Os espíritos acodem - Dtrl 16

Tema: Ídolos

A neblina fosca e fresca aprumava entre os rochedos, as casas, as árvores velhas, duras, negras, a luz não tocava o solo, os galhos tortos e as folhagens enegrecidas flutuavam ao vento sorrateiro. O hálito do caminho margeado de plantas escuras intensificava a atmosfera bucólica, apresentava a palidez vital, os pássaros sobrevoavam em tristes alaridos, insetos adquiriam modesta presença, a escuridão trazia sombras antes do entardecer.

A mobilidade em tal propriedade mantinha os aspectos de outrora, os cavalos, e charretes perambulavam, um vilarejo enternecido no esquecimento, as vias de terra, a luz fraca dos postes, iluminavam com menor precisão, os troncos e mourões assemelhavam a fantasmas ao entardecer, mas nada tão obtuso comparar tais matérias naturais a meticulosos seres espirituais improváveis.

Os celeiros estavam vazios. A quietude imperava como o sol nos dias mais belos na costa, os raios ofuscados pela floresta negra, deturpava a vida vegetal, a saúde dos campos e lagos eram debilitadas, o surgimento de novas espécimes era certamente negligenciado pelos aspectos climáticos e topográficos da região. Embora, a juventude mantivesse entre os animais, muitos deles permitiam adoentar-se brevemente após o nascimento, o que difundiam nas vizinhanças era que tal vilarejo, mantinha um segredo ou mistério, segundo os dizeres populares que asseguram ao ouvinte parte da história e parte da alegoria inventiva de velhos moradores.

- Estaremos em alguns minutos em nossa nova casa!

- Espero que breve, o andar desta carruagem me dá náuseas, e quanto as crianças, não as vê?

- Uma aventura! Quando compraríamos uma bela casa, que dirá uma mansão por tal preço?! Teremos de transitar em temporadas que preferirmos um pouco de paz e quietude.

- Estarei contigo querido. Quem sabe consigamos com o tempo calçar ao menos o caminho da estrada até a nova casa?!

O aspecto jovial de Elisa e Demétrio mantinha a beleza de recém-casados, seus filhos Alfredo e Olívia, não tão belos, com sardas e cabelos castanhos, viviam em uma cidade maior, os pais eram donos de uma media companhia de calçados, a jovem além das aulas se dedicava a pintar, quanto o garoto, preferia jogos e competições entre colegas. Em uma região inóspita de tecnologia, a utilização de brincadeiras e jogos antigos era o que proporcionava aos dois, qualquer diversão.

Ao adentrarem os portões depararam-se com uma enorme casa, de peitoril em mogno, escadas largas, uma porta alta e espaça. No primeiro contato o charme da mansão os encantou. O dimensionamento da casa fora arquitetado, tinha a sua direita uma área de lazer com cadeiras, mesas e redes, a sua esquerda uma fonte.

- Crianças, podem escolher os quartos de vocês!

- E quanto ao nosso?

- Teremos uma vista bonita, e estaremos entre os quartos dos dois.

- Que achou da propriedade?

- A casa é realmente fabulosa, há espaço e estou interessada em passar dias como nossos ancestrais passaram, a esmo e longe da tecnologia. Mas e quanto a assuntos importantes da companhia? Já pensou querido?

- Temos ótimos diretores. E de que adianta termos uma bela companhia se formos escravos dela? – Sorriu e a beijou.

Dias trôpegos, estenderam-se por algumas horas em comemorações, conversas, jogos e especulação da propriedade. A sonoridade quase nula demostrava arbitrária a vida de ambos, impelindo de que permanecessem quietos por muito tempo.

O belo luar estrelado os fizera admirar das redes a imensidão dos céus sem que houvesse interferência de arranha-céus e outdoors. À noite serviram-se de chá e biscoitos, mantiveram-se tranquilos. Antes que pudesse pegar no sono, a mocinha abriu parte da cortina de sua janela, espiou por um certo momento o gramado notando que havia um grande ídolo no meio da fonte, o admirou por alguns segundos e deitou-se.

