O guardião das almas – Lorellay - Completo

O guardião das almas – Lorellay.

Quantas noites há de ter estes pesadelos?. Perguntou a si mesmo, esperando uma estúpida resposta.

Todas as noites, despertava aos sobressaltos, aturdido e confuso, pois eram visões tão reais que podia sentir o calor e o fogo em arder em sua pele. Era o inferno, ou algo mais, a visão do passado, uma lembrança talvez. Desviava o pensamento para coisas uteis, seu cigarro e a garrafa de whiske, observava o vapor do tabaco sair pelas narinas e serpentear no ar. Aquilo um dia iria lhe matar, pensou. Mas todos tem essa única e indubitável certeza, a morte. O resto é apenas uma surpresa de acontecimentos e frustrações sucessivas.

Aguardava o contato da central. No inicio ficava ansioso por uma ordem, mas com o tempo tornaram-se tarefas tão rotineiras e tão entediantes, que se acostumou a não sentir mais nada. Em todas as vezes, eram almas errantes que perdiam o tal do caminho da luz, ficava horas e horas a dialogar com os tais espíritos, bancando o psicólogo dos mortos, que isso começou a frustrá-lo um pouco, quando a paciência acabou, ele usava terapia de choque, nada como palavras fortes a um espírito chorão para convencer a tomar a decisão certa. ´´ ou você vai para a porra da luz ou eu vou torturar e destruir essa sua porra de alma``, pronto. Eles não tinham muitas opções, afinal, seu guia, por assim dizer, jamais teve trato com vivos, quem dirá com mortos...

Toda aquela falta de afinidade e aparente indiferença com todos, escondia algo, ele sentia que estava estilhaçado por dentro, a cada alma banida, salva ou absorvida, ele sentia algo se quebrar por dentro. E a cada missão abandonada pedaços de sua humanidade, ficando expert na arte de não se importar com ninguém, a não ser ele mesmo.

Entre vícios, bebidas, cigarros e mulheres, havia algo de bom, bem no fundo, onde ninguém podia ver. Você poderia odiá-lo ou poderia amá-lo e depois odiá-lo, amaldiçoá-lo e ele continuaria não se importando com nada.

Este era Eric Drake O Guardião de Almas.

*****

Carta encontrada sob os escombros da antiga casa Ledur, data 17 de maio de 1878.

Não sei como explicar a sucessão de fatos que acometeram minha família. As terríveis tragédias que ceifaram um a um, meu marido morreu de uma estranha doença, infelizmente não tivemos nenhum herdeiro, apesar do desejo e de nossas tentativas, meu ventre era morto, assim dizia ele. Qualquer prostituta da cidade poderia embarrigar dele, menos eu. Vivi sozinha por muitos anos, até que minha irma desregrada veio viver comigo, a sempre e inconstante Lizie, a terrível decepção de meus pais, pois jamais correspondeu com suas expectativas morais. Desejavam que ela tivesse contraído matrimônio com um barão do café, vinte anos mais velho, mas seu coração desejou um artista circense de apenas vinte anos. Quando retornou, estava esperando um bebê.

È curioso como a vida é irônica, sempre superei as expectativas dos meus pais, fiz todas as suas vontades e desejos, realizei seus sonhos. Sonhos que não eram os meus. Mantive meu casamento, fiel e obediente ao meu marido adultero. E mesmo assim, jamais pude segurar um bebê em meus braços. Pergunto-me, onde errei?

Meses se passaram e observei seu ventre crescer, imaginando como seria em meu ventre. Aquele pequeno, lentamente tornava-se um pouco meu. Quando nasceu em uma noite tempestuosa, fui a primeira a segurá-lo nos braços, um menino robusto e rosado, de cabelos cheios e negros. Observei o encanto de seus dedinhos, os pezinhos em movimentos lentos, os lábios tão vermelhos, era a vida em meus braços, vida que sempre desejei. O pequeno Tobias, como ela o havia nomeado contra a minha vontade, tornou-se o centro das alegrias da casa, no inicio Lizie não se importou, mas depois demostrou um ciúme destrutivo. Queria-o só para ela. Injusta esta minha irmã.

