São Paulo, 13 de novembro de 1992

 


Ali, no canto da parede, parecem me encarar, malditas baratas; com suas antenas me examinando; desejando meu cadáver. Sabem que meu fim está próximo, ainda não terão esse gostinho. Não ainda. Essa casa já fede a carniça, o velho relógio, de madeira, herança do meu pai, faz um barulho anormal, cada passagem dos segundos ecoa uma fúnebre contagem regressiva. Aqui, na mesa da cozinha, onde estou sentado, observo também os ratos farejando meu fim. Se você está lendo isso, caro leitor, meu último último esforço deu certo. Afinal, não é fácil escrever algo quando se tem os dedos vermelhos manchados pela culpa. Pensei muito em que escrever. Na minha querida infância, no meu casamento, na minha família, como conheci Raquel no show da Legião Urbana. Mas como escrever sobre passado quando o próprio presente consegue nos culpar? Eduardo e Mônica, foi a música que tocava quando nos conhecemos. Ela sorria com um copo de cerveja na mão, e sempre ao refrão, levantava os braços ao alto e se entregava para o som. Raquel era tão Mônica. E de Eduardo, eu tinha apenas a preguiça. Nada mais. Raquel repousa, agora, em uma poça de sangue. Poça suprida, pelo fino fio do corte de uma faca. Seu pescoço foi tão frágil quanto uma manteiga rendida por uma faca quente. A parte mais sensata, sem culpa eu diria, foi a morte do cafajeste que a envolvia nos braços. Furiosamente, a faca adentrava seus pulmões, coração, fígado, barriga e outros lugares que não consigo lembrar. Mas como não me livrar da culpa se outrora também fui infiel e estou aqui vivo? Por enquanto. Querem o quê? O clímax logo? Esse conto não tem clímax. Não sei se é um conto ao certo, deve ser um conto sim, pois quem conta sou eu, e fui eu ainda que comecei essa história e devo acabá-la. Então, deixem de ler se não se interessam mais, ou leiam, por apenas pura curiosidade. Seus julgadores hipócritas.
Caros leitores, já pararam pra pensar o que é pior: Não conseguir dormir pela culpa, ou não conseguir morrer por ela? Afinal, quem é infiel na verdade; quem trai ou quem é traído? Não tinha nenhum copo de cachaça em casa, a única garrafa de vinho escapou-me da mão e, seu líquido, esparramou-se pelo chão, misturando-se com o sangue. Dois líquidos vermelhos distintos. Não tão distintos se compararmos as guerras. Gostaria de saber como isso irá acabar, sei que vou morrer, mas como? Essa porcaria de arma ainda está emperrada. E ali, as malditas continuam a me observar. Odeio o modo como movem suas antenas.



                                                  São Paulo, 20 de novembro de 1992.



Boa noite caro leitor, sou o oficial da polícia militar do estado de São Paulo, Caio Castro. Tomei a responsabilidade de escrever o resto dessa carta. O senhor Alfredo Jardim, foi encontrado morto nesta manhã, vizinhos alegavam um cheiro muito forte vindo da casa dele, a policia foi avisada e quando chegamos ao local descrevo a seguinte cena: Estava ali deitado, em avançado estado de decomposição, com um sapato agarrado em uma das mãos e na outra havia uma arma e outra mão. Muitas baratas mortas esmagadas ao redor do corpo, provavelmente o porquê do sapato. Em cima da mesa, encontrava-se um pote de veneno chumbinho e 4 ratazanas mortas ao redor, relendo a carta, vi que ele não queria deixar seu cadáver para eles. No quarto, mais dois corpos em avançado estado de decomposição: Uma mulher de aproximadamente 37 anos com um corte em seu pescoço e sem uma das mãos. E um rapaz de aparentemente 26 anos, morto com várias facadas em seu copo inteiro. Devem estar se perguntado como ele morreu, foi de uma forma muito estranha: Ele cortou a mão da mulher, encaixou-a no gatilho da arma junto com a sua, e um disparo aconteceu acertando sua cabeça. Essa carta será arquivada na central da polícia militar ou entregue à família.

Sem mais. Caio Castro, superintendente da polícia militar do estado de São Paulo.
Eduardo monteiro
Enviado por Eduardo monteiro em 22/02/2014
Reeditado em 22/02/2014
Código do texto: T4701986
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