Após o amanhecer, assim que o fiacre chegou, voltaram para a cidade, o final de semana fora belo, excluíram a exasperação da cidade grande, e aproveitaram a tranquilidade juntos por algumas longas horas.

- Que gostaram mais na casa crianças? – Perguntou o pai.

- Gostei do porão, posso fazer uma oficina de carros lá papai?

- Sim! Sim Alfredo, mas vejamos, aos poucos, não será tão fácil trazer todos os seus souvenires, temos de alugar essa carruagem, o carro não chega até a mansão. E quanto a você Olívia?

- Gostei da estátua.

- Estátua? – Questionou a mãe. Filha onde vira um ídolo na propriedade?

- No meio da fonte, ele tinha uma expressão séria, mas bonita.

- Não percebi, talvez estivesse maravilhada com a casa. Viu o tal ídolo que Olívia disse ter visto?

- Vi que havia algo na fonte, mas não reparei. No próximo descanso, assim que voltarmos veremos de perto o tal ídolo.

O fiacre percorreu o caminho estreito até a rodovia, no vilarejo, havia um galpão que servia de estacionamento, pagou ao homem e combinou sempre que possível de leva-los até a mansão.

- Posso contar sempre com você para nos levar até lá?

- Sim senhor, desde que seja a luz do dia.

- Acreditas mesmo nos dizeres que há uma assombração ou algo do tipo nos arredores?

- Coisas estranhas acontecem naquela casa.

Demétrio deu de ombros, pagou e desejou uma boa semana. O homem olhou com certa preocupação e temor e acenou com seu chapéu. Enfiou o dinheiro em seu paletó olhou para o caminho onde ficava a mansão e por um breve momento aquietou-se.

O tempo na região era envolto de névoas fracas e noites incrivelmente estreladas, talvez, os mitos que ali percorriam, contribuíam com a dúvida sobre o mistério da comunicação oculta com espíritos e o nada. Se passaram cerca de cinco semanas, até que decidiram retornar a mansão. Quando chegaram na rodovia, o homem já estava a espera, eram nove da manhã, com apreensão os cumprimentou e disse:

- Subam, temos um caminho sinuoso a percorrer, adiantemos.

O percurso durou por volta de quarenta minutos, a terra estava úmida e alguns trechos parecia que as rodas atolariam, uma onda de ansiedade e desconfiança pairava sobre os adultos, as crianças implicavam entre si. Por um instante reconheceram que estavam felizes por estarem juntos e desprezaram qualquer boato sobre suposta anomalia.

Desceram. Os filhos logo correram para o jardim, e o homem persuadiu uma última vez a Demétrio:

- Caro, tens uma bela família, saiam já desta casa.

- Não posso compactuar com sua crença, mitos estão espalhados por aí.

O pai deixou-o falando sozinho e deu as costas, entrou no jardim e fechou os portões. Lembrou-se do que a filha havia dito na primeira vez, chamou Elisa e foram próximo a fonte. O ídolo era feito de pedra, com guarnições brilhantes, a matéria com que fora criado talvez tenha adquirido tal beleza com o passar dos anos, não era belo, nem feio, a expressão era intensa e rústica, o que assemelhava a presença de um corpo mergulhado num barril de cera quente e lapidado sem severa precisão. A face era misteriosa e cínica. Em seu seio haviam três pequenas flores em alto relevo, um de seus membros tinha a expressão de um jogador, erguido, com dedos abertos, o outro pendia levemente no ar, referindo-se a delicadeza feminina.

O que instigava em tal estátua eram as propriedades anatômicas incertas a referir-se a um homem ou a uma mulher, não haviam traços que remetiam a cabelos, mas um véu com nó utilizado por marinheiros e lavadeiras. O semblante do ídolo acrescentavam um olhar profundo, as narinas delgadas, os lábios exibiam uma fenda, uma espécie de abertura macabra, a expressão era belíssima, embora as impressões de nossos olhos remetessem a um exemplar medonho. A expressão de sua boca elucidava o fato de ter sido esculpida quando ainda estava viva, os traços de pavor eram perceptíveis.

- Que exemplar estranho! – Exclamou Elisa.

