Ka'apora - DTRL 14

1

- É hoje que me vingo dessa filha da puta! - Exclamou Leôncio, encarando a floresta dos Guá-tacais.

Voltou para dentro de sua casa e conferiu a mochila. Sim, tudo certo! Não havia erro, nada fora esquecido.

Colocou o material nas costas e acendeu o cigarro.

Tragou calmamente, inda com os olhos fixos na mata que reinava à sua frente. E então partiu, deixando Mariazinha no quarto aos prantos (Como de costume, mas dessa vez o choro era mais sério, mais triste).

Enquanto abria o portão e tomava seu caminho pela estradadinha de terra batida, o homem podia ouvir a esposa soluçando:

- Não mata meu paizinho, poupa ele meu Deus!

2

O grito do menino foi ouvido por toda a vila.

Não demorou para que a confusão começasse e aquela se tornasse uma das sexta-feiras mais marcantes de toda a Vila das Almas. Certo é que o povo não comentava sobre os estranhos desaparecimentos que ocorrem até hoje, que começaram lá no inicio dos tempos quando o homem havia chegado naquelas terras. Mas haviam comentários aleatórios sobre as lendas e vários mistérios que circundavam a floresta dos Guá-tacais. Só que nada se comparou com o grito do menino, com a morte de Yago. Na verdade, houve algo que se comparou, mas por hora, veja quão trágica foi a cena de Yago e seu amigo chegando a vila, após o ataque.

Ele saiu da mata acompanhado de José, que o carregava no colo. Era claro o espanto na cara do mais velho. José, com a face pálida e a roupa suja de sangue e em seus braços o pequeno Yago, de apenas quatorze anos, berrando de dor e com a mão esquerda tentando impedir o sangue que não parava de jorrar de um estranho ferimento em sua costela.

José colocou Yago não chão e ainda nervoso, tentou explicar aos moradores que lhes encontraram na saída da mata, o que havia acontecido.

- Ele tá morrendo, ela mordeu ele, ela mordeu ele!

Apesar dos seus dezesseis anos, José estava assustado como uma garotinha de apenas seis. Era evidente o choque causado de ver o amigo naquele estado, mas além disso, algo mais estava errado.

Havia um pavor maior, e a resposta para este medo, foi dada quando um dos homens da vila proferiu a pergunta:

- Quem diabos mordeu ele, José?

Com a voz baixa e soluçada, o menino respondeu:

- A Ka'apora, foi a Ka'apora.

E se ajoelhou no chão, exausto, traumatizado.

3

- Você sabe que a gente não devia ta brincando aqui, né? - Perguntou José.

- Para de ser maricas, vai dizer que tá com medo? - Questionou Yago.

Os dois amigos caminhavam pela mata proibida, já passavam das nove da noite.

- É que o pessoal fica falando essas coisas... Dos desaparecimentos e tudo mais.

- E você acredita nisso, se não é macho não?

- Para Yago! E outra, é melhor nóis voltar, teu pai deve de tá preocupado.

- Você tá é com medo, maricas! Maricas!

O deboche de Yago foi silenciado por um estalo no meio da mata.

Por alguns segundos, apenas o barulho do vento atingindo as folhas era ouvido.

- Que merda foi essa? - Perguntou José.

Apesar da pouca idade, fica claro, apenas por nossos diálogos, que Yago se acha muito mais maduro e crescido que seu amigo. E com o intuito de provar toda esta forma de agir, nosso pequeno amigo (Que agora pouco gritava de dor enquanto sua tripas escorriam da barriga) tenta pregar uma peça em José.

- Foi a Ka'apora... A gente não devia de tá aqui, José... Essa é a casa dela!

- Cala boca Yago e vamos embora!

- Não acredito que você ficou com medo! É muito mulherzinha mesmo! - E Yago riu - Fala sério José, cê é homem já, acredita mesmo nesse bicho?

- Não brinca com isso, Yago, não brinca.

- Vou brincar sim! Pra cê vê que num tem essa de Ka'apora, isso é lenda, estória pra assusta criancinha!

- Eu vou embora! - Pela primeira vez José parecia decidido.

- Sozinho?

Os dois se olharam.

- Bom mesmo. - Falou Yago - Agora nóis vai brincar com a Ka'apora, ah se vamo!

- Que cê vai faze?

- Fica vendo.

4

Leôncio entrou na mata.

O lugar só não estava completamente escuro, pois os raios de lugar iluminavam algumas partes.

Enquanto caminhava, só ouvia o barulho produzido pelas galhos sendo quebrados ao serem atingidos pelas solas de suas botas.

