MASCARA DO MAL
                    Um domingo  como outro qualquer, talvez um pouco nublado, cinza, desses que só saímos de casa quando a obrigação manda, um domingo  que não pertence a ninguém só ao sono e a preguiça, mesmo assim Lidia queria viajar para a praia, quando a discussão da venda da casa começou ela não queria, agora não via outro meio de encerrar aquela discussão.
                    O clima familiar já estava difícil, Mauro andava com problemas de concentração, com historias sobre fantasmas e conversava com gente morta, o psicólogo disse que isso passava, mas Beto insistia em associar o problema de Mauro ao que havia acontecido a filha do caseiro, Lidia queria que ele se esquecesse de tudo, aquilo foi um acidente.
                    Por tudo queria vender a casa e esquecer, aceitaria a proposta do Sr. Conrado.
                     Roberto e a família: o filho caçula Mauro, a filha adolescente Roberta e a mulher Lídia, resolveram passar o domingo na casa de praia da família, ele tinha uma surpresa de amor, o engenheiro festejava o aniversário de casamento, porém em uma escolha surpreendente a mulher preferiu passar o aniversário na casa de praia, herança dos pais dela, que Beto esta querendo vende, pois ela lembrava tantas coisas ruins.
 Anos atrás ocorreu um evento muito triste, Lidia e ele eram apenas namorados, estranhamente isso não afetava a mulher que adorava a casa, eles nunca se entenderam  sobre a casa.
                -Não Beto, não quero festejar com ninguém – disse Lídia quando arrumavam as coisas e continuou sem olhar para ele, - estou com um aperto no coração, queria passar com a minha família e minhas lembranças, se formos vender a casa eu  quero passar o nosso aniversário de casamento aqui, mesmo se o tempo estiver nublado.
                Sábado desceram a serra, na madrugada, como Beto gostava de viajar, chegando à praia domingo pela manhã, para a tristeza de todos, o tempo estava muito nublado e chovia  abundantemente, o ar pesado de chuva morna consumia a energia das pessoas.
                -Que merda, se é para viajar para uma casa de praia, pelo menos tinha que ter sol! Por que Lídia escolheu logo esse passeio? Ela sabe que não gosto daqui e logo em um dia de chuva, esse lugar está deserto? – Disse Beto como se tivesse um interlocutor interessado nas suas palavras, o anel de brilhantes estava no bolso esquerdo, apesar da capa já estava todo molhado.
                O local ficava em uma colina, dava para ver o mar cinzento da varanda mosqueado pela chuva intrusa, o local estava marrom, frio e deserto, desprovido da vida das pessoas, da energia de um dia de sol, um palco para a morte e o mal.
                -Olha isso gente, uma máscara, estava na escada, bem perto da entrada – disse Mauro. Os olhos de todos se voltaram para o garoto, que estava molhado e com as roupas ensopadas, quase não conseguia falar, segurava na mão um objeto grotesco, uma máscara de plástico, parecia ser de carnaval, porém sem a alegria da máscara carnavalesca, suja de lama, feita de um plástico mole, porém resistente, tinha elástico para prendê-la na região posterior da cabeça, o objeto grotesco trazia desenhado em cores vermelhas a horrenda figura do demônio.
                -Dante... é Dante, claro que é – disse Mauro.
                -Quem é Dante? – Perguntou Beto, olhando a criatura desenhada na máscara.
                -É um personagem fictício e o protagonista principal da série de jogos eletrônicos Devil May Cry criada e publicada pela Capcom. Nos primeiros quatro jogos, Dante é um mercenário e caçador de demônios, dedicado a pôr lhe um fim e a outras forças malignas supernaturais, uma missão que ele faz no sentido de perseguir aqueles que assassinaram a sua mãe e corromperam o seu irmão Vergil. Dante é filho de Sparda, um demônio de grande poder, e como resultado dessa herança possui numerosos poderes que vão para além de qualquer humano, que ele usa em combinação com uma variedade de armas para realizar os seus objectivos – disse Roberta, depois deu uma gargalhada que assustou o pai e a mãe, ela tinha crescido e continuou – alguma porcaria de japoneses.
                -Larga isso, que coisa horrível!  – Disse Roberto estranhamente irritado.
                -Quero ficar com ela pai, para a minha coleção de coisas perdidas, eu sempre quis uma máscara dessas, todos meus amigos têm, é difícil, alguém comprou pela internet, nem têm no Brasil – disse Mauro.
