326-BANQUETE COM OS MORTOS-História Antiga

— Poderoso Rei, as tropas dos egípcios se aproximam rapidamente pelo sul. — Entrando tempestivamente na câmara real, Manfi-Habul não se deu ao trabalho de fazer os salamaleques tradicionais exigidos pelo protocolo de Katna. — Precisamos concentrar nossas tropas nas colinas.

Impávido, o Rei Idanda observa o leal chefe do exército. A magnificência dos trajes reais não esconde a figura impressionante que ocupa o trono. Alto, a tez morena, envolvida por basta cabeleira negra e longa barba encaracolada, compridos braços e mãos fortes. O olhar é tranqüilo e profundo, ao mesmo tempo. Uma presença que infunde respeito e confiança.

— Já sabemos, meu general. Nesta madrugada chegaram emissários de nossos vizinhos. O rei Al-Sukne, nosso aliado, mandou-nos avisar dessa expedição dos egípcios.

De fato, a mensagem do rei de Deir-Ezorin, região a oeste de Katna, já havia alertado o rei Idanda: “Um grande exército do Faraó se aproxima, vindo do Sinai. Não vos preocupeis, estimado irmão. Eu o protegerei. Fortifique a cidade de Katna até minha chegada.”

Dirigindo-se ao chefe do exército, o rei determina:

— Distribua todas as forças do exército pela muralha de Katna.

Acalmado por essas palavras, Manfi-Habul fez a competente vênia e, sem dar as costas ao rei, saiu do salão real. Transmitiu ordens aos prepostos, sub-generais que comandavam os cinco esquadrões do exército. As tropas, fortemente armadas, foram distribuídas por toda a muralha que defendia a cidade, numa extensão de cinco quilômetros. Antes do meio-dia, o esquema de defesa da cidade de Katna estava montado e a estratégia de defesa equacionada.

Katna é a capital do pequeno reino de mesmo nome, situada na grande planície de El Furath. É um dos pequenos reinados que existem na região a oeste do rio do mesmo nome (hoje conhecido como Eufrates). Não é importante nem pela sua extensão, nem por cerca de vinte povoados, vilarejos e pequenas cidades. Sua importância está na localização. É o cruzamento do muitas rotas comerciais que partem do território dos hititas, ao norte, do Reino de Mitani e da Assíria, a leste, da Babilônia, a sudeste e do Egito, muito mais ao sul.

A oeste, distante apenas poucos quilômetros, está o mar. Biblos e Ugarit, dominados por Katna, são os melhores portos da costa, por onde os navios descarregam produtos de Tróia, Argos, Creta, Chipre e terras mais além. E levam cedro, especiarias e sedas vindos do distante oriente. Ferro, estanho, prata e ouro extraídos das minas da Babilônia passam por Katna em direção aos portos. Pérolas, pedras preciosas e semipreciosas, marfim, lápis-lazúli, conchas exóticas, tudo é comerciado na cidade, mais propriamente um grande empório, um próspero centro de comércio, que floresceu durante mais de três séculos, há mais de 3000 mil anos.

Hábeis comerciantes, os habitantes de Katna não prezam as lides marciais. O exército de cerca de 20.000 homens é constituído, quase que em sua maioria de estrangeiros. Não desprezam, entretanto, a segurança da capital, dos portos e das pequenas cidades espalhadas pela região que constituem o reinado de Katna. Por meio de tratados e alianças com os poderosos vizinhos de norte, sul e leste, uma convivência pacífica foi estabelecida e proporcionam tranqüilidade para a prática do comércio, há diversos séculos.

O rei de Katna era também o líder espiritual, o chefe supremo dos sacerdotes de uma religião cuja base era o culto aos ancestrais. Sem muitas complicações teológicas nem rivalidades clericais, a prática religiosa simplificava-se e era praticada por todos os habitantes do reinado. Baseava-se exclusivamente na lembrança, homenagem e orações aos ancestrais falecidos. A comunicação diária com os mortos era feita em cada família, por preces espontâneas. A visita aos templos não era obrigatória, mas os fiéis tratavam de permanecer, por algum tempo, em orações e meditações nos lugares consagrados.

