Mundo de Trevas - Capítulo 3

CPPMA, Centro de Pesquisas para Proteção do Meio-Ambiente; poucos minutos depois da experiência:

Nenhum alarme ecoou para avisar que algo estava errado. Nenhuma lâmpada vermelha ficou piscando. Nada. Os computadores indicavam que tudo corria perfeitamente bem. Mas não corria. Isso era óbvio, primeiro porque haviam se passado mais de dez minutos e não havia o mínimo indicio de que o céu começava a clarear; segundo porque alguma 'coisa' estava simplesmente brotando do chão, tentando romper a cerâmica do assoalho. Inicialmente surgiram rachaduras, assustando os cientistas, depois o laboratório tremeu um pouco, e em seguida, para espanto de todos, uma pata de animal emergiu do piso.

Muita gente começou a gritar, as mulheres correram para fora daquela sala de controle, e tiveram sorte por conseguir fazer isso a tempo, pois logo em seguida todas as portas se fecharam automaticamente, indicando que finalmente aqueles malditos computadores estavam detectando ameaça.

Aquela pata lembrava a de uma aranha, com duas articulações, só que tinha um metro de altura. Logo surgiram outras, e finalmente a criatura saiu por completo do subsolo, era algo semelhante a um ácaro gigante: sem olhos, nem orelhas, apenas uma boca circular na parte inferior do corpo, e um pequeno orifício por onde entrava o ar. O resto do corpo se resumia a duas coisas: as patas e o enorme crânio, esférico e enrugado.

Marcel não sabia se estava tendo uma alucinação ou se aquilo realmente havia aparecido no meio de um dos lugares mais protegidos pelo governo nacional. Aliás, o que diabos era aquilo?!

Sua mão ainda repousava próxima ao botão vermelho que ele apertara minutos antes, o corpo não obedecia às suas ordens, simplesmente permanecia ali, estático.

Viu quando a criatura prendeu um dos cientistas com os pequenos pelos que revestiam suas patas, e depois o tragou para o buraco cheio de dentes que ele tinha abaixo do corpo. Sangue jorrava farto no chão do laboratório.

Para Marcel, felizmente, o painel de controle ficava num dos cantos da sala, o que queria dizer que a criatura só iria atrás dele depois de devorar todos os seus colegas.

E a poucos metros do cientista havia uma porta fechada, ele só precisava retomar o controle do corpo e lembrar do código que abria aquela porta antes que o ácaro-gigante viesse abocanhá-lo.

Mas qual era a maldita senha? – ficava realmente difícil pensar enquanto via um de seus assistentes ser dividido ao meio pelas patas ágeis do monstro, que primeiro comeu as suas pernas para depois se deliciar com o tronco. – Começava com letras e terminava com números... Era D-P-A... 2-2?...

Faltavam poucos aperitivos.

No desespero, uma centelha de memória brilhou em Marcel e ele lembrou de todo o código, imediatamente na mesma hora em que o monstro não encontrou ninguém por perto, mas farejou o cheiro do cientista.

Digitou uma vez, no nervosismo apertou dois botões errados. O ácaro se aproximava. Tentou outra vez, respirando fundo, e agora conseguiu abrir as portas.

Correu para a saída mais próxima, esgueirando-se para o corredor, um segundo antes de aquela pata peluda envolver-lhe o corpo. O ácaro veio atrás, faminto, porém mesmo a porta não sendo estreita, a cabeça do monstro não passava por ela, e o bicho, irracional que era, ficava se chocando contra a parede repetidas vezes, tentando alcançar a sua refeição mesmo assim.

Marcel correu pelos corredores que ele conhecia tão bem, a caminho da saída de emergência mais próxima. Viu daquele corredor criaturas terríveis em outras salas, dizimando dezenas de pessoas.

Mas ele sobreviveria. O causador de todas aquelas desgraças sairia ileso desse instituto enquanto que todos os seus companheiros morriam. Inocentes gritavam de dor e agonia enquanto que Marcel não sofrera sequer um arranhão.

Grande herói ele era.

