Sonhos - DTRL 16

Minha mãe vivia me dizendo que os sonhos tem poder. Ela dizia que se sonhássemos muito, poderíamos morrer. A vovó dizia que ela estava certa, e que os sonhos eram fontes fortíssimas de poder. Na lembrança mais antiga que tenho, eu estava sentado no colo da vovó, enquanto ela se balançava numa rústica cadeira de balanço, que emitia um rangido agudo a cada passada. Ela me contava um estória estranha, sobre um gato que não era gato – era, definitivamente, um deus aprisionado em forma de gato. Não sei dizer se isso era verídico, mas não me agradou muito. Como poderia um gato não ser um gato?

O nhec, nhec, nhec da cadeira era, à princípio, irritante, mas com o tempo deixou de ser perceptível. O vai-e-vem me deixava sonolento, e não demorava muito para que eu adormecesse naqueles bracinhos pequenos, mas fortes. Sempre acordava na cama.

Meu pai chegava do trabalho tarde da noite, sempre trajando um casacão e seu chapéu grafite. As noites eram frias naquelas bandas, e, diziam todos, o frio trazia os sonhos. Quando criança, o frio me atormentava, e não somente por ser desagradável, mas por medo dos sonhos. Meu vovô morreu numa noite de frio e chuva, muita chuva. O bondoso velho sempre dava balas e chicles para as crianças que passavam por lá, e dava também conselhos e contava ótimas estórias. Segundo ele, não existiam pesadelos. Apenas sonhos, todos iguais, e a única diferença entre os mesmos era a velocidade com a qual te faziam enlouquecer. Tenho saudade dele.

Veja como o frio é aterrorizante: o sistema de gás da casa estava com defeito, portanto o aquecedor não poderia ser ligado. Naquela noite, usamos a lareira à lenha, e minha mãe havia deixado a porta trancada – para as coisas ruins não entrarem, dizia ela. A mulher parecia vigilante, como se esperasse por algo ruim, olhava cada janela e porta, cada escada, com preocupação. Tinha dezesseis anos, na época. Meu pai já não morava mais em casa, desde que mamãe descobriu que ele passou a ter o costume de fazer algumas visitas fora de expediente à sua secretária.

Eu estava agasalhado dos pés até a cabeça, e foi por volta das duas da manhã que ouvi alguns barulhos estranhos na cozinha.

Desci correndo os degraus e vi a janela quebrada. O frio (naquela noite nevava) que adentrava a casa era imenso, cortante, cruel. Ouvi um grito vindo da sala, e sai correndo.

Meu pai segurava o pescoço de minha mãe. Ela se debatia, tentava se soltar, enquanto ele apertava as mãos em volta de sua garganta. O cheiro de álcool pairava no ar, e também de cigarros. Me senti impotente perante aquela cena, fiquei parado, plantado, imóvel, olhando a face da pessoa que me deu a vida arroxear. Ela sussurrava algo, imperceptível, e o grande sujeito, portando um casacão – mas sem chapéu – ria. Estava claramente bêbado, mas era forte.

Não sei como aconteceu, mas quando me dei conta, estava deitado no chão da sala de estar e tinha nas minhas mãos uma tesoura, cujas lâminas estavam avermelhadas e fediam. Eu mal enxergava, mal sentia o frio ou a dor que viria a sentir. Alguém olhava para mim, horrorizado, e um corpo estava caído ao meu lado. Só pude me manter acordado por mais alguns instantes, antes de perceber o que havia acontecido e desmaiar.

(corta)

Os sonhos, senhor! Cantar, lá lá lá! Senhor! Vem cá! Vamos brincar... Que tal?! QUE TAL BRINCAR DE MATAR!

CORTA, TRICOTA, REMENDA, COSTURA! RASGA, TINGE, COLORE E RABISQUE! VAMOS BRINCAR DE MATAR, SENHOR! VAMOS BRINCAR DE MATAR, SENHOR! POR FAVOR, SÓ UM POUCO DE SANGUE, DE CARNE, DE TRIPAS... OS OSSOS QUEBRANDO, AS BOCAS UIVANDO, SEM AR, SENHOR! RESPIRE, SENHOR!

VAMOS BRINCAR DE MATAR!

Acordei no hospital.