Por ocasião da Lua Nova — o 29o. dia do ciclo da lua — celebrava-se a cerimônia do Kispum. Nesse dia, o mundo dos vivos e o dos mortos se aproximavam O filho mais velho dirigia a cerimônia, durante a qual cada família lembrava seus antepassados por meio de oferendas de comida e bebida aos ancestrais. Nesse banquete havia agradecimentos e pedidos de bênçãos. A crença era de que a lembrança dos mortos, com oferendas de comidas e bebidas, deixava os espíritos felizes e trazia boa sorte.

Na noite sem lua, em que milhares de pontos luminosos brilham no céu de azul-negro, os soldados permanecem em alerta. No decorrer dos últimos tempos, as rivalidades entres os grandes reinos ao redor do pequeno reino começaram a dificultar a vida dos cidadãos de Katna. Escaramuças com os hitidas, ao norte, eram freqüentes. Os mitanis, a leste, também se mostravam inquietos. Os egípcios, ao sul, atravessando o Sinai, estabeleceram acampamentos militares nas terras dos cananitas e dos hebreus. Até mesmo a Babilônia, situada entre rios colossais, no distante sudeste, enviara soldados para as planícies do deserto. Todos os grandes impérios estavam desejosos de invadir Katna, controlar a Síria, vasta e rica região ao sul de Katna, e os portos por onde passa a riqueza vinda do oriente.

Os tratados e acordos de paz foram pouco a pouco sendo desprezados. E agindo como que numa aliança formidável, as forças hititas, egípcias, babilônicas e mitanitas se dirigiam, ao mesmo tempo, para Katna.

Na noite de Lua Nova, enquanto os soldados vigiam, as famílias se reuniam na semi-escuridão para fazer a refeição ritualística, o banquete com os mortos, na segurança do lar.No interior do palácio, o rei Idanda se prepara para cumprir a função de filho mais velho. Para a cerimônia real, existem câmaras especiais, cavadas sob o palácio real, onde ao rei e seus auxiliares imediatos realizam o ritual, e que são, ao mesmo tempo, criptas para os restos mortais da realeza de Katna.

Com roupagens solenes ricamente ornamentadas, o rei lidera a procissão de crentes, num séqüito de quase cem pessoas. . Atrás da sala do trono abre-se uma porta secreta que dá acesso a um longo corredor descendente. Ao lado do rei, dois acólitos carregam tochas embebidas em óleo negro, abundante na região. A fuligem causada por milhares de procissões iguais a esta escurece paredes e tetos do corredor, intensificando o aspecto macabro do local.. O corredor termina numa espécie de poço, cuja descida só é possível pelas escadas de madeira, encostadas sobre paredes verticais.

A solenidade da procissão bem como as dificuldades do caminho retardam a caminhada. Ao chegar à antecâmara, o rei aguarda que todos desçam a escada. Os acompanhantes se espremem no recinto que, sem ser pequeno, torna-se exíguo para a pequena multidão.Ali, sob chão do palácio real, o tempo parece parar. Enquanto na cidade a madrugada avança, no santificado recinto ninguém percebe o caminhar das horas. Um silêncio sepulcral paira sobre os presentes. Quando todos estão reunidos, o rei abre, solenemente, a porta que acessa a câmara principal. Em seguida, entra no recinto sagrado.

O ataque feroz das tropas hititas, ao norte, não encontra a resistência prometida pelo Rei Al-Sukne, que se encontra a oeste. Um exército de mais de 50 mil homens, armados de lanças e espadas de bronze, combatendo a pé ou a partir de rápidos veículos de duas rodas, arrasa as vilas e pequenas cidades. A fumaça de milhares de incêndios ateados pelos soldados nos campos e fazenda é visível ao longe. Na retaguarda deste fenomenal exército, algumas novidades bélicas estão a caminho, para derrubar fortins e fortalezas: aríetes sobre rodas, batalhões de arqueiros com flechas incendiárias e resistentes escadas de cedro.