***

Em algum lugar no meio do deserto, agora:

Quando os carros da frente pararam, a família Gritten pôde vislumbrar o esconderijo ao qual eles se referiam. Era um casarão do século passado, pertencente a um empresário de São Paulo que gostava de tirar férias muito longe da cidade grande, isolado de qualquer coisa que pudesse perturbá-lo. Porém, como ele passava a maior parte do tempo longe dali, para não ser roubado tratou de erguer um muro bastante alto em torno do seu terreno, com arames farpados no topo.

O líder do grupo, aquele com a 12 e que dirigia o carro da frente, seguiu até o portão enquanto que todos os outros observavam a uma certa distância.

Olhando em volta, aquele casarão era a única edificação com mais de um metro de altura num raio de muitos quilômetros. Desde 2019, quando a poluição chegara até essas regiões menos populosas do planeta, o sertão brasileiro, que já era conhecido como árido, recebia cada vez menos chuvas, ao ponto de que logo se tornava um evento anual, às vezes nem isso. As árvores mais resistentes sobreviveram até meados de 2021, mas acabaram morrendo, assim como os animais de rebanho, que hoje não passavam de ossadas na terra.

Em janeiro de 2022, valendo-se do grande Congresso Rio +30 que ocorreria meses mais tarde, o Ministério do Meio-Ambiente declarou que aquela região no Centro Norte do Brasil se tornara desértica, levando toda a sua população a imigrar dali, com exceção das cidades-forte, ou seja, cidades com estrutura hidráulica para se susterem em lugares assim, um dos exemplos dessas tais cidades era o lugar onde os Gritten moravam até então.

Esses casarões, portanto, eram verdadeiras excentricidades dos milionários sulistas; que gastavam fortunas para mantê-los, inclusive com laguinho no fundo, sendo que passavam ali no máximo um mês ou dois.

O líder acertou um tiro no cadeado, rompendo-o. Ao abrir as porteiras, ele deu uma breve vasculhada e depois informou aos demais que o lugar era seguro.

Voltaram para seus carros, pois teriam que manobrá-los para dentro dos muros, e enquanto a van lá na frente se locomovia para o interior do terreno. No último veículo, olhando para a janela traseira, Cléber viu alguma coisa se aproximando no deserto.

– Pai, acho melhor acelerar – alertou.

Adonias olhou para trás também. Aquilo não passava de um vulto, quase como um lençol negro flanando no ar um pouco acima do solo. Chegando mais perto a cada instante. 250 metros, 230, 200...

O líder, em pé ao lado do portão, também conseguia enxergar a criatura. Mais um tipo de monstro que ele vislumbrava; no espaço de no máximo duas horas, já haviam sido cinco.

Faltava apenas o carro à frente do de Osmar, e o dele próprio para atravessarem o portão. Visivelmente daria tempo, mas esse não era o problema. E sim o quanto demoraria para fechassem o portão e encontrassem algo que o tranque (já que haviam destruído o cadeado). Além disso, eles não sabiam que tipo de criatura era aquela, e os muros eram sim altos e seguros, mas num parâmetro humano. Mas aquilo parecia saber voar, não parecia? E se com apenas um golpe explodisse toda a casa?

O carro da família Gritten entrou, e o líder começou a empurrar os grandes portões de madeira para fechá-los, com a ajuda de todos os homens que desceram de seus veículos.

Adonias e Cléber correram até lá e foram os primeiros.

Assim que as duas abas de madeira se encontraram, fechando novamente o terreno, o líder gritou:

– Bruna, as armas!

A mulher de cabelos pretos e olhos castanhos correu até a van, e voltou de lá com o armamento em mãos.

– Ei, rapazes – chamou os irmãos Gritten, e lançou a cada um deles uma espingarda, daquelas mais antigas.

– Pra que isso? – Osmar perguntou.

O outro não se deu ao trabalho de responder. Afastou-se do portão e esquadrinhou o perímetro, em busca de alguma coisa que pudesse bloquear a passagem. Havia um tronco de cajueiro seco por ali, mas estava a uns trinta metros do portão e deveria ser muito pesado para ser carregado às pressas.

O jeito seria posicionar as costas no portão e torcer para que o monstro não tentasse entrar. Nada eficaz, todos sabiam, mas continuaram lá, imóveis, quietos, esperando...

