Mundo de Trevas - Capítulo 2

CAPÍTULO 2 – O SÂNGRIO

Em algum ponto distante no meio do cerrado, dois meses antes da experiência:

Por dentro da noite, o carro estacionara literalmente no meio do nada: Adonias havia desviado da estrada principal há alguns quilômetros, entrando numa via de terra bem alternativa, depois ele se afastou desta também, fazendo os pneus levantarem poeira no chão bruto. Agora, Patrícia e ele conversavam deitados no teto do veículo, olhando para o céu um pouco poluído.

– Você ainda consegue ver as estrelas? – perguntou ela, absorta em pensamentos.

Um grilo camuflado na areia orquestrava a melodia da noite.

– Consigo. – Além da fina camada de sujeira, Adonias podia sim enxergar os pontos brancos espalhados por todas as direções, não eram muitos, isso é verdade, apenas ficavam visíveis as estrelas mais brilhantes; mas ainda assim era algo muito nítido. – Por quê? Você não?

– Não muito. Miopia, você sabe...

De fato, Patrícia já havia comentado que sofria desse problema de vista, mas Adonias nunca se perguntou quais eram as limitações que tal doença lhe impunha. Ele abaixou a cabeça e olhou para ela, deitada ao seu lado. Devia ser muito triste viver num dos poucos lugares do mundo em que a camada de poluição ainda não era tão densa e mesmo assim não poder ver as estrelas.

– Sinto muito...

Patrícia abriu um sorriso fraco.

– Não é nada de mais, hoje em dia quase ninguém no mundo consegue vê-las mesmo... Que importa a razão, não é?

Ele a beijou, depois deitou a cabeça na lataria do veículo (que pegara escondido do pai) e ficou olhando fundo nos olhos dela. Ele a amava. Ainda não dissera isso para Patrícia, e nem queria que fosse num daqueles momentos melosos e açucarados das ridículas comédias românticas da TV. Mas um dia ele diria.

– Me responde uma coisa, Adê – disse a garota, dedilhando os fios do cabelo do namorado. – Seu cabelo, loiro, é herança da sua mãe? – perguntou, pois Osmar tinha cabelos muito pretos, assim como os de Cléber.

– É sim. Os olhos também, e segundo meu irmão, o nariz, a boca, as orelhas e a capacidade de discutir por qualquer coisa...

Riram. Ela brincou que sendo assim, ele era praticamente a mãe numa versão masculina. E em seguida perguntou:

– E o que houve com ela?

Adonias abaixou os olhos, depois deitou-se, voltando o rosto para o céu, esquivando-se tanto do olhar quanto da pergunta. Patrícia percebeu e não quis insistir. Ergueu a coluna para ficar sentada e olhou em volta. De fato, eles estavam no meio do sertão, quilômetros distantes da civilização.

– Por que você me trouxe para cá? – perguntou sorrindo. – O que pretende fazer comigo, hein...?

O rapaz se sentou junto a ela, sorriu também, e perguntando se ela queria mesmo saber, ele a beijou.

***

Em frente à casa de Patrícia, agora:

Adonias havia acabado de descer do carro junto com o pai e o irmão, e com olhos nostálgicos ele fitava o veículo já por alguns segundos, certamente capturando alguma recordação de antes de todo esse inferno escuro.

– Você está bem? – Cléber perguntou, tocando-lhe no ombro. Os dois irmãos, por mais que passassem individualmente por momentos difíceis, eram ainda muito unidos.

Osmar, que já estava a caminho da entrada, voltou até eles, estranhando o fato de Adonias ainda não ter arrebentado as dobradiças da porta para entrar.

– Escute, filho, nós precisamos ir depressa. Não podemos ficar por muito tempo. – E agora dirigindo-se a Cléber: – Você fica aqui cuidando do carro, não deixe ninguém sequer se aproximar do porta-malas, entendeu?

O filho mais velho assentiu, pôs os fones novamente no ouvido por baixo dos longos cabelos pretos e se recostou na traseira do veículo, observando a correria caótica das pessoas na rua.

A porta estava apenas encostada. Mau sinal.

Adonias chamou Patrícia aos berros assim que ele e o pai entraram na casa, porém, vendo a maneira com que os móveis estavam jogados e destruídos por todos os lugares, ambos já tinham a triste certeza de que não a encontrariam lá.

Na televisão ligada, com um sinal tão ruim que os chuviscos berravam mais alto que o repórter, um senhor metido a intelectual dizia que dera tudo errado na experiência, que ninguém tem mais o paradeiro dos cientistas responsáveis, que não se sabe se alguém está trabalhando para consertar as coisas...

Osmar queria pedir para Adonias se apressar a fim de que fossem embora logo, mas não teve coragem de fazer isso. Realmente ele estava com medo de ficar ali, a cada segundo naquela casa ele se sentia mais em perigo. Porém, se o medo vem antes da lógica, há coisas que vêm ainda antes do medo, como a empatia por um filho.