Quando ela não pode mais suportar, decidiu tirar o bebê de mim, e sair de minha casa. Mas não podia permitir isso. Então Lizie em uma tarde funesta, faleceu, tomou um copo de cólera, meu veneno e minha tristeza.

Os anos novamente seguiram, troquei o nome dele por Thomas, nome de seu avô, e o criei como meu filho. Seu crescimento fora conturbado, de saúde frágil, adoecia frequentemente. Antes de completar seu terceiro aniversário, caiu enfermo, com uma febre forte, tosse sangrenta e machas pelo corpo. Pedi o auxilio dos melhores médicos da região, que o desenganaram, disseram desconhecer tal enfermidade. Tudo o que eu podia fazer, era assistir a morte de meu filho. Poderia jurar que era Lizie, vingando sua morte, tirando-me o que me era mais precioso. Sete dias depois, eu o enterraria.

Dias e noites em silêncio, suportei sua ausência, meu adorado filho, meu diamante, meu sol, minha razão de viver. Eu havia perdido uma parte de minha alma. Mas estou certa de que irei encontrá-lo, nesta noite, nem mesmo a morte tem o direito de nos separar. Uma vela acesa, que o fogo me leve até você, meu amado menino.

Lorellay.

–-------

O que é uma alma?

Todos nos e todas as coisas vivas tem, segundo as teorias. A alma é uma energia potente, tendo a força de uma ogiva nuclear, poderosa e inconsequente. Uma energia que reside em templos feitos de carne, ossos, tendões e sangue, funcionando a todo vapor. É capaz de evoluir, perverter-se e perder-se, condenar a si mesmo e infernizar a vida alheia. Muitos partem desta para melhor de forma pacifica, dormindo em camas quentes, velhos e caducos ou jovens demais. Outros partem de forma traumática, intencional, ou tensional. O fato é que essa energia pura, quando não se dá conta que não vive mais, vaga por ai, transtornado e cheio de perguntas. Alguns se revoltam e tornam-se seres obscuros, outros auxiliam os vivos pois são incapazes de partir. E os suicidas enlouquecem, foi o que aconteceu com Lorellay.

O grande casarão da família Ledur, muito antiga em São paulo, e detentora na época no comércio do café fora demolido e transformado em um gigantesco empreendimento imobiliário, um conjunto de duas torres com vinte apartamentos, vendidos a preços exorbitantes a casais recém-casados ou famílias de grande poder aquisitivo. Provavelmente Lorellay assistiu todo o processo de destruição e construção de sua morada, e não ficou muito feliz com isso. Como resultado, sua loucura desmedida e raiva, não suportou a felicidade alheia, casais tiveram seus bebês roubados misteriosamente. Jornais e revistas se beneficiaram do sofrimento dos jovens pais, noticiando o desaparecimento dos pequenos bebês, muitos ainda recém-nascidos. Semanas após, vizinhos começaram a notar um cheiro e odor estranho na água, depois de uma vistoria, encontraram os bebês imersos na água que abastecia os apartamentos, muitos deles em avançado estado de putrefação, pequeninos cadáveres que de dissolviam aos poucos, turvando a água. Mas o mistério permanecia, muitos suspeitos e poucas respostas, tornando-se um dos maiores crimes não resolvidos da grande São Paulo.

O telefone toca, ele olha com desdem e pensa em não atender, mas sabe que insistiria, e depois teria de dar uma desculpa qualquer.

- Por que demorou para atender? - ouviu uma voz irritada do outro lado.

- Estava no banheiro...vai querer saber o que eu estava fazendo também?

- Bem, temos outro caso. Um condomínio no centro de São Paulo, as atividades haviam cessado, mas parece que algo retornou a ativa.

- O que é agora? Alguém esqueceu de pagar o financiamento do ape e se matou? - tinha um humor negro, no qual apenas ele poderia rir.

