329-O TESOURO MALDITO

— Veja, doutora! Já dá pra ver que são degraus de uma escada.

— Sim, Felix, é mesmo uma escada. Os degraus estão gastos. Deve ser coisa pra mais de duzentos anos.

Berenice agacha-se e limpa, usando uma escova apropriada, as lajes de pedra sabão, meio enterradas no chão macio. À sua volta, meia dúzia de ajudantes, todos jovens estudantes estagiários, estão empenhados nas escavações do sítio arqueológico no morrete da Capela Velha. A região revelou-se um extraordinário local de achados de objetos e construções muito antigos.

A Capela Velha era tão somente algumas ruínas de uma pequena igreja, a base de um cruzeiro e um pátio de pedras irregulares. Nas primeiras escavações foram encontradas, sob as ruínas da modesta igrejinha, peças de metal — estanho, prata e ouro — e esculturas em pedra sabão. Cresceu o interesse científico pelo local. E ali estava agora a equipe, chefiada pela arqueóloga Berenice Campo Leão, trabalhando no rico sítio arqueológico.

Situado nas serrarias de Minas Gerais, no distrito de Mariana, o Morro da Pedra Lisa era uma notável formação geológica: uma pedra no formato de um ovo, no topo da montanha, num equilíbrio aparentemente impossível, se destacava no horizonte. Sob a sombra da imensa mole de granítica, as ruínas jaziam escondidas pelas árvores que cresciam, enfezadas, ao seu redor..

Após a capina e o desbaste das árvores, o esqueleto da capela se destacou, bem como o cruzeiro, de haste de metal enferrujado e braços de madeira, firme em seu pedestal de pedra. Uma portentosa gameleira lançara raízes nos braços de madeira, com os quais se confundia.

— Vamos, vamos limpar esta área, aqui tem muita coisa interessante. — Berenice determina a dois rapazes que ajudem Felix na escavação.

A “doutora” Berenice (ela não gosta de ser chamada assim) é uma profissional decidida e capaz. De estatura mediana, magra, tem uma energia extraordinária. Os cabelo pretos, longos, caem pelo ombros. Morena, os olhos negros são vivos e nada escapa à sua atenção. O rosto bem feito, oval. A boca, sempre sorrindo, exibe alvos dentes. É bonita, sim, e os homens e mulheres a admiram e a respeitam. Tem experiência: já escavou terrenos no Oriente Médio, nas terras dos Incas e, no Arizona, fez descobertas importante em Sedona e Palo Alto.

Domingo é dia de descanso. O pessoal da equipe aproveita para vagar pela cidade, explorando os diversos estabelecimentos onde artefatos artesanais são vendidos. Berenice, entretanto, curiosa, incansável, parte sozinha para explorações particulares. Neste trabalho, está muito intrigada com as grutas que existem a oeste da Pedra Lisa. Já entrou em algumas. São formações naturais na encosta da montanha, mas em duas percebeu trabalhos de escavação, feitos para aprofundar ou alargar a caverna. Trabalho feito há muitos anos, talvez cem anos ou mais.

Naquela manhã de abril, dirigiu-se,m resoluta e sozinha, à região das grutas. Na cidade corriam lendas e histórias, segundo as quais o local era maldito, freqüentado por almas do outro mundo, fantasmas e mulas-sem-cabeça.

Quanto mais mistério, mais coisa interessante existe. — Pensava a moça enquanto subia pela encosta.

Escolhe a terceira caverna, partir de um enorme pequizeiro, para visitar. Já passara por ali. As cavernas ficam escondidas pela vegetação de capim alto,arbustos mirrados e árvores de troncos e galhos retorcidos. A paisagem lembra à arqueóloga as antigas gravuras de Gustavo Doré de cenas dantescas.

Afastando as folhas do capim-navalha, abaixando-se para evitar os galhos nodosos da árvores retorcidas, escorregando sobre chão de pedregulhos, ela consegue entrar na gruta. A vegetação que esconde a entrada, esconde também a claridade, e Berenice acende a lanterna. As paredes erguem-se à altura de uns dois metros e são irregulares. Saliências constituídas de arestas afiadas que machucam ao menor raspão. Pontas de cristais fulgem à luz da lanterna. Berenice entra com cuidado. Dez, vinte, trinta passos, ela vai automaticamente contando, num hábito profissional, avaliando a distância percorrida. O chão da caverna é diferente das paredes, parece ter sido aplainado, por ferramentas ou pela passagem de muitos pés humanos ou patas de animais. Morcegos, poucos, dependuram-se no teto. A partir de 32 passadas, as paredes se modificam: ficam lisas e parecem ter sido escavadas. A altura da gruta diminui. Entretanto, ainda é suficiente para o caminhar ereto da arqueóloga. A escavação (agora, Berenice tem certeza) segue quase que reta, aprofundando-se na montanha. De repente, o facho de luz ilumina uma escora de madeira: três paus roliços,dois enterrados no chão, suportam um terceiro, uma viga.