Na maca ao lado, estava uma mulher, que alguns instantes depois eu descobriria ser a minha mãe. Não consegui perceber porque seu rosto estava inchado e roxo. A única pessoa acordada no quarto – cuja presença demorei a perceber – era a vovó. Ela se sentou, acolhedora, ao meu lado. Me abraçou, disse-me que não era minha culpa, que fiz certo, e que a justiça iria me deixar livre. Murmurou algo sobre legítima defesa. Não respondi nada, mas o silêncio foi apropriado, acho. Foi recíproco, por um tempo, e então veio um comentário estranho.

- Você anda sonhando, não é, menino? Sonhos ruins numa noite fria, sonhos perturbadores. É apropriado. – Disse a velhinha. – Por que fez aquilo?

Porque fiz aquilo? Acho que foi o terror, talvez...

- Não pude aguentar vê-lo fazer aquilo. Ele iria mata-la... não me lembro bem, vovó. Quando dei por mim, estava caído no chão da sala, e a tesoura estava em minhas... minhas...

O garoto olhou as mãos, e viu sangue...

( tricota)

Era uma casa de espelhos.

O garoto adentrou, sorridente. Era seu brinquedo favorito. Estava sozinho, mas já era adolescente, não era?

Olhou seus reflexos, ora gordo, ora alto, ora magro...

Uma seta no chão indicava o caminho para fora do brinquedo, era sempre assim, e o menino a seguiu até o fim; não tardou para encontrar o caminho, mas tudo o que conseguiu foi chegar no início novamente. Olhou para trás, e viu uma figura de negro, vestindo um casacão, sem os olhos nas órbitas e com tentáculos saindo ao lado dos braços. Eram inúmeros, e se mexiam agitados, tateavam buscando enxergar o que já não conseguia ver com os olhos.

Mas conseguia falar, e falou.

- Porque, filho?! – Perguntou o monstro. – Porque me matou?! Aquela vadia me abandonou, tomou tudo o que eu tinha! Minha casa, meus bens... colocou minha família contra mim! VEM CÁ! – disse, por fim, e começou a andar em direção ao menino.

Ele correu, correu e correu mais um pouco, até as pernas ficarem bambas. Levantou a cabeça, respirou, ofegante, e fitou o espelho... Parecia que o monstro saia de dentro dele, quando na verdade, vinha por trás do menino. Felizmente, ele percebeu isso. Infelizmente, um dos tentáculos já o havia agarrado. Deu duas voltas em torno de uma das pernas e puxou; o garoto caiu no chão e começou a chutar.

- DESCULPA, PAI! EU NÃO QUERIA...! DESCULPA! – gritou ele, com medo, e o tentáculo começou a subir por sua coxa. – Eu não queria te matar...

Não havia para onde correr, ou onde se esconder, e nada do que fizesse adiantaria. O monstro estava segurando firme... pela primeira vez em meio ao caos, a face da criatura apareceu; parecia um lagarto, com escamas gosmentas e também guelras.

(remenda)

A mãe segurava seu filho no braço, era um bebê gordo, saudável e chorão. Apenas os dois estava em casa, mas logo os avôs maternos chegariam. Num raro momento de silêncio, a mãe contou ao filho a estória de um gato que caiu num espelho. O bebê ouvia, atento (ao menos, o mais atento possível para alguém com cinco meses de vida).

- Esse é você, filhinho... – disse ela, apontando o reflexo no espelho. – Veja como você é lindo... meu bebê...

(costura)

Uma voz na cabeça lhe dizia algo não necessariamente útil.

Esse é você, filhinho...

Eu? Como assim, eu? Pensava o menino, em meio ao desespero. Olhou a si mesmo no espelho, não disforme, como nos outros. Será? Pensou ele, curioso...

Esticou os braços o máximo que conseguiu, e tocou no espelho. Sentiu algo quente e feliz ali, que durou pouco... o espelho se inclinou em sua direção, e –naturalmente- caiu.

(corta)

Eu estava novamente no hospital. Dessa vez, quem estava deitada era a vovó. Seu cabelo, grisalho, espelhavam uma vida feliz. Ela era a pessoa mais feliz que conheci; sorria, brincava, contava estórias e fazia chocolate quente como ninguém. E agora, estava deitada naquela maca gelada de hospital, esperando... Mas sem saber pelo quê. Seu monitor cardíaco marcava um ritmo lento, que se recusava a crescer, se recusava a tentar...

O fio que a prendia à vida era tão fino e sensível quanto aqueles cabelos brancos e felizes, e ao mesmo tempo esticados e vividos... não consegui ficar perto da vovó por muito tempo naquele estado; preferi ter a lembrança dela feliz, balançando naquela cadeira de balanço, comigo no colo; me segurando, com aqueles braços fortes e finos que só ela tinha.

