Morte Lenta

"A morte é apenas um caminho"

Esta frase tola e sem sentido pendulou em minha mente por todos os confins de minha existência. Mania besta esta do homem de querer saber e viver além do que lhe foi prometido. A morte é fato, e ela vem. Pelo menos foi isto que minha mãe me ensinou, foi isto que ela aprendeu na igreja antiga a qual frequentava. Igreja esta que fugi, depois de conhecer as outras coisas do mundo. Minha mãe não se conformou, mas foi consolada pelo Pastor que lhe disse:

— Não tema, Dona Eulália. Embora a mente surda dele não entenda, o desviado se suja com os pecados do mundo, mas pode ser limpo quando compreender a verdade. O mundo ira trai-lo. Nós o aceitaremos de volta e o perdoaremos por ter se desviado. Ele será novamente um de nós.

Isto acalmou o coração de minha doce mãe, e ela parou de tentar me convencer, esperando o mundo me trair.

Antes de tudo isto, a morte levou o meu pai, o levou na condição de desviado, e a igreja dizia que por isto Deus não o perdoou. Ele morreu jovem, bem mais jovem que eu, e dentro de mim, ecoava um grito de vitória, por ter vivido há mais tempo que ele. Pois é, a morte... Vem sem a gente chamar, com uma desculpa boba para te levar, te arrastar dos que lhe rodeiam e lhe escrachar a uma nova condição. Que diabos de caminho seria este?

Em um de meus dias qualquer, acendi um baseado curto no quarto de um motel barato. Prendi e só soltei para beber um bom gole de vinho. A moça deitada na cama me convidou para o segundo ato, e eu, entorpecido de meus pensamentos alimentados pelos meus vícios, sorri e obedeci. Enquanto sua boca me devorava eu pensava em mim, em meu egoísmo hediondo. Pensava na historia boba de minha mãe... Certa vez, ela me contou em lagrimas que fui fruto de um namoro imaturo e rápido, que meu pai morreu com apenas 19 anos e que os outros parentes não acreditaram que o filho era dele.

Ela me criou sozinha, juntou todas as forças que tinha e seguiu a dura condição de mãe solteira. Em seu próprio caminho, encontrou amigos na igreja, eles ajudaram ela a me criar, mas quando vi que o mundo era ainda melhor que tudo aquilo, fui ingrato e me desviei, sem pesares...

Achava hilariante pensar que antes de ser religiosa, minha mãe um dia foi tão fácil quanto aquela moça que estava comigo... Parei de pensar e me vi amorteci graças ao orgasmo proporcionado pela boca da moça.

Ela limpou os lábios e perguntou se eu aguentaria dirigir de volta pra casa. Eu sorri para transmitir confiança e respondi que sim, mas nós dois sabíamos que eu estava enganado.

A morte é apenas um caminho. O carro deslizando acelerado pela rodovia molhada, o som da chuva forte no para-brisa, o caminhão carregado de refrigerantes... Deus meu... Acordei por entre ferragens e sangue, quando me vi consciente, enxerguei a minha frente o caminhão tombado, com as rodas traseiras ainda girando... Tossi sangue e meus próprios dentes... Senti minha boca toda arrebentada, olhei para o meu lado... A moça estava morta, com os miolos arrebentados e seu cabelo todo molhado pelo sangue grosso. As ferragens do Passat dentro do corpo frágil dela, dentro do meu...

Deus... Eu nem sabia o nome dela!

Quando os bombeiros cortaram o carro de ferro ao meio para me arrancarem lá de dentro, eu rezava para estar morto. Estava lucido e assustado, encarando o corpo já coberto da moça morta. A morte não vinha, eu sentia a minha carne se rasgar, meus ossos saírem de meu corpo, mas a doce morte não vinha...

A dor foi entorpecida por injeções e eu desmaiei, desmaiei e acordei cinco dias depois, dentro de um quarto branco com lençóis limpos, todo remendado e com ferros nas pernas e nos braços.

Eu não conseguia falar nem me mover, a enfermeira veio e me injetou mais calmantes. Dormi pelo resto da noite.

Quando novamente despertei, me vi entorpecido, com a boca toda arrebentada e com a gengiva costurada.

O Pastor entrou sorrindo junto com minha mãe, querendo ouvir eu dizer que estava arrependido. Eu não conseguia falar, mas eles entenderam que se eu conseguisse, diria que não estava arrependido de nada!

— Ele esta sujo – disse ele consolando minha mãe – Ele esta sujo e não quer se limpar...

Muita fisioterapia e outras tantas cirurgias e eu estava ali, em uma cadeira de rodas, me recuperando aos poucos. A recuperação lenta me fazia implorar para ter tido o mesmo destino que ela. Meus amigos me disseram que o nome dela era Isabeli, tinha apenas 26 e fazia Engenharia Civil. O tio de Salvador pagava os estudos, ela sonhava em se formar e ir trabalhar com ele na construtora do avô... Como pude ser tão imprudente ao ponto de calar o sonho de alguém?