                -Não falei que esse garoto é esquisito? – falou Roberta, que era a única que parecia mais seca, cabelos presos e botas longas, muito bem protegida da chuva pela capa, a adolescente foi a primeira a subir as escadas de pedra, talvez somente ela teria percebido a sombra escura de um homem que sorria ao ver a família chegar, talvez  uma ilusão de Roberta? Para se certificar, ela andou toda a varanda, tinha certeza de ter visto algo, foi até a varanda do outro lado e espiou tentando forçar a visão através da chuva, perto do curral, ou era uma sombra, estava tão longe, achou que era coisa da sua cabeça e desistiu – que viagem idiota, isso parece mais um cemitério, sou obrigada a viver com pais idiotas e um irmão louco – completou.
                A briga sobre a máscara continuava.
                -Deixa Beto, quero esse feriado sem brigas – disse a mulher – é só um personagem de jogos, santo Deus! Deixe o menino ficar.
                O menino limpou a lama e guardou na bolsa. Olhou em volta e sorriu, falou baixo, pois sabia que seria ouvido.
                -Sei que está ai. – O amigo de todas as vezes que veio na praia, só ele sabia da paixão de Mauro por Dante.
                A chuva era torrencial, incomum para aquela época do ano, Mauro já estava sentado na poltrona com o videogame, a filha Roberta procurando um local melhor para falar no celular com o namorado, sussurrava uma série de palavrões, Roberta estava odiando tudo.
                -Odeio esse lugar, só lembranças tristes, a última foi à morte da vovó? – perguntou Roberta – o lugar mete medo, pede para o papai olhar na direção do curral, acho que vi alguém lá.
                -Nessa chuva – falou Beto – se tiver alguém lá espero que pegue uma pneumonia, e desligue o celular, não quero você falando com aquele rapaz.
                -Gente! Vamos ter um pouco de paz – disse Lídia.
                -Paz? É difícil ter paz quando a sua liberdade é retirada e você sugada para um passeio, em uma praia deserta com chuva e ainda por cima com seus pais e o retardado do seu irmão caçula que gosta de conversar com amigos imaginários– disse Roberta e foi para o quarto.
                Mauro fechou a porta, até aquele instante ninguém percebeu  que ele havia saído, entrou e sentou no sofá com ar de  tristeza, Roberto foi até ele, depois de perceber que o filho estava todo molhado.
                -Por que foi lá fora? – Beto surpreendeu o menino molhado e chateado no sofá.
                -Ele veio buscar a máscara – disse Mauro.
                -Ele quem? – perguntou Beto.
                -Meu amigo, disse que a máscara era dele.
                Beto quis falar mais alguma coisa, mas a mulher já o olhava de uma forma repressiva para que se lembrasse da conversa com o psicólogo: ”não interfira”.
                - Dante, ele nunca me disse o nome dele, agora disse que podia chamá-lo de Dante, eu gostei – disse Mauro, que aos sete anos tinha uma fascinação por objeto e coisas sobrenaturais, principalmente relacionados com jogos – tive que entregar, ele é meu amigo pai.
                -Não abra essa porta sem o consentimento de um adulto – disse Roberto e depois fechou a porta com chaves.
                A volta seria na terça, Lídia continuava com aquele aperto no coração.
                A noite falou com Roberto.
                -Tem alguma coisa me afligindo, uma sensação ruim – disse na varanda com uma cerveja na mão.
                -Deve ser aquela máscara horrorosa, e essa história de amigo imaginário – disse Roberto, estranhamente nervoso. - Agora estamos tão bem financeiramente, o dinheiro, nossas coisas todas certas – ele tirou o anel de diamante do bolso – para que esse tempo dure para sempre, é pra você.
                Eles estavam na varanda, à chuva caía pesada, com uma onda de água que parecia limpar tudo e ao mesmo tempo criar uma correnteza para que o barco do passado chegasse e naufragasse na frente do casal, dor intensa, cortante. A chuva tirava o prazer da conversa, fazia um barulho, alto, rude, às vezes musical, porém sombrio, Roberto amava a esposa, olhou rua abaixo, a enxurrada levava um conjunto de paus, pedras, lata, plástico, lixo que era levado de forma grosseira para o mar, coisas jogadas fora pela comunidade rural, seu olhar percorreu os dois quilômetros em direção ao mar, havia uma casa de tijolos, agora abandonada, no entanto com uma triste história para contar, olhou para a mulher e perguntou.