Era um crepitar que irritava e lhe deixava nervoso.

A caminho da fera, ele lembrava das estórias do tempo de criança.

"Ela come carne! O bicho é o próprio diabo! Dizem que é um índio guerreiro que morreu e foi ressuscitado por um mágico Pajé. Ela tem o corpo todo peludo e as garras de um tigre. O índio voltou da morte, mas não como antes, para reanima-lo eles usaram pedaços de diversos animais, até os dentes foram trocados! Ela monta em um porco-espinho gigante. Ela tem só um olho, um olho, bem no meio da testa, um enorme olho negro, dele escorre sangue, e é apenas um olho. E ela come carne, voltou dos mortos pra comer toda carne."

- Mas por que ela come carne? - Era o que dezenas de pessoas perguntavam quando ouviam os relatos da Ka'apora.

E dezenas de respostas eram obtidas.

E as vozes se misturavam na cabeça.

"Ela come carne porque é a carne do homem que lhe mantem viva. Ela come carne porque antes de virar Ka'apora era de uma tribo de canibais. Ela não come carne, ela bebe sangue! É o sangue dos homens que alimenta a natureza, a terra! Ela come carne, ela se vinga dos homens! É um demônio e ele precisa de carne!"

- É o sangue dos homens que alimenta a terra. - Sussurrou Leôncio para escuridão.

Avançou mais uns passos e ao olhar para trás, já não conseguia enxergar o caminho para voltar para casa.

Aquele era o momento, era tudo ou nada.

Abriu a mochila e de dentro retirou o fumo. Era estranho uma criatura como aquelas se sentir atraída por isto.

"Ninguém nega fumo fio... A Ka'apora adora isso. Qué presenteá-la? Qué anda protegido pela mata dela, dê fumo primeiro..."

Leôncio torceu para que a lenda, para que as palavras do avô fossem verdadeiras.

Baixou-se no canto da árvore e depositou a caixinha com fumo. Depois avançou para trás de alguns arbustos, agachou-se e assobiou. Era só esperar, a Ka'apora, estava chegando.

5

Yago assobiou.

- Para com isso, vamo embora! - Falou José.

- Aparece demônio, vamo, aparece! - E assobiou mais vezes - Você não é de nada mesmo né? Cadê você Ka'apora!?

- Já chega Yago, você parece um maluco cara, vamos pra casa.

Foi neste momento, que Yago viu o ninho no topo da árvore. Foi neste momento que ele teve uma ideia que nos dias de hoje soa normal para várias crianças, mas que é uma atitude cruel, a qual hoje os homens estão cegos.

- Eu já sei! Se ela não aparece por bem, vai aparecer por mal! - Falou o menino e começou a subir na arvore.

- O que cê ta fazendo, seu idiota? - Questionou José.

- Se ela não aparece agora, é porque num existe. - Falou baixo o garoto. Seus olhos brilhavam em meio a escuridão e o alvo desses eram um grande ninho de pássaros, construído no topo da antiga árvore.

6

Leôncio sentiu um ar frio em sua nuca e no exato momento que se preparava para olhar para trás e ver o que acontecia, a voz chegou aos seus ouvidos.

Uma voz surreal, que não era de homem, nem de mulher.

- Já cheguei...

O homem paralisou e por alguns segundos tentou dizer para si que aquilo era invenção de sua cabeça. Mas a voz continuou. Ela era calma, mas

nada tinha de inofensiva.

- Obrigado pelo fumo e bem, acho que você pode baixar essa arma.

Ele obedeceu a voz, não havia outra escolha.

Depois, sentiu uma mão pousando em seu ombro. Era pesada, lhe causou calafrios.

- Você não tem porque se vingar... Ele aprendeu a lição. Estamos quites.

Leôncio não entendia, mas isto foi questão segundos...

Boooooom!

Choque corporal! Coração disparado! E viu a escuridão se transformar em luz.

E lá estava ele, com os olhos de outro, com as emoções de outro.

7

Acordou no meio da noite, pois o chão estava tremendo.

Tudo escuro, e um grande barulho era ouvido. Olhou para seus irmãos, todos ainda dormindo. O pai não estava em casa, nem a mãe. Mas ele não pensava nisso, não era preciso, pelo menos não por hora. Pois o sol ainda estava longe e a vida durante a noite é estática.

Virou o pescoço para lado e então o verdadeiro pesadelo começou, ou melhor, o início do fim.

Um gigante, uma besta inexplicável avançava em sua direção. parecia faminta, seus olhos eram pura maldade.