É um portal! Então isto aqui é uma mina! A curiosidade aguçada faz com que a moça apresse o passo. O caminho é fácil. E após alguns passos decididos, desemboca num salão: largo, aparentemente redondo, e da mesma altura da caverna. Percorre, com o potente facho de luz, as extremidades do local. Uma exclamação de surpresa irrompe de sua garganta, ante o faiscar dourado dos objetos amontoados e espalhados pelo recinto. Puxa vida! É o esconderijo de um tesouro!

Varre o recinto com a luz da lanterna: dois montes de objetos dourados quase alcançam o teto. Num dos lados, encostadas na parede, dezenas de bruacas, recipientes de couro usados por tropeiros de antanho. Ela se aproxima. Examina o conteúdo das bruacas, aparentemente cheios de pedras ou cascalho. Maravilha-se com a constatação: São pepitas de ouro! Freneticamente, corre a luz para o outro lado. Uma caixa enorme com tampa. Uma arca! Aproxima-se da caixa, que em quase um metro de altura. Está trancada. Que cadeado enorme! Deve ter pelo menos duzentos anos!

Na tentativa de abrir a tampa, esta se desfaz, completamente apodrecida e roída por cupins. Com cuidado, afasta os detritos da tampa, e se deslumbra com o eu vê: Mas, é um tesouro das mil-e-uma noites ! Diamantes, topázios, pedras preciosas de todos os tipos. E tudo de excelente lapidação! — Afasta as pedras que estão por cima. Mergulha a mão na pedraria e nas jóias, braceletes,colares, adereços ricamente incrustados de pedras preciosas. Um pensamento fugaz atravessa-lhe a mente. Não é possível. Isto não é real. Devo estar sonhando! Logo-logo vou acordar. Não resiste ao impulso, pega um anel de ouro com diamante fulgurante e o introduz no dedo.

Dirige a luz para o fundo do salão. Um vão escuro indica que a caverna continua. Afoita, caminha resoluta naquela direção. No terceiro passo, não encontra a terra firme. Um susto, um grito, a lanterna escapa de suas mãos, uma escuridão profunda e o baque no fundo do poço. A arqueóloga desmaia.

Sentados sobre as malas de couro cru, cheias de pepitas de ouro, os dois homens descansam. Um archote, fincado numa reentrância da parede da gruta, ilumina o ambiente. São tipos rudes e pela indumentária, parecem surgidos de tempos coloniais. Os chapéus de couro, de aba larga, escondem as feições malévolas. Usam gibões, casacos de couro cru e botas altas, até os joelhos. Na cinturas, largas guaiacas, de onde pendem facões, estojos de garruchas e punhais. Parece que conversam, mas o que falam é inaudível. Gesticulam muito. Dois montes de objetos dourados, um de cada lado do imenso salão subterrâneo, dão mostras de que já dividiram parte do tesouro. A cena se desenrola como num filme silencioso e em branco-e-preto. Um dos homens levanta-se e se dirige para uma grande caixa de madeira, cuja tampa está aberta. Seu olhar de cobiça e avidez reflete, à luz do archote, o brilho das gemas, pedras preciosas, jóias. Passa mão por sobre a pedraria, como que afagando ou apoderando-se do tesouro. O comparsa levanta-se e aproxima, ameaçadoramente, por trás.

Berenice acorda do seu desmaio. Tateia e, na escuridão total, suas mãos alcançam as paredes do que parece ser um poço, uma escavação circular. Sente-se muito mal: a perna dói, está fraturada. O peito arde ao respirar. Os braços estão escalavrados, ao raspar pela parede áspera, na queda. Arrasta-se ao redor do poço estreito, examinando o local. Encontra uma fenda, de meio metro de largura, no máximo, que sobe. Onde vai dar esta fenda? — Pergunta-se a moça. — De qualquer forma, é a única saída. Sempre se arrastando, enfiando as unhas no solo duro, centímetro a centímetro, sobe a estreita rampa. As mãos estão esfoladas e os dedos, sangrando. Tenta tirar o anel que colocara no dedo anular da mão esquerda. Inutilmente: está incrustado no dedo inchado. As dores são muitas: a perna quebrada, o corpo moído, a cabeça latejando. A subida parece durar uma eternidade. Pára diversas vezes para tomar fôlego e descansar.