- Uma suicida, é coisa antiga. As atividades começaram depois que um casal desavisado se mudou para um dos apartamentos, a mulher esta grávida e diz ser perseguida.

- Isso não é frescura de grávida, não... Na última vez o alarme era falso -

- Sendo ou não, vá e faça seu trabalho – parecia ainda mais irritado. Eric sempre o irritava com seu sarcasmo e ironia.

- Ok...sabe que cobro do mesmo jeito. Até. - desligou o telefone e logo após recebeu os dados de sua próxima tarefa, uma carta antiga e uma foto desbotada,.

Era uma mulher de aproximadamente trinta anos, os cabelos tinham uma cor escura e seus olhos pareciam imersos em tristeza. Os cabelos presos em coque, com alguns fios soltos e usava um volumoso vestido negro, suas mãos estavam pousadas no ombro do marido, um senhor de bigodes fartos e cabelos brancos. Não parecia um casal muito feliz, afinal, naquela época quem poderia ser feliz, casando com quem não ama.

Eric mostrou a foto a mulher, que reconheceu a figura funesta presente em seus pesadelos.

- Muitas vezes escuto canções de ninar, gemidos e choros de bebês – sentiu um tremor ao segurar nas mãos a foto – eu pensei que estivesse ficando louca.

- Ela sabe que eu estou aqui – disse Eric – e parece não estar muito feliz com isso... - podia sentir sutis ondas elétricas percorrendo o ar ao seu redor.

- Eu sonhei com ela. Nos meus sonhos ela dizia que queria meu bebê. - acariciou a barriga levemente, queria protegê-lo daquele pesadelo.

Eric a observava curioso, esperando que a qualquer momento a entidade se revela-se. As mãos trêmulas da mulher acariciavam a barriga de oito meses de gestação, quando em um gesto abrupto ela interrompeu o movimento com um olhar assustado, seus olhos arregalados fitaram os de Eric, aquilo era medo, ao sentir o corpo estremecer e algo se contorcer dentro do ventre. Algo a arrastou com uma força sobrenatural pelos corredores, a jogando violentamente na cama, os lençóis ataram-se em seus pulsos, bloqueando qualquer movimento. Eric correu antes que a porta se fecha-se forçando o corpo contra ela, ao entrar podia ver a mulher esquálida ao lado da grávida. A figura parecia distorcida, seus sentimentos e emoções mais obscuros desfiguraram sua imagem, os dedos eram longos e finos, os cabelos negros e completamento desgrenhados, no rosto magro marcas de queimaduras profundas e os olhos tristes e fundos eram vermelhos como sangue. Segurava na mão esquerda uma vela negra e com a mão direita acariciava a barriga da mulher grávida.

- Meu bebê, meu precioso... - sussurrava ela, e milhares de outras vozes em outros timbres ressoavam.

- Sai de perto dela – ordenou Eric.

A entidade o encarou com olhos em fúria, aquele intruso queria o seu bebê e ela não poderia permitir isso.

- É bem pior do que eu pensava... - disse a si mesmo – ei, Lorellay, me ouça ! - a mulher parecia curiosa por saber que aquele homem conhecia seu nome – você não quer fazer isso, essa criança não lhe pertence, deixe-o em paz!

Uma força abrupta o lançou contra a parede, deixando-o meio desnorteado.Pensou em nas próximas missões, pedir adicionais de periculosidade. Pegou no bolso um canivete e cortou a palma da mão direita, o sangue verteu entre os seus dedos, tingindo sua mão. Usou toda a força que podia contra aquela entidade que pressionava o seu corpo, empurrando-o para longe da mulher, ao se aproximar estendeu a mão, marcando a barriga da mulher com seu sangue.

- Este bebê não será seu! - Eric a desafiou, havia marcado o bebê, protegendo-o com seu sangue, somente em casos extremos poderia ter feito aquilo.

- Eles me tiraram tudo... - grunhiu a mulher – meu marido, minha irmã, meu bebê...não permitirei! - parecia transtornada.

