Falo Que Falta - DTRL15

Falo Que Falta

É obvio que o personagem do Robert Duvall adorava o cheiro de Napalm pela manhã. Todos nós adorávamos. Afinal, era o único momento do dia que não sentíamos o cheiro podre da morte. O odor repulsivo do sangue, das vísceras, das fezes, da maldita gangrena. O pus que jorrava de cada vão que a pele se recusava a revestir. Se esse líquido amarelado fosse tão precioso quanto petróleo, todos nós, soldados, estaríamos ricos. Desmembrados, mentalmente fodidos, coberto por cicatrizes, mas miseravelmente ricos! Seriamos a maldita “Família Buscapé”, embora fisicamente estivéssemos mais para a “Família Adams”.

A enfermaria era o Inferno que nem os demônios ousavam entrar. Dizem que o próprio Diabo enjoou nos primeiros passos: coçou os chifres, fez cara de nojo e saiu com o rabinho entre as pernas. Quem diria, até o príncipe das trevas achou o ritmo do curso muito pesado e resolveu trancar a matrícula. Nós não tínhamos escolha, não existia recuo ou retirada daquele abominável posto improvisado. Judeus rezavam para Maomé, muçulmanos para David e Cristãos para Baphomet. Até os ateus – que zombavam de todo mundo antes do desembarque – não paravam de repetir suas súplicas. Na realidade, ali, naquele necrotério de almas, os ateus se tornavam os piores hóspedes. Crianças choronas e sem dignidade, desesperadas prostitutas da fé, oravam para Zeus, Buda, Deuses Astronautas, Ganesha, Ogum, ou qualquer outra divindade que, algum dia, tivessem ouvido falar, ou lido a respeito em algum panfleto de aeroporto. Um dos caras até inventou seu próprio Deus: o supremo analgésico, filho do caipira Jack Daniel´s com a encantadora Heroína. Antes de morrer conheceu o poder transcendental da Morfina e renegou o seu messias inventado.

A morte passeava alegremente no seu pequeno vale das sombras. Desfilava pelos corredores, ziguezagueando pelas macas e os restos de gente jogados no chão. Invariavelmente, sentíamos seu suspiro gelado trespassando nossa coluna, torcíamos pela dádiva de seu beijo gelado. Mas ela não era uma colegial desinibida, dificilmente prestigiava mais de três sortudos por dia. Suas escolhas não respeitavam nenhum critério de racionalidade: certa vez levou um pobre garoto que estava com uma pequena inflamação acima do siso, no entanto, demorou mais de dois meses para levar 1/3 do que havia sobrado do nosso Sargento. Essa tal de Morte era uma vadia sem escrúpulos, não dizíamos nada com medo de sermos convenientemente esquecidos naquele martírio. Sua lista era extensa e sua mão ossuda podia a qualquer momento apagar um de nossos nomes. E, uma coisa era certa, não queríamos voltar pra casa, especialmente eu!

Alguns companheiros choravam porque suas namoradas haviam dado o fora, mas isso era absolutamente previsível, afinal, nenhuma garota na flor da idade queria esperar tanto tempo para receber uma sombra do que um dia havia sido o seu príncipe encantado. Quanta besteira, nós não éramos príncipes, nós matávamos príncipes. E a única coisa encantada era nossa metralhadora. O truque? Despedaçar membros amarelos e pequenos. "Abracadabra - aqui está o seu projetil traçante, filho-da-puta!" Quando as cartas chegavam sem as fotos de pernas torneadas, peitinhos e bocetas, sabíamos que as noticias eram tristes. Sempre a velha estória do amiguinho da faculdade: bonzinho, tranquilo, contra qualquer tipo de guerra... inteligente. "Bobagem, bichas asmáticas e anêmicas que conseguiram fugir desse inferno. Escrotos que não percebem que defendemos seus valores ridículos com sangue, nosso sangue!"

Comigo tinha que ser diferente, como sempre. Minha esposa não passava um mês sem enviar suas cartas apaixonadas e esperançosas: “não vejo a hora de você voltar”, “você não sabe quem ficou grávida?”, “você tem que escutar essa banda nova” e “quero sentir mais uma vez você!”. "Merda, merda e merda!" Ela ainda não percebeu que eu não sou mais aquele homem. Não percebeu que não sou mais homem. Não percebeu que estou morto, ou melhor, que sou um maldito morto que não consegue morrer. Uma praga que só consome, só atrasa, só respira.