Quando tive autorização médica para sair pelas ruas acompanhado de alguém, minha mãe me levou até o cemitério. Visitamos o tumulo de meu pai, e eu percebi que não conseguia mais chorar. Ela orou desembestada no sepulcro e eu fiquei a sombra de uma arvore, vegetando inerte em meus pensamentos, pensando na sorte que ele teve de não ter ficado como eu.

Quando minha mãe terminou com suas orações, alisou meus cabelos e arrastou minha cadeira pelo cemitério desertificado. Lá no meio das covas novas, onde o sol era ainda mais escaldante. Pedi para que ela abrisse o guarda sol. Não me obedeceu. Minha testa pingava suor. Dentro de minhas limitações, não tinha força nem para levantar o braço e enxugar o rosto. Sentia as gotas salgadas escorrerem pelos meus olhos e eles arderem. Balbuciava para que minha mãe me tira-se daquela tortura, ela não me ouviu. Não quis me ouvir porque tinha em mente outro plano.

Paramos de frente com um tumulo modelado com azulejos rosa. Encarei a foto da falecida e constatei; era ela, Isabeli Sousa:

— Ela era linda. Era filha de alguém e até mesmo mãe de alguém – disse minha mãe, pondo-se a me julgar – Sonhava em ser Engenheira Civil, era a melhor da turma dela. Deixava os familiares orgulhosos, tinha planos de se casar com o pai da menina, mas teve a infelicidade de te conhecer... Você se meteu no caminho dela e a matou com sua indisciplina.

Me lembrei do dia em que á conheci. Conheci Isabeli em uma festa de formatura de uma amiga que tínhamos em comum. Fomos apresentados e quando demos fé, estávamos nos amassos dentro do meu carro velho. Foi ela quem sugeriu o motel, eu passei no posto de gasolina, abasteci e peguei o vinho na loja de conveniências.

Antes de entrar no quarto, peguei o baseado no porta luvas e a garrafa no banco de trás. Entramos loucos e aos beijos, nos despindo feito animais famintos, loucos para saciarmos nossos desejos:

— Você corrompeu a vida desta moça, filho. Fique aqui e peça perdão a ela.

Minha mãe me deixou preso em minha cadeira de rodas, debaixo de um sol escaldante, frente a frente com o tumulo de Isabeli. Eu sentia meus miolos cozinharem, estava babando, ficando louco e inerte... Sentia que a qualquer momento os azulejos poderiam se trincar diante de tamanha temperatura! Tentava movimentar os braços cravejados por ferros que ligavam os ossos quebrados. Meu corpo mal se mexia, minha mente borbulhava insanidades e enfim balbuciei:

— Perdão... Me perdoe Isabeli...

A foto bonita da moça de cabelos longos me fez brotar do rosto uma única lagrima, por instinto, despenquei de minha cadeira de rodas, minha mãe ao longe ignorou a queda. Os ferros que me protegiam agora entravam em minha carne e me faziam sangrar, ignorei a dor e me arrastei até o tumulo. O sol cada vez mais forte parecia tentar me impedir, mas eu ainda tinha forças e estava decidido. Meu sangue quente molhou os azulejos e eu consegui falar:

— Por Deus, Isabeli... Me perdoe...

Minha mãe se aproximou de mim, me arrastou de volta para a cadeira de rodas e disse ao meu ouvido, enquanto me levava rumo há uma cova nova:

— Não se preocupe meu querido... A morte é apenas um caminho...

Parou de frente a uma valeta espaçosa e profunda, o coveiro sorriu e se aproximou de nós, segurando sua pá suja por torrões de terra. Ela lhe correspondeu o sorriso e me empurrou valeta abaixo... Despenquei na terra fofa e tossi com dificuldade, olhei para cima e ouvi o coveiro consola-la:

— Não tema por ele, irmã... Ele vai entender. Vai se arrepender de todos os seus pecados...

Minha mãe empurrou a cadeira de rodas dentro da valeta, aos poucos os membros de sua igreja chegaram e rodearam minha cova. Oravam alto enquanto jogavam terra sobre meu corpo, enquanto eu implorava sem poder ser ouvido:

— Eu me arrependo... Arrependo-me da vida suja que eu levava... Me limpem desta terra e de meus pecados, deixem-me viver como nova criatura...

Para meu arrependimento, eles apenas repetiam:

— A morte é apenas um caminho... A morte é apenas um caminho...

A terra fofa enfim me cobriu, eu morria devagar, lentamente... Em meu ultimo respirar fraco, meu cérebro quase sem oxigênio fez transparecer sobre meu corpo soterrado um forte raio de luz. Aos poucos fui me acostumando com a absurda claridade, enxergando enfim um novo caminho...

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Julio Dosan
Enviado por Julio Dosan em 23/11/2013
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