O que há de errado com o Sr Silva?

O que há de errado com o Sr Silva? É o que me pergunto desde a primeira vez que o vi. Ele entrou em nosso departamento segurando uma pasta em uma das mãos e na outra uma velha bengala. Não chegou a cumprimentar ninguém. Limitou-se a um rápido sorriso forçado enquanto se ajeitava no seu novo lugar de trabalho.

Trabalhávamos no setor de diagramação de uma revista de renome nacional. Em três anos de serviço árduo não consegui nenhuma promoção, porém o Sr Silva tinha começado no arquivo e em menos de um ano subiu ao grande escalão. Possuía até uma coluna semanal na revista. Todos conheciam sua trajetória que servia de inspiração e agora o pobre homem voltou a trabalhar na diagramação. Os motivos? Ninguém nunca comentou ou ouviu falar. Simplesmente naquela tarde de sexta-feira, já quase em fim de expediente, ele entrou com sua pasta e bengala trazendo consigo um ar de mistério.

***

Na segunda-feira seguinte cheguei às sete em ponto. Após um rápido e cordial bom dia para o porteiro entrei. A umas duas mesas distante da minha estava ele: o Sr Silva. Erámos os únicos da sala. Em geral os outros chegavam as oito, porém como de costume cheguei cedo. Ele lançou-me um olhar nada amistoso. Até tentei um bom dia, mas nada. Nenhuma resposta. Apenas abaixou a cabeça e começou a digitar no computador.

No nosso setor trabalhavam quinze pessoas, sendo quatro estagiários. Cada um ficava responsável por uma seção da revista. E o Sr Silva? Não sei dizer o que fazia. Das sete até a hora do almoço ele ficava digitando, parando apenas para ir ao banheiro ou tomar água. Também ninguém se importou com o novo integrante de nosso setor.

Aquele ser estranho me deixou intrigado. A solidão nele era palpável. Acho que isso foi o motivo de tentar fazer amizade com ele. Várias tentativas de conversas falharam. Ele não respondia com palavras apenas com gestos vazios. Lembro-me que estávamos no banheiro e disse-lhe que tinha lido as colunas de sua autoria publicadas na revista. Ele me olhou fixamente enquanto lavava as mãos. Quase senti a vibração de suas cordas vocais. Ergueu a mão e com o dedo em riste quase pude ouvir o sussurro de sua voz desconhecida para meus tímpanos.

Recompôs-se e saiu apressadamente de lá. Não entendi nada. Quem entenderia aquele homem? O que fazer? Deixar pra lá. Seguir a vida. E que ele se afogue na própria solidão. Estava eu com raiva? Não sabia o que sentia, quiçá desapontamento.

Ao fim do expediente, já no estacionamento, acendi um cigarro. Depois de uma longa tragada deixei a fumaça ganhar forma no ar. Fechei os olhos por um instante. A ideia me veio como uma mão apalpando meu couro cabeludo. Vou visitá-lo. Sim. Talvez a timidez se quebre com uma boa garrafa de vinho. Passei no supermercado e escolhi o mais caro. E segui então para a casa do Sr Silva.

***

Desci em frente ao prédio. O ônibus seguiu seu trajeto sumindo numa esquina a frente. Com a garrafa de vinho fui em direção ao edifício. Subi as escadas, o elevador estava quebrado. Ele morava no quinto andar. Apartamento 53. Bati a porta. Nada. Levei a orelha direita de encontro à madeira. Reinava um silêncio ártico. Peguei na maçaneta e percebi que a porta estava aberta.

Com cuidado de ladrão que entra em lugar desconhecido adentrei. Na sala, sentado no sofá olhando para a televisão deligada estava o Sr Silva.

- Eu o estava esperando – a voz parecia vir de um mundo longínquo, parei perplexo. Soltei um sorriso em seguida ao perceber que a voz dele não era nada parecida com a que imaginava em minha mente – sabia que viria.

- Bem, trouxe vinho – estendi a garrafa como se aquele gesto quebrasse a aura de estranheza que caia sobre o cômodo – tem taças?

Ele se encaminhou para a cozinha, fui atrás com certo receio diga-se. Deixando a bengala de lado ele pegou dois copos no armário.

- Taças não tenho, mas isso deve servir – disse enchendo os copos.

Depois de um gole demorado, ele me olhou nos olhos. Estava mudado. O que teria ocorrido com aquele ser estranho? Desde que veio trabalhar no departamento nunca havia dito uma palavra, e agora me tratava como se fosse seu amigo de longa data.

- Você tem perguntas, eu sei. Mas adianto que hoje todas serão respondidas, acompanhe-me.

Não sei por que fiquei. Talvez a necessidade humana de encontrar a verdade para aquele mistério. Segui-o. Em frente à janela que dava para a rua ele parou. Voltou os calcanhares em minha direção.

- Não posso mudar o que fiz tampouco me perdoar. Por isso meu amigo adeus.

Ele abriu a janela rapidamente e se lançou pela mesma. Tentei em vão agarrá-lo. De braços abertos parecia pássaro novo pulando pela primeira vez do ninho. Podia ver o sorriso em sua face. E quando sua massa cinzenta se espalhou pela rua eu perdi a conexão com ele. E milhares de imagens surraram meu cérebro.

***

Apaguei por algumas semanas. Então acordei aqui. Tudo parecia ter sido um sonho. Mas não importava mais, pois eu te vi. Seus cabelos loiros ao sol daquele domingo. Estava tão linda. Não me lembro o que foi que o Sr Silva fez para leva-lo ao suicídio. Isso não me pertencia mais. E a cada dia que passo com você aqui esqueço aos poucos o que fui. E depois de tanto tempo criei coragem para te perguntar: quer ser minha amiga?

- Desculpe, mas meu pai disse que não posso mais falar com você. Meu novo psicólogo acha que isso vai me ajudar.

- Mas...

- Está na hora Artur de você seguir em frente. Eu também preciso. Então adeus.

***

A jovem garota de longos cabelos dourados levanta-se. Caminha hesitante até o lixeiro e deposita uma lata de refrigerante. Deixa um último olhar para o banco vazio.

Uma página de jornal velho viaja com ajuda do vento. Repentinamente paira sobre o banco como se alguém estivesse a lê-la. Então retoma seu caminho. Voa alto. Mais alto. Em negrito podia se ver a manchete: Brilhante redator se suicida depois de matar a esposa e filha.



Tema: Amigo imaginário

 
Sr Sillva
Enviado por Sr Sillva em 31/07/2014
Reeditado em 06/08/2014
Código do texto: T4904625
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