Alcança, finalmente, a borda do poço. A total escuridão acrescenta mais terror à situação. Tenho de sair daqui, custe o que custar. Ainda bem que o chão da caverna é liso e plano. Seguindo sua intuição, espécie de sexto sentido, uma aguçada noção de direção, arrasta-se na direção em que, tem certeza, encontra-se a saída do salão, para a caverna e o exterior. Esbarra nos objetos de metal de uma das pilhas do tesouro. Está exausta. A boca arde de sede e com um gosto ruim de sangue. Tenho de sair...Tenho de sair...sair...

Tateando ao rés do chão, suas mãos tocam o que parece ser um osso. Assustada, avança a mão e, horrorizada, apalpa mais ossos. É um esqueleto! Meu Deus, que lugar pavoroso! A dor, a fraqueza e o terror assumem o comando de seu corpo e sua mente. Desmaia de novo.

O homem avança por trás do companheiro, elevando a mão que porta um punhal. A luz bruxuleia, e os movimentos, em câmara lenta, constituem cenas de um pesadelo terrível. O braço desce, mas o alvo se esquiva, ao mesmo tempo em que contra-ataca. Os dois se abraçam, num abraço feroz, e rolam pelo chão. Gritos, roncos e gemido talvez saiam de suas gargantas, mas ninguém está ali para ouví-los. Na certa, brigam pela posse exclusiva do tesouro. Agora, as lâminas de punhais brilham nas mãos de ambos os contendores. Apunhalam-se mutuamente, nas costas, nos ombros, cabeças, rostos. Após alguns minutos de briga, as roupas estão ensopadas de sangue e os lutadores são figuras rubras que não se separam.

Não há vencedores do feroz combate. Separam-se a custo. Um deles está inerte, deitado de bruços, o cabo do punhal aparecendo, cravado que está nas costas. O outro ainda se movimenta. Letargicamente. Arrasta-se, sem saber aonde vai. Aproxima-se da borda do poço.O pesadelo se torna tão real que os sons se tornam audíveis. Da garganta do bandido sobrevivente vem um gorgolejo, um som cavo, áspero. Deitado de bruços, a cabeça pende sobre a borda do poço. Então, um grito terrível, mortal, sai da boca do moribundo, as palavras reverberando nas pelas paredes do poço, ampliadas e intensificadas:

— Maldição! Maldição! Maldição! Três vezes e sempre maldito será quem descobrir e fizer uso deste tesouro. Maldito. Maldi... — A cabeça tomba. Foram suas últimas palavras.

A paciente abre os olhos para a luminosidade intensa do quarto de um hospital. A perna engessada. Curativos e bandagens por todo o corpo. Cheiro de medicamentos, de álcool e iodo, misturados. A moça mal pode movimentar a cabeça enfaixada. Não sente dores, mas está muito fraca e não se lembra muito bem dos últimos eventos. As mãos estão livres. Pode movimentá-las. Observa o estranho anel no dedo da mão esquerda. Estranho. Ela jamais usara anéis, nem mesmo o de formatura. Tenta retirá-lo, mas não consegue. Tem a sensação de um dejà-vu. A cena está se repetindo. Onde? Como? Este anel não me pertence.

O esforço vai re-estabelecendo, pouco a pouco, a lembrança dos acontecimentos mais recentes. A gruta, o tesouro, a queda, os pesadelos...visões ou realidade? Quanto tempo se passou? Um dia, uma semana?

No esforço supremo de se lembrar e colocar em ordem a seqüência dos fatos, chega ao ponto em que tateou o esqueleto. A realidade intrinsecamente misturada com as visões, os pesadelos. De repente, num relâmpago chegam todas as lembranças, que se encaixam devidamente.

Alguém bate à porta. Aberta, por ela entra Alberto, seu jovial namorado. Beija-a carinhosamente na testa.

— Você está bem, querida?

— Como você vê... — um sorriso aflora aos lábios da moça.

— Mas o que aconteceu com você?

— Alberto...— pergunta com cuidado— onde fui encontrada?

— Você estava desmaiada na beira da rodovia.

Bem longe da entrada secreta da caverna — ela pensa. Sutilmente, esconde a mão esquerda sob o lençol.

— Você levou uma baita duma queda. Como foi? — o rapaz insiste nas perguntas.

— Sei lá. Parece que andei caindo de algum barranco. Ah, sim, me lembro agora. Estava no topo da Pedra Pelada, você sabe. Escorregadia como sabão. Caí de lá. Mas, vamos esquecer isto. Agora quero um beijo de você.

Alberto se aproxima e beija a namorada. Sente o calor dos lábios unidos num beijo apaixonado que sela o silêncio da arqueóloga sobre o tesouro maldito na caverna secreta.

ANTONIO GOBBO —

BELO HORIONTE, 20 / 02 / 2005

CONTO # 329 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/07/2014
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