Obedecendo as ordens do rei Idanda, os soldados permanecem vigilantes nas muralhas de Katne. Imobilizados, assistem à chegada dos velozes esquadrões do norte. Ao mesmo tempo, como que sincronizadas por uma força desconhecida, as tropas egípcias deslocam-se do sul. Igualmente formidáveis, os batalhões que formam o poderoso exército do faraó vêm arrasando tudo o que se lhe antepõe. As técnicas de combate e as armas dos diferentes exércitos são semelhantes.

As forças do rei Al-Sukne nada representa perante o avassalador exército de mitanitas e babilônicos, vindos do leste. Esta coligação, composta de mais de 60 mil homens, com equipamentos mais leves, mas nem por isso menos eficazes, chega a Katne ao amanhecer do mais terrível dia do reinado do Rei Idanda.

O banquete real se estende pela madrugada, embora ali na cripta sagrada ninguém se dê conta do tempo. Não existe altar, nem mesas ou bancos. Há apenas um rústico trono de pedras para o rei Após as orações, os agradecimentos, os pedidos, todos se agacham para o banquete. Ajudantes dos sacerdotes se incubem de distribuir a comida, à fraca luz dos archotes. O banquete é composto de bolos de trigo, carne de carneiro cozida e tâmaras. Ao mesmo tempo em que servem, vão recolhendo os ossos, que são depositados em outra câmara, mais ao fundo. As enormes pilhas de ossos são atestado dos milhares de banquetes ritualísticos ali realizados.

Ao final da cerimônia preparam-se para deixar o recinto sagrado quando, lá em cima, na cidade, já o dia amanhece. As tropas que vêm do leste aproveitam o nascer do sol para atacar. É o momento propício, pois a luz do sol, incidindo diretamente sobre os olhos dos soldados da fortaleza, prejudicam, de certa forma, a visão da poderosa invasão.

A incipiente resistência das forças de Katna nada representa para os exércitos invasores. Sem tardança, soldados escalam a muralha, abrem brechas nas linhas dos defensores, e escancaram os portões para a entrada triunfal do grosso da tropa.

— Amado Rei, estou sentindo uma estranha vibração. — Em voz baixa, a esposa Safita comunica sua apreensão.

— Eu também. — Dirigindo-se aos portadores de archotes, determina: — Apressem-se. Pressinto um tremor de terra.

Um começo de pânico se estabelece entre os da comitiva real. Quando sobem pelas escadas que conduzem ao corredor que leva à superfície, sentem uma vibração mais intensa e as tochas se apagam, por falta de ar corrente. Gritos e gemidos se ouvem dentro do negrume interior.

Sim, é um tremor de terra, causado pelo furor das tropas invasoras, que, penetrando no palácio real, passam à pilhagem e à destruição de tudo o que vêm à frente. Decepcionados por não encontrarem o rei em nenhuma dependência do palácio, ateiam fogo nos tapetes e cortinas, ao mesmo tempo em que um poderoso aríete derruba colunas e vigas. O trono imperial, atrás do qual está a porta secreta de acesso ao subterrâneo, é reduzido a pedaços. As colunas que suportam o dossel de pedra sobre o trono vêm abaixo, obstruindo o acesso à porta secreta. Foi nesse momento que, cessada a passagem de ar para o corredor onde já se encontra o rei, a rainha e muitos nobres, as tochas se apagaram.

Para o rei e seu séqüito, encerrados na tumba selada por toneladas de destroços, a agonia da morte pela falta de ar e absoluta impossibilidade de serem resgatados foi o final macabro do último banquete com os venerados mortos.

Antonio Gobbo –

Belo Horizonte, 11-fevereiro-2005

Conto 326 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 23/07/2014
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