- És bela e pavorosa, não é uma Vênus, nem mesmo uma camponesa. Lembra-me mais uma bela bruxa.

- Acho que devemos tirá-la daqui. A presença deste ídolo me incomoda.

- Podemos fazer o que preferir, mas e quanto a Olívia?

- Ela se acostumará sem esta estátua estranha. Confesso que me deu arrepios.

Algumas horas passaram, a noite adentrava a propriedade, o vento gélido e enfurecido colidiu contra a mansão, as janelas bateram e as velas bruxulearam, mantiveram-se normalmente em seus leitos. Após as rajadas intermitentes, Olívia olhou novamente da janela e viu que estátua tinha um brilho envolvente, a lua refletia sua luz com maestria.

Desceu as escadas e passou pelo jardim, a bruma lúgubre e densa a acompanhava, ela se aproximou da exuberante figura de pedra e fitou os olhos profundos, por alguns minutos ficou admirando um misto de beleza e horror, seu semblante era de pavor. Em segundos voltou as pressas para a casa, olhou duvidosamente da janela e deitou-se.

Seu irmão, ouvindo seus passos, correu até o quarto e a indagou:

- Que fizera lá fora nesta noite tão sinistra?

- Fui buscar uma de minhas bonecas esquecidas no jardim.

- Não minta para mim, eu a sondei pela janela do meu quarto. Vi que estava perto da estátua. Que foi fazer lá?

Com temor a menina completou – Fui admira-la, mas...

- Mas o quê?

- Ela sussurrou a palavra morte.

- Não acredito em você, não quer que eu acredite em você!? – Bateu a porta e saiu.

Desconfiado, alguns minutos passaram até que Alfredo fosse então ter-se com o ídolo, ele a olhou com desprezo, pegou uma esfera de bronze, uma de suas que havia trazido, e arremessou no rosto do homem ou mulher de pedra, a esfera tiniu e voltou para o chão, próximo ao seu pé, arremessou novamente sobre o abdômen e voltou com força passando de raspão no seu dedo mindinho, que lhe provocou raiva. Assim que deu as costas para pegar novamente a esfera, ouviu a palavra morte sussurrada. Soergueu-se rapidamente e deixou-a na grama, subiu para o quarto da irmã batendo a porta.

- Olivia!

A menina abriu a porta e com expressão de medo disse:

- Eu vi as esferas voltarem duas vezes, o que ela disse na terceira vez?

- Morte! – O menino disse com um brilho antes não visto em seus olhos.

Ficaram próximos e olharam do peitoril da janela e viram que o Ídolo não estava mais lá, atemorizaram. Correram para a porta, parecia estar trancada. Bateram por duas vezes até que na terceira vez, se abriu. Assim que empurraram a porta no meio do linóleo em frente o portal do cômodo, tinha delicadamente uma flor no chão. A flor era feita de pedra e não tinha nenhuma poeira do lado, como se fosse colocada suavemente ali. A menina pegou e segurou a flor. Entusiasmada pelo mistério, correram para a janela e se acalmaram quando viram que a estátua estava lá, que por pura impressão, imaginaram por certo momento que tivesse saído dali.

O dia raiou encoberto pela névoa e nuvens opressoras permaneceram o dia todo. Os dois evitaram se aproximar da fonte, no bolso de seu vestido, a menina carregava a flor de pedra.

- Que acham de fazermos um luau esta noite?

- Não acho legal. Temos tantas coisas pra fazer em casa. – Disse Alfredo.

- Realmente, podemos fazer uma peça teatral para você e papai. – Interpelou Olívia.

- Que houve, gostaram tanto do jardim, da casa e a estátua.

Se entreolharam e disseram juntamente:

- Ela sussurrou uma coisa terrível.

Os olhou com desconfiança e premiu os lábios, pegou ambos pelas mãos, ao se aproximarem, viram que no peitoral faltava uma flor, a mãe, olhou diretamente para a ondulação que faltava. Pensou por alguns segundos e decidiu colocar uma coerência ao caso.

- Talvez tenha caído com a intempérie.