                -Lembra-se daquela casa? O que aconteceu ainda me assombra, todos os dias vejo o rosto desfigurado daquela menina – apontou com a mão para casa.
                -Acho que superei, não podemos controlar todas as tragédias das nossas vidas, temos que seguir em frente – ela passou a mão na cabeça dele e disse – não teve culpa, foi um acidente.
                -Ela só tinha quatro anos, você sabe que o aniversário dela é amanhã, que o último lugar do mundo que eu queria estar era aqui, não sabe? – Ele olhou bem para a mulher e perguntou – por que voltamos a esta casa, não gosto desse lugar.
                -Decide vendê-la, sei que tem lembranças ruins aqui, eu tenho as boas, muito boas, minha mãe e meus avós viveram aqui, tenho carinho por esse lugar – ela olhou para o mar – vou sentir falta daqui, por isso resolvi passar o último final de semana nesta casa, resolvi aceitar a proposta do Sr. Conrado.
                Roberto sorriu e beijou a mulher.
                -Eu amo você, nós seremos mais felizes sem esse lugar – disse Roberto.
                Ela chorou, não tinha certeza disso, mas homens são egoístas, ela já havia decidido, tudo pela família, se abraçaram e novamente entendiam por que se escolheram.
                O homem havia assistido tudo, até o momento que entraram no quarto, entrou na casa e segurou a máscara, firme, entre os dentes um ódio que não morre, o menino havia crescido, ele estudou tudo sobre eles, tudo, cada detalhe.
                Molhado, com gosto na boca de sangue, roupas suadas de uma vida no mato, calor, suor, raiva, sujo de terra e lama, não sabe como levantou, quando começou a conversar com o menino, quando voltou do inferno, porém sabia da sua missão, seu rosto estava carcomido pelos vermes.
                Ele sabia que todos estavam dormindo, então tudo seria muito fácil, como sedar imobilizar e prender a família que odiava.
                -O que é isso? – Perguntou Roberto, que estava amarrado e era o único que não estava amordaçado.
                O homem com a máscara do demônio olhou para ele, a máscara escondia meia face, o queixo do homem e a cicatriz horrível que partia o lábio superior  no meio, e o osso da mandíbula estava exposto, junto com uma fileira de dentes podres, negros.
                Ele gritava palavras que ninguém entendia, estava eufórico, então começou a falar.
                -O inferno chegando até você Sr. Roberto - com o revolver na mão e bem próximo de Roberto falava e gesticulava – ficou rico, criou bem os filhos, principalmente o menino, estava assistindo tudo de lá – disse e se aproximou, tão próximo que Roberto podia ver que todos estavam amarrados e sentados em uma cadeira, em fila indiana, Roberto era o primeiro e o seu filho o último.
                -Se é dinheiro o que quer... eu tenho, posso dar para você, não machuque a minha família.
                -Dinheiro, acha que uma pessoa distinta como eu vai querer o seu dinheiro?
                O homem chegou bem perto de Roberto, sua proximidade contaminava a respiração, seu hálito de nicotina era áspero e carregado, pútrido, nada fedia igual, colocou a arma na cabeça de Roberto e deu uma gargalhada, fragmentos de saliva inundaram a metade esquerda da face de Roberto.
                -Ricos e a sua forma de viver, conseguem comprar tudo, não estou aqui pelo dinheiro. Na vida existem coisas mais importantes que o objeto do desejo da compra, dinheiro, viagens, objetos e mulheres, que felicidade, não? No mundo cheio de posses! Não. Não foi para isso que vim, eu estou aqui para o acerto de contas do demônio, do demônio que consome a minha alma, entende, lá em baixo (no inferno) - ele apontou para baixo – a moeda é outra.
                -O que você quer? – gritou desesperado Roberto – o que você é? Isso no seu braço... são vermes?
                A mulher de Roberto começou a chorar, o homem correu até a mulher e colocou o revolver na testa dela e disse palavras lentas, diante da proximidade dele ela jogou o corpo para trás e a cadeira caiu, então o homem horrível gritou ajeitando a cadeira.
