Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? 17 Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá; porque o templo de Deus, que sois vós, é santo" ( 1 Coríntios 3.16-17 )


´´E eu não me conhecia. E por não me conhecer, não me aceitei. E por não me aceitar, não era ninguém. E por não ser ninguém, ninguém sentirá falta. E por ninguém sentir falta, não mereço viver´´.

"E eu nasci justamente no final’’

" E por sempre me aceitar, sempre fui alguém"

"E eu morri justamente no início"


Cap I

 
Carregava, envolto da camisa branca surrada, mamonas para a guerra que estava prestes a começar. A primeira mamona, vinda de um lugar qualquer, acertou em cheio seu olho esquerdo. Ao se desprender da camisa para coçar o olho, suas munições ganharam o chão. Estava em desvantagem. Pontos verdes ganhavam sua direção. Peito, costas, barriga, pernas, era fuzilado de todos os lugares. Em posição fetal, tentava, em vão, se proteger.
 
Em um segundo depois, nos braços de Davi, Sérgio era salvo. Sem dar importância para as coceiras produzidas pelas mamonas, recuperou seu carregamento. Olhou naquele momento para o amigo e sorriu. Davi lhe trazia confiança. E o contra ataque começou. O amigo que sempre lhe protegera de tudo, só não do fim de uma vida que seria, talvez, dele, pois ele estava em um pedestal mais alto. Davi sempre tivera mais importância. Sempre teria. Mas Sérgio, ainda não sabia.
 

"Um mundo. Sorrisos. Alegrias. Ingenuidade. E por tudo isso, com certeza, Peter Pan, e Sérgio, não queriam crescer".


Cap II



“Pingos de perfume em papéis de carta”


 
Carla sonhava alto. Seu portifólio era recheado de papéis de carta e sonhos ainda não vividos. Na prateleira, ao alto da parede de seu quarto, repousam, carentes, os ursinhos que já não eram mais usados. O vestido da formatura, descansava, intocável, no primeiro cabide do guarda roupa. Os 15 anos mais infantis se foram. Na gaveta do criado mudo, trancado com uma frágil chave, o diário, sem mais nenhuma folha à preencher, guardava os mais sórdidos segredos. Nunca houve uma narração de uma transa entre homem e mulher, nem mesmo dos primeiros beijos. Até tinham no começo, porém as páginas foram rasgadas devido à falta de intensidade para com o papel. Mas, em quase todas as páginas, relatos apenas de dúvidas. As dúvidas inaceitáveis. Boas, mas inaceitáveis. 



Página 4, escrita aos 14 dias de novembro de 2003. Meus 16 anos.

 
‘’Querido diário, hoje, fui pra cama com uma mulher. Foi diferente. A Camila me beijou. Eu tentei relutar com nojo, mas no final, cedi. Eu não sei o que me aconteceu. Mas foi algo muito bom. Os meus dois namorados passados, não conseguiram me dar o prazer que senti com Camila. Não, não digo prazer, foi como uma experiência no céu. Nesse momento, me passou a desaprovação da minha família. A vergonha. A ovelha negra. A sapatona. Mas era eu ali. Sorri e me entreguei de corpo e alma. E as horas daquela noite passaram-se em segundos. E os segundos eram tão demorados como horas´´.

 
De bruços e com os pés para o ar, Carla guardava, para nunca mais ver novamente, seu portifólio com os papéis de carta na última gaveta do criado mudo. Seu diário também não seria mais aberto novamente.


“Nosso destino não é só nosso”


Cap III

 
Grande demais para seus 14 anos, Sérgio era mirrado e tinha um tom de pele moreno, salvo às partes dos panos brancos, essas eram levemente esbranquiçadas, presente das tardes na represa. Seus grandes olhos escuros, eram herança da mãe. Do pai não tinha nada, a não ser, um ódio fomentado pelo alcoolismo dele.
Davi, seu melhor amigo, tinha 17 anos. Os dois dentes da frente eram estrategicamente separados, algo que passava batido devido a seus dois olhos azuis chamarem mais atenção. Sua única vaidade era seu cuidado com seu topete sempre protegido por gel.

A pergunta feita naquela noite foi: Verdade ou desafio? Sem ver, Sérgio fora desafiado a dar um selinho em Davi. Com um total de 8 meninas e 6 meninos, somado a maldade feita pelo rapaz que tapava seus olhos, o desafio foi feito. E Sérgio fechou os olhos, mesmo não acreditando depois, para beijar, e iria mesmo, Davi. Todos riram quando o amigo foi embora furioso. Sérgio, sozinho no centro, foi alvo de piadas. O modo de andar, de sorrir, alguns detalhes nos movimentos das mãos, eram imitados de Sérgio pelos amigos que continuavam a rir sem parar. Os dedos apontados. As maldosas caras e bocas. O pior momento da vida.

 

‘’Bichinha...´´


‘’O que era eu’’?