Na vida a gente nunca espera que uma coisa ruim possa nos acontecer. Aqui todos nós esperávamos algo, mas ninguém – nem a mais doente e psicopata imaginação – podia esperar o que aconteceu comigo. Sei disso todas às vezes que olho nos olhos dos outros soldados, “companheiros”... Antes de desviarem o olhar, com medo de me encarar, consigo enxergar a pena, crua e cruel. Não existe um desgraçado nessa maldita enfermaria – e olha que existem desgraçados bem fodidos – que não tenha piedade da minha existência. Cretinos que não possuem nem a mínima decência de me oferecerem uma bala seca e um cão em riste. "Bastardos" que não me emprestam uma lâmina afiada, uma dose descompensada ou um travesseiro, simples, macio e asfixiante. Ingratos que fingem não me ouvir, que desprezam os meus pedidos, que se recusam a desatar os nós.

"Semper fi é o cu do meu fuzil! Se pudesse arrancava cada tatuagem com os dentes, malditos sacanas não merecem uma pingo de tinta que não seja rubra e vital."

Tudo isso porque agora sou a fatalidade 0,0000001 de uma estatística escrota publicada em um site bizarro de curiosidades. O exemplo vivo de que existem coisas piores do que a morte. Sou o desespero, o choque e a careta refletida naqueles que ouvem o relato. A agonia no rosto do médico, o choro contido na cara do recruta, o grito preso na garganta do Tenente. A dor física e mental de todos os homens da companhia.

A coisa toda aconteceu há uns dois meses, no entanto, parece que foi no minuto passado. Ainda sinto a dor lancinante, o desespero municiado pela insanidade. Era uma noite escura e quente, como todas as outras nesse maldito lugar. Insetos do tamanho de pássaros sobrevoavam nossas cabeças sem respeito a qualquer rota aérea. As colisões rotineiras deixavam um rastro de sangue verde e quente em nossas peles, que um dia foram rosadas. Lagartos monstruosos atravessavam nosso caminho de hora em hora. Naquele lugar monocromático, onde só existiam tons de verde, as cobras eram as únicas coisas coloridas que ousavam divergir. Eram o arco-íris venenoso e mortal do maldito lugar. No fundo, os desgraçados sabiam que nós éramos os intrusos, pois cruzavam nosso caminho com o orgulho e a audácia de quem manda no pedaço. Eram a gangue mais fodida do local, nós: os forasteiros idiotas que não sobreviveríamos a uma mordiscada. Mas, na realidade, não fazia mais diferença, estávamos acostumados com aquela merda toda e continuávamos em frente.

Éramos sete, um Sargento, três Cabos, dois novatos e eu. Patrulhávamos o vilarejo duas noites por semana. Sete homens sem destino, sem esperança, sem motivação, mas cheios de tédio. Tédio corrosivo que inflava nossas bolsas escrotais e que nos enlouquecia lentamente. Não por outra razão, o nosso Sargento surgiu com a brilhante ideia. Um oásis naquele inferno verde. Uma tábua de salvação jogada em nossa direção, ou melhor, um pedaço de alcatra jogada na jaula dos leões.

Quando ele surgiu com a proposta, todos nós ficamos em silêncio. O Sargento tinha um humor duvidoso e nem sempre conseguíamos entende-lo. No entanto, não posso negar que meu coração bateu mais forte logo no primeiro momento, tal qual o idiota que dá um sorriso sem graça quando descobre no final que a garota só estava brincando. Lembro-me de que uma gota de saliva escorreu pela minha boca seca. Não demorou muito para que todos percebessem que ele estava falando sério, muito sério. Ninguém ousou tecer qualquer comentário, a anuência foi dada pela ausência de qualquer som. Apenas um dos novatos balançou negativamente a cabeça, antes de ser fuzilado pelos olhos de todos os companheiros, especialmente pelos meus.

Corremos como garotos em uma praia. Atravessamos o terreno inóspito em uma velocidade estonteante. Apesar do equipamento pesado que carregávamos, sorriamos, pois a leveza do momento se apoderara dos nossos corpos debilitados. A felicidade transbordava por nossa pele castigada pelo sol. A alegria era tanta, que nem os primeiros gritos estridentes roubaram a magia da ocasião.

Logo na primeira barraca – que os desgraçados insistiam em chamar de casa – o Sargento foi prontamente agarrando uma mulher que estava dormindo. Antes que o marido dela ou seus filhos pudessem falar alguma coisa, ele já foi logo enfiando uma granada na boca da nova amiga. Ali, percebi o poder transcendental de uma granada, pois ninguém ousou reclamar de mais nada. Aparentemente, o artefato por si só era uma ameaça que não respeitava meridianos.