- Mas estava em frente a porta do meu quarto. – Disse a menina com apreensão.

- Não minta para mim. Diga realmente como encontrou esta pequena flor?

- Ontem quando todos estavam deitados, olhei pelo vitral e admirei a estátua, e algo fez com que eu ficasse próxima a ela, e então ela sussurrou.

- Quem dera a permissão para sair a noite? É muito pequena.

- Apenas para você e o papai, já temos treze anos, somos gêmeos, e nos tratam como se tivéssemos no primário.

Elisa a repreendeu com um grito, a menina desdenhou, virou-se e foi para a casa, seu irmão a acompanhou não olhou para a figura da mãe nem para o Ídolo. O sol estava fraco, as nuvens espessas, os sinais da chuva começaram a aparecer na copa das arvores, na fonte e na grama, recolheram e rapidamente a torrente de água caiu, uma chuva interminável os abraçou.

Com o passar dos minutos, a mãe se aproximou do pai, e permitiu contar a estória da menina, ele levantou as sobrancelhas e acendeu um cigarro. A chuva trouxe a mansão uma presença mórbida, o farfalhar da água fora pressionava o telhado e as paredes intensificando a possibilidade de eclodirem, as cortinas negras bailavam levemente, o vento vinha soleiras das portas e pequenas frestas das janelas, a lareira estava acesa, os quatro estavam na sala, os adultos liam, Olívia e Alfredo tinham um jogo de estratégia como diversão.

Um baque soou próximo a janela, estremeceram, e permaneceram quietos, outro barulho com maior reverberação ecoou, a janela, cujo, o som provinha estava em linha reta com a figura da imagem sem movimentos. Os raios que brilhavam na escuridão, davam segundos de vislumbre da situação fora da casa, e na segunda vez que clareou perceberam que o ídolo tinha desaparecido. Solenemente o silêncio reinou próximo a lareira, o que podia ser ouvido eram apenas o crestar da madeira ao fogo e a torrente de chuva. Após dez minutos de glacial quietude, o temor já tinha influenciado a família, até que um grande baque na porta os estarreceram. As batidas estavam enfurecidas, uma forte torrente de chuva, e a madeira queimava num arrastão.

- Abram! Sou eu, Tomas, o dono do fiacre. Abram, por favor, abram!

O pai pegou uma bengala que estava próxima a lareira e a empunhou na defensiva, olhou de soslaio entre o vitral da porta principal, e viu que tinha um senhor de baixa estatura, com seu chapéu usual e mais outra pessoa do lado. Baixou a guarda, abriu a porta, os olhou e os convidou para entrar, antes que fechasse a porta, espiou a fonte, o ídolo estava intacto.

- Desculpem-nos a nossa abrupta chegada, estávamos preocupados com vocês aqui nesta casa. – Adiantou Tomas. – Olha quanta falta de decoro de minha parte, esta é minha mulher Ângela.

- Prazer! – Elisa sorriu desconfiadamente com simpatia.

- Que diabos os fez vir aqui nesta hora da noite e numa tempestade como esta? – Interrogou Demétrio.

- Ângela trabalhou nesta casa em outras ocasiões, e achamos que devíamos estar dispostos a ajudá-los, a casa é enorme.

- Poucas horas atrás disse que deixássemos a mansão, por acontecerem coisas estranhas. Agora querem nos ajudar?

- Caro, nesta casa acontecem coisas esquisitas. – Disse Ângela com olhos arregalados.

Entre o diálogo inquiridor do proprietário e dos estranhos, caiu misteriosamente dos degraus da escada que dava acesso aos quartos no andar superior, um objeto que tintilava mais alto de acordo com que se aproximava do piso onde estavam, a ação da matéria do pequeno objeto fez que corresse um metro de distância do primeiro degrau. De assalto o pai o pegou, era outra flor de pedra.

Os filhos se aproximaram da mãe e entregaram-na a flor que foi deixada em frente a sua porta, agora, os hóspedes olhavam para ambos com insegurança, o pai voltou com fúria e gritou – Alguém está com péssimo humor esses dois dias! – A voz de Tomas apaziguou sua ira e deu um pouco de lógica aos fatos.

