Ladrões de Cores - DTRL 15

Nós não sabíamos se estávamos sozinhos no Universo, vasculhávamos os céus com nossas potentes antenas em busca de algum tipo de sinal, mas o que recebíamos de volta era apenas o frio silêncio das estrelas. Éramos como surdos tentando ouvir, mas isto não significava que também éramos mudos, pois a cada dia, desde a primeira transmissão de televisão na década de 30 do século passado, a humanidade se fazia ouvir. Enquanto vivíamos nossas vidas despreocupadamente nossa presença era delatada através de ondas de rádio, testemunhas velozes do desenvolvimento de nossa civilização. A cada ano que passa uma bolha de mais de 60 anos-luz de diâmetro se expande pelo cosmo, são nossas transmissões televisivas, nossos contatos de rádio, nossas conversas telefônicas, enfim, todo tipo de comunicação produzida.

E, cedo ou tarde, alguém ouviria nossos ruídos. Restava esperar que quem quer que fosse não se importasse muito, ou pelo menos que fossem seres benevolentes. Entretanto o mundo não é um conto de fadas e nem só os anjos vivem no céu. Algo nos encontrou sim, e a única coisa que este algo queria de nós era nosso fim.

- Tá frio – me disse a pequena menina a meu lado.

Tirei meu casaco e a envolvi com ele.

- Não se preocupe, vai passar. – disse eu enquanto envolvia seu corpo miúdo e magro com minha roupa suja e surrada.

A pequena esboçou um sorriso e deixou a mostra alguns dentes de leite cariados, depois olhou para fora da caverna e apontou.

- O que é essa coisa branca que caí do céu? – ela me perguntou.

- Chama-se neve. – disse eu.

- Eu gosto da neve, é branca, pena que é tão gelada. Sempre existiu neve papai?

Olhei para ela mais uma vez e também me permiti um sorriso. As crianças são como um pequeno milagre, uma forma do mundo se renovar frente as piores catástrofes. Lívia, minha filha, não havia conhecido o mundo antigo, para ela o atual estado das coisas era normal pelo simples fato de não ter conhecido outro.

- Sim minha filha, neve sempre existiu, mas não aqui. Aqui sempre foi verde, brilhante e ensolarado, o céu era azul, havia flores no campo, o mundo era muito mais colorido.

- Cores? O senhor quer dizer como nas pinturas?

- Sim, cores como as das pinturas, as pinturas de sua mãe.

O mundo que Lívia conhecia era em preto e branco, as únicas cores eram dos quadros produzidos por outra Lívia, sua mãe. Aquela pequena criança não tinha noção do azul do céu, a não ser por um ou outro vão entre as nuvens que aparecia de vez em quando, quanto ao verde das plantas ela só conhecia de nossas estufas no subterrâneo.

- Foram eles quem roubaram as cores não foram papai?

- Sim filha, foram eles, eles levaram as cores, tiraram o colorido do mundo.

Malditos sejam, pensei, levaram o colorido do mundo, levaram boa parte da vida da Terra, levaram muitos de nós.

- Será que eles voltarão algum dia papai?

Olhei para minha pequena e pude ver um pouco de medo em seus olhos, ela era muito mais jovem quando a maior parte, mas nem todos, deles se foram, mas seu cérebro infantil ainda estava traumatizado pela lembrança dolorida da perda.

- Talvez voltem, ou talvez não. Penso que eles acreditam que os poucos de nós que restaram não sobrevivam, e talvez por isto nunca mais visitem este mundo novamente.

Lívia abraçou meu braço com força, pude sentir seu corpinho esquelético tremendo junto ao meu.

- O que foi meu anjo? Ainda tem frio?

Olhei para ela e pude notar uma pequena lágrima cair de um seus olhos.

- Fale minha filha, o que foi?

- Estou com medo papai – disse ela num tom de voz triste e profundo.

- Não se preocupe filha, mesmo que eles voltem isto talvez demore algumas centenas de anos.

- Não tenho medo que eles voltem papai, tenho medo de que eles estejam certos, medo de que nós não sobrevivamos.

Entendi o medo de minha filha e a admirei por sua maturidade, eu na sua idade nunca teria me comportado daquela maneira, é engraçado como as épocas influenciam o comportamento de adultos e crianças, fazendo os primeiros chorarem como meninos e os últimos se comportarem como homens de verdade.

- Escuta minha filha, acredite em mim, farei de tudo para que eles estejam errados, faremos este mundo ter cores novamente.

Lívia sorriu, e vi em seu sorriso a mesma expressão de alegria que fez com que eu me apaixonasse por sua mãe nos tempos em que a humanidade ainda tinha esperança.

