O DISCÍPULO DO DIABO

— Que carta é essa?

— É mais uma das mensagens do doutor Altamiro.

Heitor não se interessa pelo conteúdo da folha, cópia xérox de um texto datilografado. A mulher, Alda, entretanto, não consegue vencer a curiosidade. Coloca os óculos e se põe a ler. Abandona a leitura após ler um ou dois parágrafos.

— É a baboseira de sempre. Coisas de alquimia e magia. Que homem mais misterioso é esse doutor Altamiro!

— Tão misterioso que ninguém sabe se ele é mesmo doutor.

Heitor e Alda são velhos moradores do bairro. Acompanharam a transformação das ruas, o crescimento da cidade, hoje metrópole de milhões de habitantes. Lembram-se bem de quando Altamiro mudou-se para a mesma rua, na casa defronte, trazendo seus velhos pais. Há mais de quinze anos. Naquela época, os pais nem eram tão idosos e Altamiro aparentava ter trinta anos no máximo. Aparentemente, um zeloso filho, arrimo da pequena família.

A figura impressionava: alto, magro, elegante. Cabelos negros e olhos claros, de um tom cinza prateado que dava um toque de mistério ao esbelto homem. Não se apresentou aos vizinhos e estes também não se imiscuíram na vida dos novos moradores. Por usar sempre roupas brancas, foi logo sendo tratado de doutor, embora não ostentasse uma placa na casa nem ali mantivesse consultório. Os pais pouco saíam. Aliás, o pai nunca deixava a casa.Já a mãe, sim, costumava sair com o filho. De braços dados, iam ao mercadinho e às lojas do bairro.

— Esse cara não me engana. Essa pinta toda de doutor é pra engabelar os trouxas. — Heitor é incisivo, não admite que a vida do vizinho não seja do conhecimento público. — Alguém já lhe falou se ele é dentista ou médico?

— É, ninguém sabe. Mas talvez tenha consultório no centro da cidade. Ou trabalhe em algum hospital. — Alda, mais tolerante que o marido, procura explicações. — Ele é tão simpático!

— Não se deixe enganar, mulher. O homem é o demônio em pessoa. Já lhe falei muitas vezes dos maus tratos que ele inflige ao pai.

— Ora, Heitor, isso é invenção, fantasia da vizinhança.

— Não se finja de sonsa! Você mesma já viu o velhinho capengando e com hematomas no rosto. Ele maltrata o pai, pode estar certa.

Heitor sabia do que falava. O carinho com a mãe, que o vizinho fazia questão de exibir, era neutralizado com os maus tratos infligidos ao pai. O velho em raras ocasiões aparecia no jardim. Por algumas vezes, Heitor o vira e pôde perceber claramente sinais de que o homem estava com hematomas na face e o braço enfaixado.

— O Altamiro é maluco. Deve padecer do complexo de Édipo. — A opinião era do outro vizinho, Rubem Mota, farmacêutico aposentado, dado a explicações científicas para tudo. — Já vi casos assim.

— Agora, que o homem é misterioso, lá isso é. Olha, já faz pra mais de quinze anos que eles moram aqui. Os pais estão decrépitos, acabados. Entretanto, o Altamiro permanece o mesmo. Você já reparou que ele não envelheceu, nesse tempo em que mora aqui?

— Apenas os cabelos ficaram um pouco grisalhos.Aliás, o que lhe dá mais charme. — Opinião de Alda.

— Praticamente o mesmo. Pra mim, ele tem algum método de conservar a juventude.

Mistério sobre o qual os vizinhos não se cansavam de especular. Com o passar do tempo, verificou-se que Altamiro não era o único filho do casal.Havia uma filha, residente em Salvador. Quando veio visitar os pais e o irmão, foi um alvoroço. A novidade espalhou-se como rastilho de pólvora, e a explosão foi ouvida bem longe. A filha não se entendia com o irmão e ao constatar que o pai era maltratado e até espancado por Altamiro, entrou em franca discussão com ele. Discussão que degenerou em briga e mútua agressão física. A visitante abandonou a casa em prantos, cabelos desgrenhados e um olho roxo. Tomou um táxi, pegou suas coisas e nunca mais retornou.

A rotina de Altamiro era simples, e por ser simples demais, intrigava. Permanecia em casa de manhã (Estudando? Trabalhando?). Duas ou três vezes por semana, saía com a mãe, em caminhada ou fazendo compras no açougue, no mercado ou na padaria. Depois do almoço, tomava um ônibus ou um táxi e praticamente desaparecia. Nem mesmo Chiquinho Birau, que dava notícia de tudo o que acontecia, sabia de tudo, nem mesmo ele descobriu o destino de Altamiro na parte da tarde. E olhe que decorreram mais de quinze anos.

