O vilarejo nas montanhas

O caminho até aquele lugarejo no ventre daquelas montanhas estava chuvoso e penoso para Aiko. Tinha que chegar lá antes da meia-noite e voltar para a capital o mais rápido que pudesse, mas aquela tormenta parecia querer impedi-la de completar os seus planos.

Estava cansada e enraivecida, não queria ter ido gravar naquele lugar. “Mas você deve ir”, lhe dissera o seu chefe, Uzumaki. “A sua equipe estará lá te esperando para gravar a matéria sobre os barulhos estranhos à meia-noite. Não se atrase.”

- Não se atrasar uma ova! – gritou, batendo forte no volante do carro.

O celular dela tocou, e ela o atendeu. Era o cameraman, Kato. Conversaram enquanto ela seguia a estrada... Mas se Aiko não estivesse tão distraída com a conversa, teria visto aquela mulher de pele pálida e cabelos negros, parada num dos lados da pista com uma placa dizendo: “Não entre” escrita em sangue rubro.

- A chuva aqui está infernal – ela argumentou sobre a demora. – Mal consigo enxergar um palmo de estrada a minha frente.

- Mas não tem chuva nenhuma, Aiko – Kato lhe estava dizendo quando ela viu um homem parado sob uma enorme árvore frondosa.

Ele tinha a pele branca como leite recém-saído de uma vaca, olhos amendoados que mais pareciam estar brilhando sob aquela cortina de água que a tempestade causava. Benzeu-se quando viu o sorriso tenebroso que ele trazia no rosto, e acelerou.

Continuou falando ao telefone, mas ao mesmo tempo olhava através do retrovisor a enorme árvore e o espantoso homem logo abaixo dela. Kato falava, tentando convencê-la de que não havia nem uma única gota d’água caindo daquele céu altamente estrelado.

- Estrelas? – ela disse, sarcástica, sentindo o coração voltar ao seu ritmo normal. – Tem certeza que você está do lado de fora? Espera... Finalmente estou vendo a placa. Chiasa, 152 habitantes. Lugar muito pequeno, não acha?

- Acho, mas não recebemos para achar nada. Venha logo.

Adentrou com o carro através de uma estrada lamacenta, com o vento a uivar do lado de fora das janelas fechadas daquele automóvel. Sentiu, de repente, um calafrio lhe percorrer a espinha e os pelos da nuca se eriçarem.

Fez uma oração silenciosa e continuou.

Do topo daquela primeira colina, viu os pequenos casebres de madeira que se erguiam e a movimentação de carros.

- Pra você nunca chove Kato – ela disse, buzinando enquanto descia a curta colina e chegava a um casebre maior.

A chuva se resumia a apenas um chuvisco quando encostou o carro.

- Pensei que nunca iria chegar – um dos membros da equipe disse. – Vamos começar logo?

- O mais rápido possível – Aiko disse. – Quero voltar o quanto antes para casa. Esse lugar me dá arrepios.

Ela viu os olhares curiosos daqueles agricultores. Olhavam para a equipe e para as câmeras como se fossem monstros vindos do inferno, preparados para assombrá-los. Não me admira eles morarem nesse fim de mundo.

- Aquela é a senhora Kanoko – disse Kato. – Ela nos levará até o nosso destino.

Aiko caminhou na direção daquela velha anã com olhos puxados e negros como o breu do universo. Kanoko deu um sorriso desdentado para Aiko, fazendo mais um calafrio subir pela espinha dela.

- Como vai, senhora Kanoko? – perguntou, forçando um sorriso para a mulher.

A velha corcunda nem se deu ao trabalho de responder. Olhou para uma garota tão estranha quanto ela que estava parada perto de um homem de uns quarenta anos – mesmo aparentando ter bem mais do que isso.

- Me acompanhe Aiko...

Ela tem o mesmo nome que eu, Aiko pensou quando viu a garota caminhando até aquela velha horrorosa.

Lentamente, o grupo seguiu seu percurso através de uma velha e sombria estrada sulcada, cheia de lama e de retorcidas árvores mortas. Iam em silêncio, até o momento que Kato decidiu que era hora de começar a filmar.

- Começamos no três... dois... um.... Ação!

- Estamos gravando mais uma matéria de arrepiar a alma – estava dizendo Aiko, colocando um dos seus braços ao redor da velha. Ela falou durante quase cinco minutos, desejando profunda e ansiosamente que a luz da câmera se apagasse.

Quando o sonho de Aiko foi realizado, eles logo voltaram a andar em direção ao túnel. Kato continuava tagarelando quando entraram em uma estrada secundária ainda mais sulcada e acabada do que a que abaram de deixar.

- É ali – apontou a velha com os seus dedos longos como galhos e flácidos.

O túnel se resumia a um buraco de, no máximo, dois metros e meio de altura e três de largura. Estava abandonado até não poder mais. As ervas daninhas já estavam subindo pelo concreto acima, enquanto o capim também tentava dominar tudo.

Entraram naquele lugar velho. Aiko logo sentiu algo que a fez se lembrar do homem na estrada, abaixo da árvore. Terminaremos isso logo, era o seu consolo. Estarei novamente em casa em breve.

- Conte-nos um pouco do que aconteceu aqui – Aiko disse para a senhora Kanoko no momento em que a câmera foi ligada.

- Esse túnel, lá nos anos 30, era usado para o transporte de alimento entre essa parte e a outra. Quando veio a guerra em 1939, a cidade vizinha, depois desse túnel, foi bombardeada e destruída – a velha pigarreou, cuspindo uma mescla de saliva e sangue. – Nosso vilarejo foi o único dessas bandas que ainda resta; todos os outros arderam durante a guerra.

