dele para sempre. Agora ele faz parte de mim. Meu avô deixava para mim seu dom de falar com mortos.

Achei em uma mala embaixo da cama dele vários recortes de jornais carcomidos pelo tempo que falavam dos casos da mulher esfaqueada na praia, do homem estrangulado e como misteriosamente os assassinatos haviam sido desvendados. Também achei informações sobre a filha da escrava e dom Martin. Meu avô tentara de todas as formas incriminar o senhor de engenho, mas foi tudo em vão. Ele desistiu.

Cresci e também desisti. Aquele caso continuaria sem solução. O peso disso na minha alma me deixa cada dia mais triste e descrente.

Sigo pela vida tentando entender a morte. Sempre com os olhos dos mortos me encarando e pedindo socorro. Nem sempre faço justiça. Às vezes ela é impossível. Torço para que a justiça divina faça o que deve ser feito.

Agora deixa eu ir. Estou atrasado para o turno noturno na delegacia.

Hoje com certeza vai ser mais uma noite de assassinatos e casos inexplicáveis. Ou quase.

FIM