— Que ele é instruído, tem formação superior, não resta dúvida. Todos nós, aqui da vizinhança, temos recebido as suas mensagens, suas circulares. O homem é mesmo inteligente. — Rubem Mota era mais equilibrado nos seus conceitos. Falava das inúmeras mensagens que Altamiro fazia distribuir pela vizinhança. Cópias xerocadas de textos datilografados, nos quais comentava e divulgava informações e notícias de cunho esotérico: espiritismo, umbanda, poderes da mente e assuntos afins.

— Pra mim, não têm serventia nenhuma esses avisos do doutor Altamiro. Vão direto pro lixo. — Heitor desprezava até mesmo o tratamento catedrático dado ao personagem misterioso. — Por falar nisso, faz tempo que não vejo o velhinho, nem mesmo através da janela.

Então, ocorreu a morte do velho. Não foram constatadas visitas médicas nem quaisquer sinais de pessoa doente na casa de fachada lilás. Simplesmente soube-se do falecimento do pai de Altamiro quando Claudinete, a empregada doméstica, passou batendo em todas as portas, avisando do dia e hora do enterro, a ser realizado no Cemitério da Paz.

Poucos foram ao cemitério. Mas todos os vizinhos receberam, surpresos, a semana seguinte, uma cópia xérox de “carta-aberta a todos os amigos”, enviada pelo filho, agora órfão de pai. No mesmo estilo das mensagens anteriores, explicava a repentina morte do pai, atacado de pneumonia. E reproduzia o laudo do exame post-mortem, a que havia submetido o pai, no qual a causa mortis era mesmo a pneumonia. Que ninguém tivesse dúvidas...!

Em seguida, passadas apenas algumas semanas, Altamiro internou a mãe em um estabelecimento para idosos.

— Ela está bem, o asilo é de primeira. — Chiquinho Birau conseguira ultrapassar a parede de mistério que envolvia Altamiro.— Fica lá pelas bandas da Pampulha, é local chique mesmo.

Altamiro continuou morando na mesma casa. Uma mudança importante, contudo, foi constatada.. Todas as noites de sexta-feira, aconteciam reuniões dos amigos do elegante e misterioso habitante da casa lilás. Chegavam em carros ou táxis e ficavam até altas horas. Durante as reuniões, a casa permanecia com as janelas cerradas, para desgosto de Birau. Ninguém sabia o que se passava lá dentro.

— Pra mim, são bruxos. Fazem magia negra. — Opinião de Heitor, que permanecia atento, da janela de sua casa, a todos os movimentos no imóvel defronte. — Na certa, invocam espíritos e fazem encantamentos.

Se já havia mistério na vida de Altamiro, agora toda a casa tornara-se objeto das desconfianças e das especulações dos vizinhos, na maioria, gente aposentada e pessoas sem muito o que fazer. O que poderia estar acontecendo na casa era motivo de conversas sem fim. As fofocas corriam céleres e livres.

A freqüência era seleta e incluía homens elegantes e belas mulheres. O grupo era assíduo, e não aumentava nem diminuía: talvez dez pessoas, que entravam silenciosas e saíam caladas. Uma discrição sem igual. Por mais de dois anos, as reuniões semanais se sucederam. Até que um dia, Altamiro desapareceu. Não aconteceu a reunião da sexta-feira, não apareceu nenhum freqüentador. A casa permaneceu fechada e ninguém — nem mesmo Birau — sabia dizer do paradeiro do homem.

O misterioso desaparecimento foi alvo de muita fofoca, variadas hipóteses e conjecturas. O que não durou muito. Dentro de três semanas, chegaram notícias do vizinho.

Altamiro havia se apaixonado perdidamente por uma das freqüentadoras dos rituais que ele dirigia em sua casa. Judite chegara de Brasília há mais de um ano e fora admitida no restrito círculo de práticas mágicas. Sendo ela mesma uma bruxa competente, era natural que despertasse o interesse de todos os homens do grupo. Inclusive Altamiro. Caprichosa e demoníaca, Judite o submeteu aos seus poderes. O líder do grupo tornou-se vassalo da influente mulher. Fazia tudo o que ela lhe determinasse e mais, ignorava as tramas e as traições que a mulher lhe armava. Porque Judite, insaciável de amor e de poder, mantinha uma rede de namorados e amantes. Altamiro pouco se importava, pois estava cego pela paixão. Arrastava-se aos pés de Judite, fazia tudo o que ela determinava.