Alguns segundos depois, e a criatura estava do outro lado do muro. Eles não podiam vê-la. Mas podiam senti-la. Em seguida, ela passou por cima das cercas farpadas no pico do paredão, e seguiu levitando por cima de todos eles, a uns seis metros de altura. Sua anatomia era semelhante a de uma arraia negra mergulhando na profundidade do oceano, parecia também um corte de seda voando no vento do deserto noturno.

Eles tinham sorte por aquela criatura não ser carnívora, só os seguira até ali por ter sido atraída pela luz dos faróis na escuridão do sertão. Continuou flutuando graciosamente no céu escuro até passar do grupo de refugiados.

Depois de um longo tempo sem nada dizer, cumprindo aquele silêncio reflexivo de quem se safou da morte, o grupo decidiu que estava na hora de entrar na casa e explorar as propriedades do refúgio.

Não sem antes Bruna voltar até o interior da van, e sair de lá carregando pelas mãos um sujeito que os Gritten ainda não tinham visto. Ela tentava tranqüilizá-lo dizendo que eles ficariam bem agora, que nada de ruim aconteceria, mas o homem não respondia, permanecia trêmulo, com os olhos vazios.

Em estado de choque, Osmar soube depois.

Não havia comida alguma armazenada na residência. O lago secara-se também. Sem energia elétrica ou qualquer dispositivo de comunicação.

Agora, estavam todos sentados em torno da mesa da cozinha, com três lampiões acesos entre eles, se conhecendo melhor e discutindo o que seria de suas vidas.

O líder chamava-se Rubem, um soldado designado para fazer a guarda do Centro de Pesquisas, que não ficava tão distante dali. As Forças Armadas protegiam o lugar, pois havia sempre o risco de ataque terrorista vindo de qualquer um dos países insatisfeitos com as pesquisas.

Rubem tinha motivos de sobra para comandar o grupo: desde o inicio ele já se sentia muito desconfortável com a experiência e, junto com outros soldados, decidiu guardar algumas armas em um local mais próximo da porta principal do instituto, para que no caso de algo dar errado, eles terem alguma chance de fugir.

Desses soldados, apenas ele e Ezequiel haviam sobrevivido aos monstros que atacaram o lugar.

Ezequiel também estava ali, e era aparentemente o braço direito do outro, já que eles se conheciam de longa data. Ele era o sujeito calado sentado num dos lugares mais distantes da mesa comprida, aparentava ser bem jovem ainda, sem sequer ter passado dos vinte e cinco anos. Quando Rubem pediu para que Ezequiel dissesse alguma coisa aos demais, ele preferiu ficar calado, e todos entenderam o que estava acontecendo, principalmente Adonias, que também sentia na carne o que era perder alguém que amava graças ao fracasso da experiência Céu Azul.

Rubem então pigarreou e prosseguiu com as apresentações:

– Essa aqui é Bruna, minha esposa – ele disse, segurando a mão da mulher de cabelos pretos e olhos castanhos que sentava-se ao seu lado. – Acredito que ninguém irá se opor a deixar os mantimentos com ela, Bruna é enfermeira, vai saber distribuí-los bem...

E depois de dito isso, por algum tempo o silêncio abraçou aquele lugar. Rubem não conhecia bem as outras pessoas, então teria que esperar que elas se apresentassem por conta própria. O máximo que ele sabia era que o homem de olhos vazios e que estava sentado no último canto da mesa não iria dizer nada, pois devia ter caído num estado de subconsciência depois de tudo o que deve ter visto; ele certamente estaria morto se Bruna não o tivesse visto vagando pela estrada e pedisse ao marido para levá-lo junto. Também sabia que a mocinha mais jovem era amiga da sua esposa, e levara a sorte de estar na casa dele quando Rubem apareceu dizendo que precisavam ir embora, mas nem o nome dela ele chegara a perguntar ainda. Restavam também a terceira mulher do grupo, que Ezequiel trouxera consigo, o senhor Victor, que eles encontraram lutando bravamente contra uma dessas criaturas, e os membros da família Gritten.

Todos esses se limitaram a dizer apenas seus nomes completos, eram sem dúvida os que foram mais atingidos emocionalmente com a catástrofe da experiência mal-sucedida. Ninguém estava naquele momento atento o suficiente para decorar os nomes dos outros, e com certeza aquela apresentação não havia servido para muita coisa, todos teriam que ir se conhecendo aos poucos mais tarde.