- Agora durma, vou acender o fogo, não sentira frio esta noite.

Ela me abraçou novamente. A peguei no colo e a coloquei sobre o velho colchão no fundo da caverna. Como sempre fazia a beijei e assim que ela dormiu peguei meu fuzil e sai da caverna.

Lá fora alguns homens estavam rodeando uma fogueira e dividiam um xicara de algo fumegante.

- Café companheiro? Conseguimos uma lata intacta nos escombros da cidade.

Aceitei prontamente e senti na boca o gosto quente e amargo do café sem açúcar. Era algo que não sentia há muito tempo.

- Soube que noite passada você pegou mais um – disse o homem que deu o café – acha que ainda há muitos por aí?

- Não muitos, mas ainda há, agora estão fracos, procuram por comida em qualquer lugar. É bom protegermos as crianças. – disse eu olhando para a caverna onde Lívia e outras crianças dormiam.

- Gostaria de saber por que estas bestas não voltaram para o mundo delas junto com seus amigos. - perguntou outro homem.

Foi um dos mais velhos quem respondeu:

- Simples, foram abandonadas aqui, eram fracas demais. Além disso, é uma garantia, ficando aqui elas podem dar cabo dos sobreviventes, ou seja, de nós.

- Se depender da gente – falou o homem do café – e dessa xícara de café preto, eles vão é se ferrar todos.

O grupo se permitiu uma gargalhada, era bom rir, mesmo com aquele frio.

Mas o riso durou pouco. Vimos no rosto do homem do café, o mesmo que ria, uma expressão de pavor, sua boca se contorceu e a xícara caiu derramando o preciso e raro líquido que continha. Foi tudo muito rápido, quando percebemos o sangue já escorria de sua boca e enfim concluímos que ele estava morto e vimos o monstro atrás dele.

- Atirem! – gritou alguém.

Eu não esperei seu pedido, já me encontrava de arma em punho descarregando meu fuzil no intruso. Todos os outros homens fizeram o mesmo. Mas a criatura era forte.

Os quase três metros de fúria e garras gania como um cão raivoso, segurava uma lança primitiva feita de madeira e com ela balançava no ar o corpo de nosso amigo. Eles agora usavam como armas tudo o que encontravam pelo caminho, bem diferente da avançada tecnologia com a qual eliminaram 90% da humanidade.

- Atirem! Atirem! – repetiam todos.

Ao longe o choro das crianças se misturava aos ecos dos tiros de fuzil e dos gritos da criatura. Foi então que eu me toquei.

- As crianças! Querem as crianças! Lívia! – corri o mais que pude, aqueles monstros nunca andavam sozinhos.

Enquanto meus amigos abatiam a primeira criatura eu cheguei à entrada da caverna e vi uma cena grotesca: outro monstro segurava o que restava dos corpos de duas crianças.

- Maldito!

Imediatamente e tomado pelo ódio atirei, atirei até não poder mais. O monstro cambaleou um pouco, minhas balas acabaram, mas minha fúria não.

- Morre! – gritei indo para cima dele e o golpeando com a coronha de minha arma.

Logo, logo alguns homens se juntaram a mim e tomados da mesma ira caíram sobre o monstro com paus e pedras. A fera ainda tentou reagir ferindo alguns de nós, mas com pouca gravidade, por fim estava morta.

Ao meu redor tudo era desolação. Duas crianças mortas, dois pequenos potes de esperança vítimas daqueles invasores do espaço.

- Lívia! – gritei – Minha filha!

Mas não ouve resposta.

Vi uma mulher chorar sobre os restos de um corpo. Tentei não olhar para o que sobrou da outra criança, mas era impossível resistir.

- Lívia... – balbuciei constatando a dura verdade - ... ah meu amor...

Reconheci meu casaco, a única coisa identificável naqueles restos do que um dia foi o tesouro de minha vida.

- Desculpa filha, desculpa...

Alguns homens colocaram suas mãos em meus ombros, todos ali sabiam como era a dor da perda.

Eu falhara mais uma vez, assim como falhei com a mãe falhei com a filha. Os monstros do espaço haviam levado tudo o que me importava.

- Que vá descansar em um lugar colorido meu amor – disse eu – não vai sentir frio esta noite.

Sim, que ela nunca mais sentisse frio e se existisse um paraíso garantido para as crianças que ela fosse para lá e conhecesse as cores. Pois na minha vida e na vida do planeta Terra elas não existiam mais.

Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 19/03/2014
Reeditado em 19/03/2014
Código do texto: T4735768
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