Como veio, Judite se foi. Saiu sem dizer o seu destino. O golpe foi duro para Altamiro. Que não demorou muito para descobrir seu paradeiro. Estava no Rio, morando em um confortável apartamento na Barra da Tijuca.

— Querida, quero conversar com você, quero visitá-la. Preciso de você, estou arrasado. Minha vida sem você, acabou. — Por telefone, em cartas, por e-mails e por todos os recursos, tentou convencer a ex-amante a recebê-lo.

— Não venha. Me dá um tempo. Tenho de repensar nossa relação. — Desculpas vãs se seguiam às negativas de Judite em receber o ex-namorado.

Altamiro insistia e insistia. Foi duas vezes ao Rio, na tentativa de encontrá-la de surpresa. Inutilmente. Passados alguns meses, aborrecida com a insistência de Altamiro, Judite concorda num encontro “para esclarecermos tudo de uma vez, definitivamente”. Altamiro correu ao encontro da amada, lépido como um coelho na direção da armadilha tentadora.

O endereço indicado por Judite era um terreiro, local de práticas de magia negra. Ao chegar, Altamiro foi recebido pelo chefe.

— Por favor, por aqui, queira me seguir. — O alto personagem, gordo, a tez escura brilhando à parca luz das velas, cabelos pretos, trajando roupa negra, quase desaparecia entre as sombras e as cortinas do local. — Judite já está lhe esperando.

O recinto onde Judie se encontrava, sentada em almofadas, era sombrio, tétrico até mesmo para Altamiro, acostumado a locais idênticos. Ali imperava uma atmosfera maligna, opressiva. Na parte central do grande salão, uma mesa retangular servia de altar. Sobre a peça estavam diversos candelabros de velas de cores variadas, cristais e pedras coloridas, amuletos diversos.. Dois punhais cruzados sobre um livro volumoso. Bacias de prata, jarros de delicada porcelana e vasos de barro com estranhos desenhos estavam aos pés da mesa Colocados ritualisticamente, pendurados na parede próxima, uma espada, uma adaga e uma cimitarra refletiam a luz mortiça das velas.

— Sente-se aqui, ao meu lado. — Judite convidou Altamiro, friamente. — Rosaldo, senta ali, fica aqui com a gente, enquanto conversamos.

— Judite! — Altamiro quis abraçá-la, beijá-la, como nos idos tempos. A mulher recusou delicadamente. — Puxa, como sinto falta de você! — Notando a presença obtusa do gigante, reclama. — Queria conversar a sós com você.

— Bobagem. Rosaldo é meu confidente, sabe de tudo a nosso respeito. Pode ficar para nosso encontro. — Mais gelo no diálogo e no encontro entre os dois ex-amantes.

A conversa foi em tudo diferente do que Altamiro pretendera. De mansa conversa, passaram para acusações mútuas de infidelidade e daí para a discussão acalorada, foi um teco.

— Você está me traindo. Vejo agora como fui enganado por você. E ele? — Indicando Rosaldo, dedo em riste, acusador. — Ele é seu novo amante. Sua cadela sem vergonha!

Altamiro levanta-se, seguido por Judite e Rosaldo. No auge das acusações e dos xingamentos, Altamiro pula para perto da mesa ritualística, pega um dos punhais. Judite corre na direção da entrada da tenda. Altamiro lança o punhal sobre a mulher. O punhal atinge-a por trás, no ombro direito. Rosaldo, numa agilidade inesperada para seu volumoso corpo, agarra a pesada espada dependurada na parede, que manobra com presteza: de um só golpe, aplicado pela lateral, decepa a cabeça de Altamiro.

Dois investigadores da polícia percorreram a rua da casa de Altamiro. Entraram na casa, rondaram pelo jardim e quintal e procuraram os vizinhos mais próximos, à procura de informações sobre o antigo residente. Foi souberam que o Doutor Altamiro havia sido morto.

Birau, sempre andando na frente das notícias, completou a história.

— Foi magia negra. O doutor foi esquartejado e fizeram um ritual com as partes do seu corpo. Depois, jogaram tudo no mato. Só descobriram por causa dos urubus rondando a carniça. E dizem que nem a irmã quis tratar do assunto, de identificar o irmão. Como dizem, o feitiço virou contra o feiticeiro.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 24 de maio de 2002. –

Conto # 160 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 22/04/2014
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