- Por que a cidade vizinha foi destruída?

- O exército ouviu histórias sobre inimigos vivendo escondidos entre nós. O governo mandou que atacassem na mesma hora. Os poucos sobreviventes se esconderam aqui, junto com um homem dono de escravos. Sim, oh, Suichi Kamiya. Dizem que era um homem maldoso com os seus homens, e os matava por simples acidentes. Soube que ele matou um escravo apenas por derrubar uma colher de açúcar no chão.

Aiko estava ficando impaciente.

- E o túnel é realmente assombrado, como dizem?

- Sim, é assombrado pelos escravos e pelo seu senhor. Contam que os escravos o mataram e o enterraram aqui. Oh, e os escravos que ele matou também foram enterrados nesse solo.

Uma pancada oca vinda de algum lugar ao longe tirou a concentração de Aiko e de sua equipe. A jornalista tentou olhar para o final do túnel, mas a iluminação era precária – a única fonte de luz era a lanterna da câmera.

Viu e sentiu alguma coisa se mexendo no escuro.

Gritou.

- Ali! – disse, apontando para a escuridão vazia. – Tem alguma coisa ali!

O cameraman virou a luz da câmera na direção que Aiko tinha apontado... Nada. Estava vazio, silencioso, sujo e úmido. Mas eu vi alguma coisa, dizia Aiko para si. Eu tenho certeza...

E viu novamente!

- Atrás de você Kato! – gritou, desesperada.

Kato se virou para olhar, e novamente ninguém encontrou nada. Mas Aiko tinha visto alguma coisa, não tinha?

E de novo!

- Oh, meu Deus! – Kato exclamou quando viu do que Aiko estava falando.

A mulher – o ser, melhor dizendo – estava grudado no teto do túnel de cabeça para baixo, fitando-os com seus pequenos olhos escuros como uma noite sem lua. Seu longo cabelo escuro parecia molhado; sempre estava pingando. A roupa nada mais era do que os restos de um velho quimono, todo salpicado de lama.

Aiko não tinha uma reação; não tinha um rosto que esboçasse o seu terror diante daquele ser infernal, digno de algum filme ou jogo de horror.

Ninguém teve voz durante um segundo, tornando todo aquele túnel um local silencioso. Quando Kato recuperou os movimentos, largou a câmera no chão e saiu correndo. Os outros fizeram o mesmo – exceto a velha e sua neta hedionda.

Aiko correu com todas as forças das suas pernas, porém quando parou para respirar, estava sozinha e perdida numa estrada sulcada e úmida. Seu coração parou no mesmo instante que percebeu isso.

- Kato? – gritou, em meio à escuridão.

Algo passou arrastando-se por baixo de suas pernas. Aiko gritou.

- Sai! – disse, aos berros e aos prantos. Abanava os braços freneticamente. – Sai!

Voltou a correr, mas foi para uma direção avulsa, nem mesmo ela sabia para onde seguia. Sabia apenas que estava fugindo.

Passou por baixo dos restos de uma velha torre de observação... Mas se tivesse prestado atenção à torre, veria a mulher vestida de branco e com os cabelos vermelhos mostrando uma placa, escrita em sangue: “Não corra por aí”.

Correu e continuou correndo até estar de volta à aldeia. Ficou feliz por pouco mais de um segundo, até ver uma neblina negra se esgueirando pelas paredes de madeira de uma casa e entrando por um buraco.

E foi então que viu Kato correndo, mergulhado em desespero. Quando se preparou para correr até ele, a mulher do túnel e homem que vira na beira da estrada saíram de dentro de uma das casas – a mesma onde a neblina entrara.

Uma espécie de medo paralisante lhe tomou o corpo e a voz. Ficou parada como uma estátua ali, olhando-os caminhar.

Ao lado de uma árvore contorcida, uma figura vestida de branco e com cabelos louros segurava o que lhe pareceu ser uma placa, escrita em sangue. Dizia: “Elas tentaram te avisar”.

Mas com alguma força que lhe surgiu, sem saber de onde veio, Aiko desapareceu entrando em uma das casas. Gritou para os moradores, mas não teve resposta de volta. Desesperou-se ainda mais quando viu a neblina percorrendo o chão daquele casebre. As palavras que acabara de ler retumbavam dentro de sua cabeça.

Girou sobre os calcanhares, gritando, e tentou abrir a porta... Mas esta não abriu. Procurou outras formas de sair, não encontrou nenhuma. Correu para algum dos quartos. Fechou a porta e se encostou a ela, para evitar que se abrisse.

- Deuses... – sussurrou em meio ao choro. “Vai ser divertido gravar essa matéria”, tinha dito o chefe. “Só espero que valha o meu tempo”, ela tinha respondido. “Elas tentaram te avisar”, se repetia.

Houve uma pancada em algum lugar, e uma luz fortíssima entrou pela janela. Aiko ficou curiosa e foi olhar... Não prestou atenção ao que ficou parado à porta quando a deixou. A mulher com cabelos desgrenhados, olhos juntos e negros como o breu do universo; longas unhas que mais lhe pareciam garras de vinte centímetros, uma boca cheia de dentes pontiagudos e lábios quebradiços e pálidos que deixavam sangue escorrendo. O rosto era quase um esqueleto se não fosse o pouco de carne que restava, manchada de cinza e verde por causa do apodrecimento.

- Eu sei... – aquele ser tenebroso disse, fazendo Aiko dar um salto para olhá-lo. As mãos logo começaram a tremer ainda mais, e seu coração parecia prestes a explodir o peito e sair quando ela deu um passo pelo quarto.

Bruno Sheen
Enviado por Bruno Sheen em 02/04/2014
Código do texto: T4753166
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