Saí dali, e fui para casa. Se é que eu poderia chamar aquele lugar de casa.

Ela estava certa sobre a justiça; eles me deixaram em paz, pois havia sido legitima defesa. Mas o velho bêbado que chamei de pai sucedeu em sua tentativa. Ela morreu duas semanas depois, já afetada pelos ferimentos e traumas do sufocamento, quando foi pega por uma pneumonia.

Vovó morreu três dias depois. Herdei seus bens e sua casa, onde só fui após o velório.

(corta, costura, remenda e tricota. Corta, remenda e tinge, e corta e costura)

Entrei naquele casarão e não sei bem porquê, mas fui diretamente para o porão. Talvez quisesse apenas ficar sozinho, no escuro, com os fantasmas e lembranças. Talvez fosse tudo a mesma coisa, afinal.

Fechei a porta que dava na escada após entrar. Bati no interruptor ao descer o penúltimo degrau, e avistei minha infância diante dos meus olhos. Meus brinquedos, roupas antigas, minha primeira bicicleta... Alguns retratos antigos. Num deles, eu estava vestido de maquinista de trem. Noutro, estava recebendo o diploma do ensino médio; um dos meus professores me entregava o canudo, mas eu não me lembrava dele. Curiosamente, em outro quadro, vi um gatinho – provavelmente filhote -, em frente à um espelho. O gato parecia feliz. Fiquei ali no porão, lembrando do tempo onde a vida era mais fácil, quando eu era alegre, e meu vô me dava balas, e a vovó fazia chocolate quente. Quando meu pai chegava em casa cantando, e trazia folhas para que eu desenhasse... Quando mamãe ainda estava viva. Chorei, e resolvi sair dali.

Enquanto saia, avistei algo que me chamou atenção. Era uma pequena cadeira de balanço. Me sentei na cadeira e ouvi um familiar, mas distante, nhec, nhec, nhec... Era a cadeira na qual eu sempre dormia, no balançar suave, envolvido naqueles maravilhosos braços... Não tive forças para me levantar dali. A nostalgia, a saudade, a tristeza, a impotência daquele momento foram tão grandes... Decidi, não sei porquê, ficar naquele porão até o dia amanhecer; dormir onde sempre dormi na infância. Aquele pensamento me confortou.

O frio começou a vir, por isso resolvi ligar o aquecedor (a lenha) do porão. Demorei um pouco para conseguir acender a faísca, mas logo após isso, pude sentir o confortável calor tomar conta do ambiente. Fechei as janelas (eram várias, e ficavam na altura do solo) para evitar o frio de entrar, e me sentei na cadeira. Adormeci.

Minha mãe vivia me dizendo que os sonhos tem poder. Ela dizia que se sonhássemos muito, poderíamos morrer. A vovó dizia que ela estava certa, e era verdade.

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Bem, este chegou ao fim. É isso mesmo. Querido leitor, obrigado por ter me dado a honra de sua leitura. És muito importante à mim. Daqui pra frente, estarão apenas alguns nomes, aos quais sou grato.

Antes de tudo, à Ariel Borges, que é minha guia e companheira. Gostaria de agradecer, especialmente, ao meu novo amigo Bruno Martins, cuja narrativa durante um jogo de RPG é incrível, e isso me inspirou neste conto. Também agradeço muito às minhas Mãe, Tia, Vó e Irmã, que são muito importantes pra mim e não consigo imaginar um mundo sem elas. Sinto saudades do meu avô. À Diego Emanuel, cuja amizade veio de algumas estórias. É bom ser seu amigo. Seria injusto não agradecer a Neil Gaiman, cujo talento para contar estórias não deixa de me inspirar e incentivar.

Gosto muito de gatos, e no texto, isso é importante.

Por fim, agradeço ao menino e sua família.

Que sempre me receberam de bom grado sempre que precisei ou tive inspiração para tal. Ou talvez eu os tenha visitado.

Sobre o final do conto, na primeira vez que o escrevi, ele não foi o mesmo. O tema, aliás, é suicídio. Revelei somente agora, para não estragar o impacto causado pelo final do conto.

Miguel Bernardi, 12/05/14.

Miguel Bernardi
Enviado por Miguel Bernardi em 12/05/2014
Reeditado em 18/06/2014
Código do texto: T4804085
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