– Sinto muito... – disse e tentou abraçá-lo, mas Adonias o repeliu e foi em direção ao quarto, irracionalmente ainda chamando pela namorada.

Do lado de fora, as luzes dos postes daquele bairro se apagaram quando um carro se chocou contra um poste a poucas quadras dali, e todos sabiam que ninguém se daria ao trabalho de consertar o problema.

Cléber estava atento. Um pequeno grupo de pessoas passou por ele e estranhou o fato de o garoto estar fazendo a guarda do porta-malas do carro. Outro grupo, um pouco maior e motorizado, se aproximava.

De volta ao quarto, a única luz existente era uma que entrava pela janela formando um retângulo alaranjado que se arrastava da parede ao teto, proveniente de uma fogueira feita no quintal da casa ao lado.

A cama estava de cabeça para baixo contra uma das paredes. Adonias revirou um pouco mais o lugar, em busca de alguma pista que o levasse ao paradeiro da namorada. Seu pai permaneceu próximo da porta do quarto.

Quando o rapaz chegou numa das paredes, notou algo grudando na sola do tênis. Era um tipo estranho de viscosidade que formava uma poça no chão naquela parte do recinto.

Chamou o pai para dar uma olhada, abaixou-se e pegou um pouco daquela substância com a ponta dos dedos.

Osmar pensou ter visto alguma coisa se mover atrás dos dois, virou-se, assustado, mas não encontrou nada.

– O que diabo será isso? – ouviu o filho indagar, referindo-se à gosma incolor.

Mas agora Osmar nem o ouvia, estava atento ao quarto, e quando ouviu outra vez o pequeno ruído, olhou rapidamente para trás e viu a figura estranha passando pelo retângulo de luz na parede e sumindo outra vez na escuridão. Exatamente, uma criatura passou grudada à parede, como uma lagartixa gigante.

– Adonias... Adonias, vamos sair daqui – Osmar cutucava o ombro do filho, puxando a sua camisa para que ele se levantasse. – Adonias, temos que...

Aquela criatura saltou da sombra num ato súbito, e se jogou contra o pai de família, lançando-o com força no chão. Os dois, ele e a criatura, se atracaram e começaram a golpear um ao outro.

Mesmo que Osmar gritasse para que o filho saísse dali, fugisse; Adonias não o obedeceu. O rapaz aproveitou um momento em que a criatura – que era da mesma altura que seu pai – ficou por cima na briga e a pegou pela nuca, levantando-a, então a socou com muita força, desnorteando um pouco o bicho, e depois o pressionou contra a parede.

Osmar se levantou rapidamente, observou com mais atenção a fisionomia daquilo que acabara de atacá-lo. Era um ser levemente semelhante a um humano, porém com uma boca muito maior, deformada, que dominava quase todo o rosto, e nessa boca, dentes monstruosamente grandes emolduravam uma língua comprida e triangular. Além disso, aquele ser tinha olhos muito pequenos, pretos como os de um pássaro; uma cauda que se remexia freneticamente e uma pele, sem pelo ou cabelo, que estava descamando; Osmar inclusive podia sentir uma umidade no próprio corpo devido a briga que os dois tiveram.

Com a imobilização de Adonias, a criatura estava visivelmente ficando sem ar, sua cabeça avermelhando, e se debatia desesperadamente, mas era inútil.

– Onde ela está? – o rapaz questionou, extravasando na voz toda uma fúria que já se acumulava há horas. – Onde está Patrícia?

A criatura não respondia, continuava se contorcendo. O garoto lhe acertou outro soco, o que fez aquele ser engolir um de seus dentes mais pontiagudos.

– ME DIGA ONDE ELA ESTÁ!!!

Adonias derrubou a criatura no chão e esfregou a cara dela naquela poça nojenta no chão.

– Que merda de gosma é essa? – ele perguntava, ignorando o fato de que o bicho podia simplesmente não saber falar. – Quem fez isso? Foi você?

O ser continuou sem dizer nada, porém começou a rir com a boca afundada naquela substância grudenta.

O coração de Osmar estava outra vez dando sinais de que iria explodir. No entanto seu filho não se intimidou. Perguntou para a criatura do que ela estava rindo.

– Vocês... Vocês vão morrer... vão morrer, vão morrer, vão morrer...

– O que você disse? – Adonias esbravejou, acertando-lhe outro soco.

– Guarda Negro... A garota que procura está com o Guarda Negro – ele gargalhava, e com aqueles dentes enormes a sua risada saía rasgada como a de um disco de vinil mal sincronizado.

O rapaz levantou-o do chão e suspendeu os pés do monstro no ar, segurando-o ainda pelo pescoço.

– E o que é você?

Respondeu lentamente, arrastando as sílabas: – Sângrio...

Osmar estava embasbacado com a atitude do filho. Nunca vira Adonias agir de forma tão violenta, e isso o assustava, mas também o tranqüilizava um pouco. Era um sinal de que seu filho tinha coragem, e nos dias que eles iriam viver, coragem era um trunfo de poucos.

