Verde-Musgo
Conto selecionado para a antologia "Contos de Fadas" pela Pacheco

A lua brilhante despontava em um céu límpido e granulado de estrelas. O vento gelado cortava por entre as árvores, com galhos secos bailando em sua monótona melodia. O inverno se aproximava, e as últimas folhas ainda caiam, formando um tapete amarelado por toda a floresta. Um homem caminhava de forma firme e atenta. Carregava um rifle traspassado pelo corpo por uma tira de couro, e trajava um uniforme camuflado do exército.

Fazia sua ronda noturna naquele exato momento, ouvindo os ruídos da noite, e os insetos a se banquetear. Mosquitos rondavam por sua cabeça, enquanto distraidamente ele os espantava. Pensava na dureza que era dormir de duas em duas horas, e que não merecia aquilo. Porém, achava que o lance de refrigeradores que seu pai havia montado, também não era grande coisa, e, de certa forma, o que fazia dava um pouco mais de dinheiro. “Dinheiro movimenta o mundo”, e ele não era uma exceção. Pode se dizer que era um homem ganancioso. Um caloteiro de primeira viagem, que devia mais gente do que conseguia contar. Tinha má fama na infantaria, e isso lhe rendia muitas inimizades.
Pensava nessas inimizades e no que iria fazer com o dinheiro que iria receber, quando se deparou com local inesperado. Um pequeno conjunto de árvores que formavam um círculo. Não se lembrava de ter visto aquele lugar em nenhuma de suas rondas, então se aproximou com cautela.

As folhas secas rachando à medida que ele pisava, entregavam sua posição. Só conseguia enxergar devido à forte luz da lua que incidia sobre o local, lhe dando certo ar misterioso. Caminhou com delicadeza, até chegar ao meio do círculo. Não havia ninguém por ali, e nem mesmo animais ele conseguiu avistar. Jogado ao chão, bem no centro, havia um velho e surrado casaco verde musgo. Os detalhes rajados davam a entender ser de alguém da infantaria. Talvez de algum engraçadinho que tenha bebido demais e dormido pelo chão. Pegou o objeto, mediu no corpo, e viu que o tamanho era perfeito.

– Eles que se danem, eu achei agora é meu! – sorria enquanto falava consigo mesmo, retirando a arma e colocando o casaco. Puxou o zíper até em cima, e sentiu-se confortável em sua nova aquisição.

Pôs a arma no peito novamente e caminhou para fora do lugar, continuando com sua guarda. Permitiu-se olhar para trás após caminhar 50 metros, e não conseguiu ver as árvores. Estranhou, pôs as mãos no bolso do casaco, e se esqueceu do local misterioso, pois o que encontrou ali era algo muito mais interessante. Lentamente, puxou um maço de notas novinhas para fora. Olhou para elas incrédulo, e deu um grito que provavelmente fora ouvido nas trincheiras mais próximas. Seus olhos brilhavam de alegria, enquanto ele voltava às pressas para o posto de vigília.

Faltavam menos de quinze minutos para o término de seu turno. Minutos esses que se arrastaram como horas e horas. Iria sair dali e correr para o bar mais próximo, gastaria o quanto pudesse beber, e voltaria feliz, aproveitando sua embriaguez com dinheiro no bolso. Ninguém chegou a reparar na jaqueta nova, e isso era um alívio, pois se fosse de algum deles, com certeza iria haver confusão. Não deixaria que tirassem seu dinheiro, que ele mesmo havia achado, e não roubado de ninguém.
Pensamentos infantis passavam por sua cabeça o tempo todo. Afinal, era apenas um garoto com alma de malandro. Mal sabia das intempéries da vida e se achava o dono da verdade. Uma das muitas desvantagens e se ter dezoito anos.

Na hora marcada, outro soldado apareceu para rendê-lo. Ele entregou à arma ao homem, saudou-o e saiu sem olhar para trás. Não haviam se passado dez minutos, e já estava no bar, pedindo as bebidas mais caras e bebendo como gente grande.
No quinto copo de uísque, o dono do bar o advertiu.

– Ei rapaz, você tem serviço amanhã, não acho que seja uma boa ideia continuar a beber. – além desses cinco copos, já havia tomado um coquetel de outras bebidas. O barman completou seu argumento de forma rude – E ainda porque, se você não tiver dinheiro para me pagar tudo isso, vai ficar um mês lavando copo e prato pra mim!

– Eeeuu tenho tchineiroo... – suas mãos trêmulas tateavam o bolso. Encontrou e puxou um bolo de verdinhas. Parecia ser mais do que da última vez. Tirou metade do que havia ali, e depositou na mesa, olhando da forma mais ameaçadora que podia. – Tá aqui... a... merrrdá... do seu tchineiro!