- Vejam bem, temos muito a contar para vocês. Vivemos aqui a vida toda, e como sabem, no Brasil, alguns gostam de cuidar da vida dos outros, ouvi e asseguro que Ângela também, desde jovens como seus filhos. A propriedade era amaldiçoada por algum espírito ou mal inexplicável, as tratativas para que tal enigma fosse desvendado foram deliberadas por quase todos os moradores, alguns morreram, outros enlouqueceram e muitos fugiram. De quem compraram a propriedade não sei, mas que há uma chaga vil aqui há! Diziam meus avos que toda essa maldição provinha de Amélia.

- Quem é Amélia? – Questionou Elisa impressionada.

- O ídolo minha senhora! Amélia foi uma menina feia, tinha uma doença irreparável na pele, as protuberâncias e deformações a fizeram uma jovem horrível, com olhar profundo, seu desejo dourado era o matrimônio, como não obteve êxito, afogou-se na fonte, a família manteve o rosto disforme da moça na estátua, mas assegurando beleza. Não perceberam que próximo a fonte os pássaros morrem?

- Sim, eu percebi – Indagou Alfredo curiosamente. E são muitos deles, mas com o anoitecer ás vezes desaparecem.

- Eu os avisei, esta mansão tem acontecem coisas medonhas, e se já tens duas flores, falta a terceira.

- Que terceira? - O pai resmungou.

- No seio da estátua havia três flores, não te lembras? Hoje pela tarde havia apenas duas. Eu mesma vi com meus próprios olhos. – Disse Elisa – Devemos ir para cidade, partir, agora!

Um baque estalou mais uma vez, como um golpe na vidraça, voou a terceira flor ensanguentada, caiu no linóleo, olharam com pavor. Ouviram passos rápidos do lado de fora, a chuva havia cessado e qualquer mínimo ruído podia ser ouvido, todos estavam calados e próximos. A sombra do nó na cabeça do ídolo era visível contra a uma vidraça, ela se mexia, e se aproximava das janelas, uma a uma, e eles estavam empertigados próximos a lareira.

Um grande golpe foi dado na porta, e alguns vidros despedaçaram, os trovões e raios permitiram iluminar a presença medonha do ídolo a porta, a face tenaz e o corpo ereto, os pés adquiriram forma, a majestosa e macabra presença de Amélia os fez ficarem impressionados e apavorados, correram para o andar superior, acompanhavam do peitoril da escada, qualquer movimentação no térreo, e ouviram o sussurro – Morte! – permaneceram quietos, a agonia interminável desembocou o horror extremo a ambos.

Uma sombra maior se aproximou, mas não era possível ver o rosto ou o corpo, o fogo refletia sem precisão, e como se andasse a passos miseráveis, a apreensão tornou maior a cada instante, sem destreza de resolução o espectro que era iluminado, mantinha o nó da cabeça na figura negra que o fogo refletia. Exasperaram até que a sombra aquietou-se, e de repente correu e pulou sobre as escadas, a maldita presença pétrea de um ídolo infernal os encarava sem indulgência, subiu cada degrau os fitando fielmente, com os braços em posição semi-ereta, aproximava-se lentamente com sadismo, a boca em seu aspecto perverso simulava um sorriso maléfico, as cortinas bailaram e as três pequenas peças de pedras em forma de flor despencaram até o chão.

O hipnotismo do olhar irretroativo de Amélia os mantiveram estáticos. Os trovões e a baixa luz emanada da lareira demonstrava em relances o semblante macabro do corpo pétreo se aproximando, desta vez, vagarosamente, atribuindo o entendimento de ruína aos espectadores que aguardavam seu golpe final, desprezando a misericórdia.

Abruptamente Tomas puxou duas das cortinas que bailavam atrás de si, e jogou uma no rosto de pedra, o confundindo e privando a visão por instantes, cambaleou e caiu, os membros rígidos se contorciam, e por alguns momentos ela se livraria do tecido que a encobria.

- Corram para fora! Depressa! – Gritou Tomas – Instantaneamente jogou nas mãos do pai a outra cortina – Ateie ao fogo, não vacile!