A maioria dos rostos se fixava na dança das chamas dentro dos lampiões. Adonias, Osmar, Rubem, Bruna, Ezequiel, Victor, Leila e Miriam. Todos, menos o homem em estado de choque, e Cléber, que olhava para ele tentando lembrar onde foi que já havia visto aquele rosto antes.

Ficou acertado que dali iriam todos se deitar nos quartos do casarão, com exceção de algum dos homens que teria que ficar acordado para vigiar o perímetro. Ezequiel aceitou que fosse ele. Mas poderia ter sido qualquer outro: Em torno daquela mesa, entre tantas dúvidas voando ao redor dos lampiões feito pernilongos, a única certeza que existia era a de que ninguém conseguiria dormir bem naquela noite.

Todos acomodados em seus aposentos, alguns em camas, outros em colchões no chão mesmo, alojaram-se da seguinte forma: os Gritten ficaram num quarto junto com o senhor Victor, que logo se deu bem com Osmar e seus filhos; o casal Rubem e Bruna em outro; Leila e Miriam em outro; Ezequiel e o homem em estado de choque no último aposento.

Olhos abertos pontilhavam a escuridão em todos esses cômodos, alguns olhando para o forro do quarto e tentando imaginar como seriam as suas vidas dali por diante; outros, se esforçando ao máximo para esquecer dos seus passados, de toda a desgraça que eles haviam presenciado nas terríveis últimas horas.

– O que você acha que são essas criaturas que vimos hoje? – Osmar perguntou a Victor, triturando o silêncio noturno.

– O que são, acredito que ainda estamos longe de descobrir. Porém eu acho que aquelas coisas, aqueles monstros não vieram de longe, nem de outra dimensão nem de outro planeta. Eles estiveram esse tempo todo aqui, embaixo dos nossos pés, sem condições de sair enquanto o sol estivesse brilhando – Adonias e Cléber ouviam em silêncio o pequeno discurso. Victor continuou – Acredito, sempre acreditei, que o sol foi feito para nos proteger de alguma coisa, alguma coisa terrível, inexplicável... E agora, nós mesmos tratamos de tirá-lo desse posto de guardião... Nós permitimos que essas criaturas viessem à superfície da Terra... A culpa é toda nossa.

Depois de dito isso nada teve força para quebrar o silêncio e todos naquele quarto sentiram com um pouco mais de intensidade o frio que viera junto ao inicio da experiência, mas que com toda essa correria eles mal haviam percebido.

Horas depois:

Cléber era o único que não conseguia permanecer deitado, então passou horas da madrugada de pé em frente à janela do quarto olhando para o deserto acima dos muros. Como ele estava no segundo andar, de lá podia ver Ezequiel rodeando a casa, espingarda em mãos, maxilar retesado de amargura. Mas o que mais instigava o filho mais velho de Osmar não era a figura de Ezequiel, mas sim do outro homem, aquele que lhe parecia tão familiar.

Não demorou muito para que ele decidisse sair do quarto e caminhar até onde o sujeito estava, levando consigo um lampião.

Por quase cinco minutos ficou olhando para aquele rosto inerte, tentando desvendar porque algo lhe incomodava tanto naquele homem. Cleber não costumava ser assim, curioso em relação às pessoas, falava pouco, se abria pouco, e esperava exatamente o mesmo de todos ao seu redor. No entanto, lá estava ele pegando no bolso do homem a sua carteira e procurando qualquer documento que pudesse ser esclarecedor.

E quando conseguiu achar um crachá especial e o aproximou do lampião para ler o que estava escrito é que o rapaz finalmente juntou os pontos, entendeu porque o rosto lhe era tão familiar, havia visto aquele homem no dia anterior, dando uma entrevista no noticiário da TV.

O crachá era exclusivo dos cientistas da CPPMA, e o nome impresso ao lado da foto 3 por 4 era: Dr. Marcel Calisto.

Ali estava, bem na sua frente, o responsável por toda essa desgraça!

FIM DO CAPÍTULO 3.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 22/04/2014
Código do texto: T4778636
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