Inundado de lascividade, corri para os fundos da barraca e quando lá cheguei outros dois companheiros já haviam escolhido suas damas. Gritei de angústia, fúria e promiscuidade latente. Entretanto, sem me lamentar muito, galopei para o extremo oposto. Minha visão, já acostumada com a escuridão, percorreu cada metro quadrado daquele barraco a procura do objetivo. Em questão de segundos, avistei meu alvo contorcido em um dos cantos do local. Empurrei um dos novatos para o lado e rosnei para o outro.

Pouco dei importância quando todos os olhos estreitos do local me encaram na penumbra, afinal, só tinha um pensamento. Ao invés de usar uma granada, puxei meu facão de 40 centímetros e, assim como o Sargento, também exigi o meu silêncio. No exato momento em que levantei a garota que estava encolhida no canto do lugar, percebi que ela não podia ter mais de 16 anos. Foda-se, pensei. Sorri encoberto pelas sombras e abaixei as minhas calças. "Meu fuzileiro já estava pronto."

Em um transe bestial agarrei sua cabeça frágil e a empurrei em direção a minha pélvis. Na primeira recusa lhe presentei com uma maquiagem arroxeada abaixo do olho. Na segunda, ela foi obrigada a cuspir um pedaço de dente. Não houve uma terceira e eu logo pude sentir o sangue quente da sua boca escorrendo pelo meu pênis. O aconchego reconfortante que não tinha preço naquele lugar marcado pelo demônio. "Ah, se eu soubesse, teria aproveitado muito mais cada segundo daquela vagabunda."

Fui ao céu, antes da descida vertiginosa. A plenitude da minha luxuria antes do fundo do poço impotente. O cume, o apogeu, o clímax antes da derrota. Meu encantamento era tamanho que não escutei os gritos de advertência. Infelizmente, a solução que o Sargento tinha dado para a situação era extremamente instável. Entretido, ele não percebeu que sua companheira havia puxado o pino da granada com sua virtuosa língua e sorria da coisa toda.

A explosão veio acompanhada de uma trilha sonora aterrorizante. Os sobreviventes de olhos puxados gargalhavam da chacina. Como se tudo não passasse de uma armadilha construída habilmente. Pedaços da mulher e do Sargento voaram por todos os lados, e em todas as direções. Eu apenas fui lançado violentamente para trás, pelo menos, grande parte do meu todo.

Meu ouvido zumbia e eu só consegui enxergar por flashes. Uma dor leve, porém crescente, irrompeu perto da minha virilha. Alguma coisa fluía empapando as minhas calças puídas. Olhei para baixo e o pânico me acertou em cheio. A braguilha ainda estava aberta, porém, meu amigo não estava mais lá. Meu estimado camarada havia sido cortado pela raiz, como uma mandioca cor de beterraba.

Na minha frente, a garota safada sorria com o meu membro pendurado em seus dentes. Ela balançava o que era meu, como se fosse dela. Pulei em sua direção, mas antes de alcançar aquilo que me pertencia, ela o engoliu de uma vez só. Seu sorriso zombeteiro pilhava meu espirito e, ao mesmo tempo, para piorar, ela esfregava sua barriga sem músculos com visível satisfação. Não titubeei e enfiei parte do meu braço em sua goela. Mexi e remexi. Nada, não alcancei nada. Contudo, a garota continuava sorrindo, como se ganhasse a vida fazendo endoscopias para laboratórios.

Com meu solitário facão, rasguei a pele que revestia o abdome e retalhei o estomago diminuto. Ela ria. Revirei no escuro aquela massa fétida e gosmenta. Nada, somente alguns grãos. Em razão da desnutrição e da potência de um suco gástrico vingativo, meu órgão era só um punhado de vestígios – a última proteína que aquele corpo tinha ingerido em dias. "Malditas sementes plantadas no local errado." Ela ainda ria. Desmaiei escutando suas gargalhadas.

Meus “companheiros” disseram que grande parte disso foi um sonho. No relatório oficial, um acaso, uma simples mijada perto de um Sargento descuidado. Nas lendas dos dormitórios, uma história homossexual com contornos trágicos, usada oportunamente como advertência. Mas a verdade é que mesmo nessa maldita enfermaria, quando eu fecho meus combalidos e arregalados olhos, eu ainda escuto aquela risada... Aquela maldita gargalhada da mulher que me tirou o Y, que roubou meu falo...

O falo que tanto me falta.