– O que é isso? Um tipo de vampiro?

Mesmo com pouquíssimo sangue no cérebro, a criatura arranjou forças para zombar do rapaz, gargalhando ainda mais.

– Você não sabe o que é um vampiro!... Não estaria vivo se eu fosse um.

– Então me fale como encontrar esse Guarda. Onde posso achá-lo?

Aparentemente, o sãngrio cansou de colaborar e começou a tentar socar o rapaz enquanto grunhia. Osmar pegou um pedaço de madeira que encontrara no chão, pronto para golpear a criatura.

Quando aquele ser conseguiu se soltar e libertar o pescoço, foi a sua vez de contra-atacar. Com sua mão significativamente maior que a humana, agarrou o garoto pelas têmporas e apertou. Apertou tanto que suas unhas começavam a perfurar a pele por baixo do cabelo dourado.

O pai de Adonias preparou-se para acertar-lhe um golpe, mas não foi preciso, pois se ouviu um disparo ensurdecedor naquele quarto, e a criatura caiu no chão, com um buraco do tamanho de uma lata de leite em pó no meio do tórax.

Adonias caiu de joelhos, tentando suportar a dor que aqueles dedos monstruosos lhe causaram, e o pai de família viu o grandalhão desconhecido na porta do quarto, com uma 12 em mãos ainda transpirando fumaça. Ele estava acompanhado de outros dois sujeitos, um pouco mais franzinos.

Aproximou-se do sângrio que se contorcia um pouco no chão, feito barata agonizando. Acertou-lhe outro tiro, que arrebentou a cabeça, fazendo miolos espirrarem em Adonias.

Perguntou se o garoto estava bem e o ajudou a se levantar. Depois foi a vez de Osmar perguntar quem eram eles.

– Somos amigos. Estávamos conversando com seu filho lá fora, viemos ver se precisavam de ajuda – esse, que parecia o líder do pequeno grupo, analisou as feridas na parte superior da cabeça de Adonias e diagnosticou que ele ficaria bem. – Mas agora temos que sair daqui, o cadáver desse lixo vai atrair outras criaturas em breve.

Pai e filho concordaram com aquilo e se afastaram da casa. Encontraram Cléber no mesmo lugar, com o restante daquele grupo: três mulheres. Ao lado do carro de Osmar, haviam mais dois carros e uma van, provavelmente pertencentes àquele grupo.

Adonias percebeu que não estava sangrando e já não se sentia tão mal, conseguiu caminhar sozinho.

– Pai, o que aconteceu? – Cleber perguntou. – Ouvi disparos.

– Não foi nada. Precisamos ir.

O sujeito com a 12 na mão – os demais traziam outros tipos de armas – perguntou para onde eles estavam indo.

– Não sabemos ainda. Só para longe.

– Escute, todos nós estamos indo procurar abrigo, já temos um lugar em mente, e todos estamos levando mantimentos, não iremos nos aproveitar dos seus. Seria bom que vocês viessem conosco, precisaremos de mais homens no futuro.

Cléber estava fascinado com a idéia, não tirava os olhos daquelas armas. Adonias ainda um pouco zonzo, nem pensava na proposta. Mas Osmar relutava, pois não conhecia aquelas pessoas, e não era de confiar muito em ninguém.

Entretanto, ele também não era idiota. Se eles quisessem apenas a comida, poderiam ter deixado os dois morrerem e depois darem cabo de Cléber, e não fizeram isso. Além do mais, aquele grupo tinha armas, coisa que Osmar não fazia idéia de onde conseguir, mas que depois de ver aquele monstro na casa de Patrícia, soube que seria algo extremamente necessário. Olhou para seus filhos, que não disseram nada em protesto. E tomou sua decisão:

– Nosso carro estará atrás do de vocês.

Todos concordaram com pequenos acenos de cabeça, e seguiram cada um em seu automóvel.

Novamente no carro de Osmar reinava o silêncio, porém não aquele frio e constrangedor. Eles haviam levantado os vidros para não escutar os berros, clamores e lágrimas do povo lá fora, e se sentiam seguros ali, no último veículo a acompanhar a pequena caravana. Dentro daquele carro, cada um fingia que nada estava acontecendo do lado de fora, que tudo continuava rotineiro e tranqüilo. Aquele silêncio era quente e confortador.

– Algum sinal de onde ela pode estar? – Cléber perguntou ao irmão, referindo-se a Patrícia.

– Não. Mas eu irei encontrá-la – afirmou, convicto, olhando para os próprios dedos, onde ainda havia resquícios daquela gosma deixada no chão do quarto pelo tal do Guarda Negro. – Certamente irei.

Percebeu então que a caravana havia desviado da estrada principal, entrando numa via de terra bem alternativa. Exatamente aquela na qual ele levara a sua namorada para um passeio noturno, dois meses antes.

FIM DO CAPÍTULO 2.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 17/04/2014
Código do texto: T4772782
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