Levantou-se de forma brusca, quase caindo, e saiu porta afora. O homem olhava incrédulo para o monte de notas que havia sobre a mesa. Sorriu enquanto as pegava, e guardava no caixa. Ficou cantarolando enquanto recolhia os copos sujos que o rapaz havia deixado no balcão.


Acordou com a cabeça latejando. Sua vista doía horrorosamente, enquanto ele tateava a mesinha ao lado da cama, procurando sua garrafa d’agua. Não achou o que procurava, e olhando mais atentamente, percebeu que estava deitado no chão. Não entendia o que havia acontecido, mas levantou-se de forma trôpega, se apoiando onde podia. Percebeu que sua cama permanecia intacta, e, além disso, também notou que ainda usava o velho casaco. Levou as mãos ao bolso e descobriu que ainda havia uma boa quantia de dinheiro ali. Tirou e colocou em cima da mesa. Levou as mãos ao zíper e tentou puxá-lo, mas ao invés de abrir, espetou o dedo que sangrou imediatamente. Puxou de forma brusca e um pedaço do fecho-ecler veio em sua mão. Jogou o objeto no chão e tentou, sem sucesso, retirar a jaqueta, mas não conseguiu.

Depois de um tempo, desistiu de tentar tirar, e se alguém viesse falar alguma coisa, ele iria desmentir. Tomou o pouco de água que estava na garrafa, despejou o resto no rosto, e jogou o recipiente vazio em cima do velho colchão. Abriu a pequena tenda e deu de cara com uma comoção de pessoas que se dirigiam para um ponto mais a frente. Dirigiu-se junto com a massa, e descobriu o motivo do furdunço.

Pendurado na velha árvore desfolhada, dançando com o vento, estava o corpo do barman que o havia servido naquela noite. Uma corda de cânhamo se enrolava em volta de seu pescoço, e sua cabeça roxa era marcada por feições animalescas, cortada por um sorriso macabro.
Um calafrio percorreu sua espinha naquele instante, e sua cabeça deu um giro. Sentiu-se nauseado e viu o momento em que iria jogar tudo da noite anterior para fora. Levou alguns segundos para se recuperar, e caminhou para fora da multidão que aumentava em torno do defunto.

O calor começava a aumentar com o correr do dia, e o casaco pesado o sufocava irritantemente. Tentaria tirá-lo assim que resolvesse os assuntos pendentes do dia, que incluíam pagar os amigos que devia, e limpar seu nome. Não sabia qual a procedência de toda aquela grana, mas não importava, estava usando para uma boa – e egoísta – causa, e era isso que importava.

Levou menos de duas horas para conseguir quitar suas dívidas, e saiu satisfeito e com muito dinheiro no bolso. Talvez, até mais do que tinha quando começou a pagá-los. Voltou para sua tenda e começou o trabalho de tirar a roupa que insistia em não sair. Ficou durante meia hora, tentando de todas as formas, tirar o casaco, mas o esforço se provou sem sucesso. Ele havia tomado a forma de seu corpo, até mesmo nos mínimos contornos. Podia sentir o suor escorrendo por debaixo do pano, e começou a ter medo. Um pavor irracional, de que nunca mais conseguiria se livrar daquilo. Levou à mão ao bolso – o que naquele momento já havia se tornado um ato rotineiro – e então relaxou. O maior calmante de todos estava ali, e sua mente o mostrou que não precisava de mais nada, se pudesse ter aquilo consigo.

Seu turno viera durante aquela noite, e passou em um piscar de olhos. Não havia visto as árvores estranhas outra vez, e também não se importava. Queria apenas recuperar o sono que perdera na noite anterior, e o dia seguinte amanheceria da mesma forma de todos os outros.

Ouviu os gritos antes que pudesse ter seu sono completo. Havia se passado duas horas desde que fora deitar. Levantou-se assustado e alerta. Percebeu que estava no chão novamente, mas jurava ter deitado na cama antes de dormir. O burburinho e os gritos de horror partiam do lado de fora. Abriu a tenda e saiu de uma vez, encarando mais uma vez uma multidão maior ainda de pessoas. Olhou para o ponto que convergiam e teve sua visão obstruída. Não tinha percebido, mas depois alguns segundos conseguiu notar que o que o impedia era seu próprio cabelo, que havia crescido descomunalmente. E só então percebeu a quantidade de pelos emaranhados que brotavam de seu rosto, formando uma barba espessa e negra. Tomou um susto e levou às mãos a ela, e pode então perceber que suas unhas também haviam crescido, tomando um aspecto amarelado e quebradiço. Quase caiu para trás, mas esbarrou em um homem que vinha correndo em direção aos gritos. O homem saiu proferindo xingamentos e dizendo algo sobre o aumento do número de mendigos no lugar.