Cap IV

 
Sugando com os dois lábios juntos e o melhor sabor da ressaca pós sexo, o filtro levemente avermelhado pela boca de Carla ganhava, agora, o cinzeiro. A fumaça do cigarro ganhava forma ao ser solta lentamente. Afrodite aflorada em outro corpo de Afrodite. Apenas por uma noite um corpo era utilizável. Bom ou ruim, só uma vez. Para os homens, Carla era, no mínimo, uma deusa grega. Seus 1,69m, conseguia ostentar um curto cabelo ruivo, um nariz apontado, uma tatuagem em forma de estrela em seu ombro direito, uma cicatriz de um piercing que outrora andava em sua sobrancelha, e todo seu feminismo recluso ao ar livre. Para Carla, os homens não eram nada. Nunca significaram nada.
 


“E naquela noite, as estrelas se apagariam”.



***



’E num bar imundo da cidade, um bêbado mais imundo regava seu corpo de cachaça . A coragem abastecida por um líquido transparente que nem água, porém com pesos de vida diferentes. Algumas horas depois, o transparente se tornará vermelho sangue’’.



Cap V


"A alma de Jónatas se ligou com a alma de David; e Jónatas o amou, como à sua própria alma" "E Saul naquele dia o tomou, e não lhe permitiu que voltasse para casa de seu pai. 3 E Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma. 4 E Jônatas se despojou da capa que trazia sobre si, e a deu a Davi, como também as suas vestes, até a sua espada, e o seu arco, e o seu cinto." (Samuel I)

 
A doença de um amor impossível, a ira e a dor, a vontade e a aceitação. Sim, Sérgio amava Davi. E amava mais que a si. As risadas, as brincadeiras da infância, todos os momentos passados eram redesenhados como histórias de amor por Sérgio. Uma releitura do passado, por um ansioso futuro que não chegará. A imaginação de um beijo não era o suficiente. Mesmo com sangue, isso teria que acontecer.
 

‘’Por que homem se nasci mulher’’?


‘’E Deus foi culpado´´.


‘’O futuro é vermelho.


''Em um ponto da cidade, vejo uma sala coberta de sangue. Vejo também trilhos de trem vermelhos...''




Cap VI



"Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: adultério, prostituição, impureza, lascívia, Idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, Invejas, homicídios, bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus." Gálatas 5:19-21

 
O bafo azedo de cachaça mandava Carla não gritar. Uma faca, um corpo sujo, uma mente doentia, a culpa de ter um filho homossexual, a não aceitação com uma homossexual. O chão ganhava, em enxurradas, água salgada. A lua, envergonhada, pouco a pouco, escondia-se detrás dos prédios. As Três-Marias, sempre juntas no mesmo lugar do céu, brilhavam menos por Carla. Pouco a pouco, tornavam-se negras em respeito ao luto. O céu noturno não tinha cor. Tudo tremia, aos olhos molhados. Um corpo indesejado. Um vaso sem conteúdo. Carla não era mais ninguém. Lembrou-se do primeiro papel de carta. A primeira gotinha de perfume. Camila, seu primeiro amor.
Um verme, meio desajeitado ainda, ganhava a rua e a liberdade. Apenas uma gota de lágrima estacionou no canto do seu olho esquerdo. Carla estaria soluçando se tivesse forças. Suas unhas, sujas de terra, sangravam.



´´Todos seus ursinhos, choravam´´.




Nua, naquela fria madrugada, Carla abraçou um trem. Um abraço bem apertado. No céu, a última Maria fechou os olhos. A lua, se pudesse, já teria dado lugar ao sol.







‘’O trem segue para a próxima estação´´.



Cap VII


‘’E Davi poderia ser seu´´.

 
Após um cesto de lixo cheio de bolas de papel, uma única folha ganhou a história de amor escrita corretamente. O sublime amor. Depois de tantas encaradas, a faca deixou a gaveta e ganhou a mão e a confiança de Sérgio. Sangue escorria entre suas pernas. A dor não significava nada pela forte alegria. O pedaço indesejado caiu ao chão. Olhando-se ao espelho, como todas as mulheres, Sérgio vislumbrava-se ao, um pouco tarde é verdade, torna-se mulher.
E o sangue não percorria mais seu corpo. Estava quase todo ao chão. Não existia nenhuma luz ao fim do túnel. Que túnel? A últimas gotas, ainda permaneciam para mantê-lo maravilhado. Com 3 minutos de vida, Sérgio viveu intensamente. Já não pensava mais em Davi, estava amando a si mesmo. E amava tão intensamente. E o piso abraçou suavemente seu corpo.


’Em algum ponto do céu, uma estrela reacendia. No final, 2 Marias brilhavam intensamente’’.




Tema: Suicídio
Eduardo monteiro
Enviado por Eduardo monteiro em 10/05/2014
Reeditado em 13/05/2014
Código do texto: T4801911
Classificação de conteúdo: seguro
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