                -Cala a boca, só isso que peço, aí vamos ver se o cara te ama mesmo. – Ele deu uma gargalhada e voltou-se para Roberto – tem que escolher senhor Roberto, um deles tem que morrer, é a minha lei – ele mostrou a fotografia de uma menina – olho por olho.
                -OH, meu Deus! Perdão, perdão, perdão eu imploro, senti tanto com aquela perda... não tive culpa, foi uma circunstância tão estúpida, que coisa é você, é o demônio? – Beto começou a rezar e pedir a Deus a salvação e o livramento, como se fosse uma pessoa religiosa que nunca foi, nunca acreditou em Deus, no Demônio, no sobrenatural.
                -Cala a boca que sei que não acredita em nada disso, conheço o seu íntimo, quer saber? Chato não é? Perder alguém assim, como eu perdi, sabe que morremos juntos, viramos palha andando por ai, espantalhos, eu vivo no inferno desde então – ele pegou guardou a foto depois de beijar – depois da perda a pessoa não acredita em nada, se perder o seu anjo perde tudo, passa a não acreditar em coisas como: Deus, moral e o caralho, essa foi minha filha, queria ser uma princesa para poder ajudar todos os animais, ai um cão come a face dela, tira a vida dela, quatro anos de idade, um anjo – ele fez uma pausa e enxugou as lágrimas - minha mulher morreu logo depois, tomou um monte de remédios, eu sou covarde, gente como eu não se mata, não sem antes acertar as contas.
                -Por favor, posso fazer qualquer coisa.
                -Traga ela de volta, vamos lá, prove que pode – disse o homem e completou depois de um silêncio que só se escutava choro – viu, não pode qualquer coisa, não é? O ser humano ainda acha que tem livre arbítrio. Eu disse olho por olho, então terá que conviver com a perda como eu convivi nesses anos, não me adianta matar você – disse o homem.
                Roberto começou a chorar e completou.
                -Foi um acidente, Jesus Cristo, um cachorro não tem juízo... Eu tentei e não consegui segurar a coleira dele.
                -Um acidente, uma fatalidade – disse o homem com a máscara do demônio - minha filha foi considerada um nada, filha de gente pobre, vaqueiro, um caseiro de praia, nem mesmo admitiu o seu erro.
                -Foi há tanto tempo – disse Roberto.
                -Vai aprender que no inferno o tempo não passa.
                Roberto gritou por socorro, mas tudo que ouviu foi à chuva melancólica como uma música da morte.
                O homem disse:
                -Escolhe um dos seus amados parentes, estou te dando uma chance que não tive de escolher. – Roberto suava frio, sempre achou que aquela história voltaria, uma fatalidade, o seu cachorro, uma menina, como alguém pode culpar um cão por agir assim. A vida cobra tudo e com juros, olhou para aquele homem, ele estava ali, salivava bem próximo, com lágrimas de desespero nos olhos Roberto escutou o homem falar – eu sou o cão agora Sr. Roberto.
                Escutava o choro das pessoas que mais amava.
                -Escolhe – disse o horrível homem que estava com a máscara do demônio – escolhe, senão mato os três.
                Roberto sentiu um aperto no coração, não havia outra forma de falar e abriu os olhos e corajosamente encarou o demônio.
                -Sabe que vou poupar as crianças – disse e abaixou a cabeça, nem viu quando o homem com a máscara do demônio atirou em sua mulher, parte dele morreu junto, mas o monstro não parou, encostou a arma na cabeça do caçula, Roberto queria gritar.
                -A sua conta é pesada demais, ele sempre foi o meu preferido, é inteligente, lembra a minha filha, nunca existiu chance para ele – Roberta chorava e de olhos vermelhos implorava pela vida do irmão – não se preocupe menina, vai viver, não cobro mais do que me devem, vou levar o menino e a dívida do seu pai está paga.
                O segundo disparo atingiu Mauro na cabeça e fez Roberto perder os sentidos, quando acordou estava no hospital, Roberta chorava segurando a sua mão.
                -Por que ele fez tudo isso pai? Quem é aquela menina da foto? – ela disse chorando – acharam o corpo dele, estava morto há tanto tempo, há anos pai, o que foi aquilo? – ela começou a chorar.
                Roberto abraçou a filha como seu último tesouro.
               
                
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 19/02/2014
Reeditado em 30/08/2014
Código do texto: T4698208
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