Autorretrato da loucura - DTRL 16

Autorretrato da loucura

"Nós vivemos em um arco-íris de caos"

Paul Cézanne

Sozinho no mundo, despedaçado pelo fracasso. Mutilado pelo delírio recorrente, o homem de cabelos vermelhos encarou a tela branca jogada no canto do quarto. O lugar, inundado pela umidade fétida que corroía cada lasca de madeira solta, estava soterrado pelo negror reconfortante.

Comera pratos quentes de rejeição durante toda a sua jornada, portanto, o frio cortante não era uma variável insuportável. A quietude de seu comportamento habitual contrastava com o pandemônio de vozes que gritavam frases desconexas em sua cabeça genial. O silêncio “do lado de fora” era ideal, pois precisava escutar a obra – a agonia berrada das linhas contorcidas.

Quando jorrou suas primeiras impressões curvadas sobre a superfície alva imaculada, a porta do modesto cômodo rangeu. Do corredor sombreado surgiu a figura soturna de um sujeito de bigode elegante encimado por um generoso nariz adunco. Os olhos brilhantes carregavam a força primal de um estilo único e duro. O casulo era elegante, mas a borboleta era rústica e brutal.

Incrédulo, o pintor deteve-se por um momento ao encarar o intruso que ousava adentrar em seu santuário. Em seguida, espremeu a visão e contemplou com satisfação o indivíduo intrometido. Sorriu de boca fechada, deixando escapar pequenos suspiros de melancolia. A visita era oportuna, mas o quadro precisava ser terminado.

- Pensei que jamais fosse rever essa narina descomunal.

- E eu achei que você não pudesse ficar mais feio.

- Sempre fomos um punhado de equívocos.

- Mas nem sempre soubemos contorná-los.

Os dois homens se abraçaram como leões juvenis brincando na savana. Duas massas disformes preenchendo cada espaço vazio da solidão. Eram mercúrio e mercúrio em singela harmonia – a temperatura não oferecia riscos. Pelo menos naquela noite não haveria ebulição. Entreolharam-se durante duradouros minutos, contemplando cada minúscula memória na íris fraterna.

O forasteiro fitou os borrões embrionários no quadrado sem moldura e posicionou-se exatamente atrás. Olhou de forma melancólica para o velho amigo e relutou em dizer:

- Não deveria ter feito isso...

- Eu te segui com uma navalha!

- Seu maldito comedor de batatas, você não teria coragem de fazer alguma coisa? – perguntou com indícios de retórica.

- Sempre tive, mas não existe coragem na covardia!

- De qualquer modo, não devia ter feito. Isso apenas reforçou sua horrenda assimetria.

O homem ruivo gargalhou ruidosamente e virou um trago de absinto verde na garganta avermelhada. Andou até o quadro quase descarnado e franziu o cenho. As feridas no peito começavam a doer.

- Rachel não soube apreciar o presente.

- Prostituas gostam de dinheiro e não de carne.

- Não de carne... – repetiu consigo, sem deixar que os olhos escapassem para o horizonte.

- Nunca duvidei do seu altruísmo, mas doar um pedaço de si foi acima do tom, até mesmo pra você – o visitante asseverou com uma ponta de reprovação.

- Não me venha falar de tons.

- Basta você diminuir os amarelos.

- Por que não sugeriu isso quando eu estava com a navalha na mão? – o sujeito que pintava disse, escancarando um sorriso sarcástico.

- Porque o pincel não tem lâmina e na minha veia não corre inesgotável tinta escarlate.

- Seu frouxo.

-Seu tenso!

O tipo de barba alaranjada soltou novamente uma retumbante risada e soluçou entre os suspiros cansados. O ar do quarto parecia se esgotar, assim como as parcas cores que iniciavam um estranho processo de retração. De canto de olho, viu a escuridão se fechar ao redor. Sentiu a atmosfera vital esvaziando vagarosamente até encontrar a tela desvirginada. O breve resto de vida que ainda não se findara. Sabia que não restavam mais tantos grãos, por essa razão, pintou mais rápido e mais forte, demonstrando o vigor dos últimos dias de abstinência.

- Não faça isso... – pediu o homem de nariz adunco, com certa tristeza na voz.

- Não tenho escolha.

- Não seja bobo, um homem que trocou pontilhados por pinceladas não pode falar isso.

- Um homem com uma arma na mão não pode falar em escolhas.

Dessa vez quem riu foi o amigo que permanecia em pé atrás da tela iniciada. Seu corpo estava atolado em breu, o nariz proeminente e o cano diminuto levemente revelados pela cor vivaz e generosa que escapava do quadro.

- Como certa vez disse para o seu irmão, você e eu não podemos simplesmente viver juntos em paz.

- Eu me lembro – o sujeito ruivo confirmou, sem tirar os olhos de sua obra. – Incompatibilidade de temperamentos, foi o que você disse.

- É, mas hoje vejo que é mais que isso. Somos iguais, dois lados de um mesmo girassol. Somos um só.

- Três orelhas e dois narigões – ele disse sorrindo.

- Muitos para apenas uma cadeira!

O pintor ajeitou a manga da camisa enquanto dava os últimos retoques ao famigerado traçado. Um homem distorcido sobre uma ponte, gritando de boca aberta. A voz ecoando da tela, a agonia em um volume ensurdecedor.

- Mas esse quadro não é seu – o homem berrou com a arma empunho e o coração abaixado.

- Não é nosso! – o artista de cabelos cor de fogo devolveu para a felicidade do colega.

- Adeus Vincent!

- Adeus Gauguin...

Van Gogh recebeu a bala no peito de braços abertos. Esperou o golpe do mesmo jeito que esperara a afeição durante toda vida. Tombou como um ídolo, uma imagem de sua obra imortal. Olhou uma última vez para o amigo que não estava mais lá. A eternidade durara trinta e sete anos...

- A tristeza durará para sempre – sibilou por entre os dentes antes de cair sobre o cavalete solidário que sustentava toda a verdade de sua vida.

Quadros

http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Grito_(pintura)#mediaviewer/Ficheiro:O_Grito.jpgn

RSollberg
Enviado por RSollberg em 10/05/2014
Reeditado em 12/05/2014
Código do texto: T4801546
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