Passaram em um arrastão a escada, a família, os quatro, desceram correndo as escadas, e o pai atirou a cortina a lareira, seguiram para fora. A menina olhou para trás. O jardim estava baldio e o silêncio reinava nas dependências, deliberadamente viram um facho de luz aumentar na sala, perceberam que o tecido da cortina ardeu ao fogo, que por sua vez, seguiu pelo tapete e mobília, a casa em poucos momentos queimava intermitentemente. A neblina pairava aos arredores e a fumaça inundou a região, até que por horas ao relento e avistando do portão, concluíram que as chamas tinham consumido a mansão.

Nos primeiros raios do sol, de longe, avistaram a presença sem vida do ídolo, em sua pose usual, com um de seus braços em ascensão e outro decaído com delicadeza. Aproximaram-se e viram que estava intacta, a mansão arruinada e os pássaros mortos ao redor da fonte.

Deram as costas para o ídolo esperaram que alguém os pudesse buscar, os pensamentos eram controversos se houve realmente ou não tal cena trágica na noite anterior.

- Como Tomas e Ângela se sacrificaram por nós?! – Elisa exclamou em voz compassiva e em tom ameno.

- Eles flutuavam, seguravam a cortina no rosto de Amélia. – Ontem quando saímos da mansão, olhei para trás e vi que Ângela e Tomas flutuavam na escada e segurando o tecido.

As palavras da menina deu coerência ao fato, o temor e alívio os abraçou. Com alguns minutos silenciados pela revelação de Olívia, avistaram uma velha carroça se aproximar, um senhor velho com camisa aberta sem botões, cumprimentou e parou.

- Que houve aqui? Esta casa já devia estar a cinzas a muito tempo, não gosto deste local. Devo me apresentar, meu nome é Romão, tenho uma pequena casa próximo daqui, e vocês quem são?

- Somos da cidade! – Disse o pai.

- Que fazem próximo a esta propriedade sinistra?

- Viemos passear e conhecer a região, estava a venda, mas pelo visto não tem mais mansão qualquer para se ver. – Blefou Demétrio.

- Sorte de vocês, acontecem coisas estranhas neste local.

- Pode nos dar uma carona até a rodovia? Estamos aqui ilhados.

- Claro, espero que não se importem de irem em minha singela carroça, as meninas vão na frente, e você e seu garoto atrás próximos as latas de leite. Não esperava receber ninguém nesta viagenzinha. – Disse com carinho.

A volta foi interminável, o peso da carroça obrigou o animal ir vagarosamente, pensamentos os consumiam, o velho assoviava uma canção popular. Mantiveram-se calados, e o assovio encarregava-se de dar um pouco de conforto a família.

Semanas depois, um caminhão com tração nas rodas, e alguns homens foram na propriedade, tiveram inexorável dificuldade de chegarem no local, as cinzas da mansão permaneciam intactas, o ídolo e a solenidade da quietude que imperava ali. Na carroceria uma grande peça de bronze maciço, com diâmetro e espessura suficiente para aprisionar o mais feroz dos animais. Disforme e com uma espécie de abóboda, era uma jaula guarnecida a mando do dono, Demétrio, que os acompanhou e observou colocarem a grande peça em bronze, com ajuda de maquinários, no corpo do ídolo, o aprisionando, e chumbando em uma base também de metal para que ali fosse preso pela eternidade. O serviço fora concluído após horas a fio. Trancafiaram os portões com enormes cadeados, um olhar de adeus foi dado por Demétrio, subiram no caminhão e voltaram para a cidade.

A quietude extrema da região foi atormentada por gritos abafadiços e estalidos metálicos por inúmeras vezes, o que diziam na região era ouvirem próximo a antiga dependência, os gritos e arranhões que ralhavam como se a pedra riscasse o bronze, e por anos o número de pássaros dos arredores haviam diminuído, com péssima visão os que viviam nas proximidades, diziam que em torno ao ídolo aprisionado permanecia uma volume enorme de pássaros mortos e putrefatos.

- Marcos Leite

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