- Não foram eles, foi você! - acusou Eric, seus olhos podiam ver os pecados das almas – você matou todos eles...

- Como ousa me acusar! - sua figura distorceu-se novamente, turvou-se – seu Deus me tirou tudo! Agora tomo os pequenos anjos dele, não pude gerar vidas, então as tomo!

Ele teria de acabar com aquilo logo. Estendeu a mão em sua direção, um vórtice de luz surgiu paralisando o espírito revoltoso.

- Você escolherá o seu destino posso salvá-la, assim terá outra vida, outra chance de redimir os seus erros, ou posso bani-la ao inferno, onde torturas lhe aguardam, o que me diz?

- Você não tem poder para isso, é um simples homem! - Ela sorriu, sua risada ecoou pelo quarto – não irei a nenhum lugar, vou permanecer neste mundo coletando bebês, até que minha sede de vingança seja satisfeita!

- Não, não sou – ele sorriu em retribuição, um sorriso malicioso, daqueles que escondem um segredo – você escolheu a terceira opção, obliteração...

Era uma escolha difícil, usada em casos extremos, quando a maldade se torna uma loucura e corrompe a alma. Não há salvação, ela poderia redimir-se de seus atos ou ir ao inferno com o risco de torna-se um demônio sádico. Mas a obliteração tinha um custo alto para Eric, pois absorvia fragmentos da alma, memórias, emoções e dores inerentes a ela.

Segurou o pulso com a mão esquerda, enquanto o vórtice tornava-se negro, podia sentir as fibras do corpo estremecer diante da dor. Lorellay, a figura distorcida de uma mulher amargurada, começou a dissolver-se no ar, e fagulhas de sua escuridão foram absorvidas por Eric. Pequenos estilhaços de sua alma, sugados para a escuridão, o esquecimento, invadiram seu corpo como estilhaços de vidros, arranhando sua alma, lhe causando uma dor indescritível. Mas teria de dar um fim aquele ser, ajoelhou-se suportando a dor, mas segurou as mãos até que todos os fragmentos fossem absorvidos.

A figura tremulou e desapareceu, os olhos de terror ficaram paralisados, fitando Eric.

Ofegante, ele deixou o corpo desabar, degustando a dor em seu corpo.

A jovem grávida livre das amarras, veio ao seu encontro, preocupada com seu estado.

- Você está bem? - os olhos assustados e impressionados, jamais havia presenciado algo assim.

Eric meneou com a cabeça positivamente.

- Preciso de uma dose de tequila... - sussurrou.

Estava em seu apartamento, ouvindo uma boa canção, isso geralmente calava as vozes em sua cabeça. Considerou pela primeira vez tirar férias. O fato havia ocorrido há uma semana, o casal ficou extremamente agradecido pelo seu ato heroico, mas não se sentia um herói, e sim como um homem que acabara de ser atropelado por um caminhão, e sobreviveu. A mão ainda estava curando, recebeu alguns pontos, provavelmente ficaria ali uma cicatriz. O telefone toca novamente.

- E ai como você está? - a voz rouca parece preocupada.

- Melhor impossível, na verdade me sinto ótimo...

- Uff..sei que não esta. Você sabe dos riscos de obliterar uma alma antiga, não é?

- Sei...meus poderes aumentam, mas perco minha humanidade, eu sei muito bem disso... - quantas vezes não fora alertado, das poucas almas que obliterou ainda podia sentir seus resquícios em seu corpo. Seus poderes aumentavam consideravelmente, mas a que preço?

- Espero que fique bem, precisamos de você...

- Claro que precisa, pra resolver essas merdas espirituais, quero umas férias no Caribe!

- Podemos resolver isso, se cuida... - a voz rouca riu e se despediu.

Pensou no preço a ser pago, poderia ser sua sanidade, ouvia os fragmentos em sua mente, conhecia bem as angustia humanas e isso o afastava de sua própria humanidade, perdendo a fé no seres humanos. Pensou em como era pesarosa sua missão, caminhar entre dois mundos.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 20/12/2013
Código do texto: T4619590
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.