Tentou gritar, mas voz não saiu de sua boca, tentou fugir dali, mas ainda não conseguia tomar os céus, ter a liberdade para a qual nascera.

Então o monstro estava bem a sua frente e seu sorriso era enorme, assim como seu bafo, tão forte quanto o vento, tão fétido quanto todos os pântanos da região.

Uma patada foi o bastante para abalar e destruir toda a casa. Dois de seus irmão foram esmagados e ele viu bem ali, a sua frente, o sangue de inocentes sendo escorrido.

Um grito de pavor foi emitido pelo caçula, mas este não teve a chance de fazer mais nada, foi o terceiro a ser destroçado.

A fera não satisfeita, ergueu a casa aos céus e neste momento, ele caiu, caiu de seu lar, de seu porto seguro.

E o impacto foi tão forte que ele sabia que não poderia mais mover-se nunca mais.

A dor era alucinante.

Lá de baixo, viu no céu, a besta prosseguindo com seu maldito serviço, ou seria apenas uma diversão? Não, era pura maldade, apenas isso, só maldade!

De lá de baixo viu sua casa sendo rasgada em pedaços e aquilo doía muito mais que a queda. Era tanta dor ao ver os pedaços de seus irmãos caírem do céu.

Aquela foi a pior chuva de todos os tempos.

8

Yago desceu da árvore sorrindo.

- Por que você fez isso seu idiota? - Perguntou José.

- São apenas pássaros! E veja, onde tá a protetora da mata, cada esta maldita Ka'apora?

Neste momento barulhos de passos foram ouvidos. Os dois meninos olharam para o lado e então a viram.

Estava parada encarando os garotos. A guardiã das mata, a besta das florestas, o bicho que num é home, a Ka'apora.

Montada em um grande porco-espinho, como um cavaleiro. Mas não usava armadura, seu corpo era todo pelos. Tinha uma barba grande e a luz do luar ao iluminar sua face, fez brilhar seu único olho localizado bem ao meio da testa.

A Ka'apora abriu a boca e a unica palavra proferida antes da mesma partir para cima de Yago e lhe arrancar um pedaço da costela foi:

- Assassino!

A criança gritou de dor e então a besta desapareceu, sumiu, mas não antes de juntar do chão um pequeno pássaro que agonizava, o único sobrevivente da matança feita por Yago.

E em meio a escuridão, José tomou coragem, juntou o amigo do chão e com ele nos braços, saiu correndo em busca de ajuda.

9

Ele voltou ao seu corpo e ainda não entendia tudo que vira e sentira. Pois o homem é a besta do homem, e a visão da desgraça nada adiantou. E a fome de vingança foi maior, assim como o instinto de ser o mais forte.

- Não é justo! Ele era uma criança! - Gritou Leôncio chorando.

- Vocês homens brancos se acham os melhores mesmos... São estúpidos, egoístas.

- Era só uma criança e você quer compara-lo com pássaros!

Ele se virou e a visão da Ka'apora não lhe assustou.

Ergueu a pistola e apontou para a fera, mas antes que atirasse a mesma já estava em cima dele, empurrando a arma, que disparou no momento em que o cano, estava mirado para o verdadeiro monstro.

10

Quando o tiro da pistola de Leôncio foi ouvido, muitos moradores invadiram a floresta em busca do homem, e não demorou muito para ele ser achado. Caído no chão, com a arma ao seu lado e sangue escorrendo na terra.

"É o sangue dos homens que alimenta a natureza, a terra!"

O bando de moradores retirou o corpo de Leôncio em silêncio, com medo de perturbar a besta que ali habitava, sem entenderem que a questão não era o medo e sim o respeito.

Leôncio ficou conhecido por muitos, pelo homem que não aguentou a morte do filho e acabou se matando em busca de paz. Mas os mais inteligentes sabiam que o motivo da morte era outro. Eram esses os que não abusavam da mata, eram esses os que entendiam as regras básicas da justiça.

11

De seu quarto, Maria chorava, com medo da Ka'apora.

12

Do topo de uma grande árvore, a guardiã da mata descansava. Cantando baixo uma estranha canção de ninar, tudo isso enquanto embalava nos braços, um pequeno pássaro, que apesar da dificuldade, respirava em paz.

"Kararãn kapã kakã,

Kipoka karam kopã,

Kararãn kapã kakã,

Copã, karam... karam..."

***

Ka'apora: Do Tupi - Aquele ou aquilo que mora (ou vive) no mato.

Mr Belzebu
Enviado por Mr Belzebu em 29/01/2014
Reeditado em 30/06/2016
Código do texto: T4669914
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