Durante um breve momento, ele perdeu a atenção em seu corpo estranho e olhou novamente para o ponto de convergência da massa. Tirou o cabelo dos olhos e não precisou nem mesmo chegar perto para ver o que havia acontecido.

Desta vez, eram cinco os pendurados na árvore. Brotando de galhos altos e baixos, como frutos podres. E ele os reconheceu de imediato. Eram os homens a quem havia dado dinheiro no dia anterior. Pensamentos sombrios e medonhos passavam por sua cabeça, enquanto de soslaio, via outra movimentação em ao redor do poço. Olhou no momento em que um grupo de homens retirava um corpo de dentro. Estático, fez a contagem dos cadáveres que eram retirados do lugar, e contou mais quatro, que assim como os outros, haviam recebido seu dinheiro.

O pavor se alastrava pelo seu corpo, enquanto as mãos nervosas puxavam e esforçavam-se tentando retirar o maldito casaco, que havia lhe dado aquele maldito dinheiro. Os olhos amarelos e arregalados transitavam de forma psicodélica, sem saber onde deveriam parar. Pensou em seu canivete em cima da mesa, e correu para pegá-lo. Entrou na tenda e sentiu um calafrio o atravessando. Olhou para trás e viu um demônio.

Ele não sabia que era um demônio, pois o homem chegou de forma veloz e silenciosa. Aparentava ser um senhor, com seus cabelos grisalhos penteados para trás, um sobretudo marrom e calças pretas tipo piche. Não conseguiu se mover enquanto observava o homem idoso parado à sua frente.

O velho lhe lançou um sorriso, caminhou em sua direção e sentou na cama.

– Então finalmente nos conhecemos, hein?

– Quem é você? – estava amedrontado e puxava o casaco de forma desesperada.

– Acho que você sabe muito bem. – sorriu mais explicitamente enquanto cruzava as pernas. O casco fendido apareceu, demostrando sua natureza real.

– Não!... – nesse momento, ele soube que era um demônio.

– Sim! – Abriu os braços como se estivesse se apresentando. – Sou eu mesmo!

– Eu não te pedi nada, seu demônio sujo! Suma daqui! – correu até a mesinha e pegou o canivete, apontando para o demônio logo em seguida.

– Vai acabar se machucando com isso ai, meu rapaz.

– Eu vou é tirar essa porcaria! – olhou para o canivete em mãos e percebeu que suas unhas haviam crescido ainda mais. A aparência grotesca tornou-se ainda pior. Agora ele aparentava ser um urso.

– Não vai não. O contrato foi selado, meu caro. Você vem comigo! – chifres vermelhos brotaram em sua testa.

– Não! – Tentou fugir, mas tropeçou e caiu. – Eu não assinei contrato nenhum, eu não quero mais seu dinheiro!

– Ah, mas é claro que assinou. – segurou um pedaço do zíper sujo de sangue. – Eu tenho a prova bem aqui. – caminhou em direção ao homem caído no chão – Confesso que não deixei os termos bem claros, mas o último me passou a perna. Deu-me duas almas, mas me passou a perna. O novo contrato é: Viva sete anos sem tirar o casaco, e não morra durante esse tempo, ou sua alma será minha, ou: Mate dez pessoas com seu dinheiro amaldiçoado, e sua alma será minha. Você matou, eu vim pegar meu prêmio.

– Eu devolvo seu dinheiro! Por favor, me deixe devolvê-lo.

– Sinto muito, mas vou ter que recusar. – fez uma cara de indiferença.

– Ninguém mandou você andar por ai ansiando pelas coisas.

– Não... NÃO! – uma lufada de fogo veio em sua direção, e então homem e demônio desapareceram, deixando um quarto vazio para trás.

A única evidência de que alguém estivera ali, era um casaco verde-musgo jogado ao chão, as marcas rajadas do exército demonstrava que pertencia a alguns dos soldados, mas ninguém saberia dizer de quem. O objeto foi se desfarelando como areia, e desapareceu com uma rajada de vento levando a poeira embora. Era estranho, mas comum. As coisas desapareciam naquele lugar com bastante frequência.

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Conto inspirado no Conto de Fadas: Pele de Urso, dos Irmãos Grimm.