Guarde Sua Curiosidade

O saber trás medo.

O medo trás horror.

Por isso, guarde sua curiosidade...

Gina acordou assustada. Teve a impressão de ter mais alguém com ela no quarto. Seu marido Helder dormia tranquilo. A casa estava no mais completo silêncio.

Virando-se para o lado, ela fechou os olhos com força, aliviada por supostamente estar enganada a respeito de seu julgamento.

A casa era ampla e constituía um sobrado. Abaixo, ficavam sala, cozinha e garagem. Na parte de cima, o quarto do bebê que falecera ainda prematuro, o banheiro, e o quarto de casal no qual Gina e Helder passavam suas noites.

Desde a morte da criança o quarto não fora mexido. Helder começara a beber e ficava deprimido sempre que lembrava da filha. Sabrina teria agora dois anos de idade e o quarto ficava lá: trancado, como se esperasse pela criança que nunca veio.

E foi dali, no fim do corredor que Gina escutou um barulho. Sua mente estava entorpecida pelo sono quando aparentemente escutou o choro de um bebê. Assustada, acendeu a luz sobre sua cama e olhou no relógio: 01:35. O horário era o mesmo. A data era a mesma de dois anos atrás. E o choro... O choro que Gina ouvira também era o mesmo.

Sabrina tinha nascido.

Em desespero, Gina tomou um copo d’agua e esfregou os ouvidos na tentativa de fazer o barulho cessar. O som cada vez mais alto emanava angústia e dor. A mesma dor que matou sua filha aos 05 minutos de vida.

Gina esfregou os olhos e antes que pudesse abri-los contemplou o rosto da filha. Uma face roxa exibia um sorriso sem dentes e olhos negros substituíam o azul que outrora estampava aquele rosto.

Gina gritou.

Helder acordou irritado. Sentia que a mulher estava pior do que ele.

Ela não bebia... Não fumava... Não tinha no que descontar sua raiva. Já ele... Ele tinha muito em quem descontar.

Gina, ciente de seu grito olhou o marido assustada. Sabia do erro que cometera, mas era tarde demais. Seguida de um “cala a boca”, a mão do marido voou em direção ao seu rosto.

A força do tapa a fez cair da cama, enquanto que o companheiro se levantou e saiu do quarto:

-Vou dormir na sala.

Gina ficou ali. Sentada e chorando, sem compreender porque sua vida mudara tanto.

Do casamento feliz a morte da filha. A conversão de um homem bom em um animal.

A luz ficou acesa, e ali mesmo no chão do quarto, Gina adormeceu.

Ela acordou novamente com o som de choro.

O choro de dor e desespero agora era diferente. Era outro, e ainda assim, vinha do quarto do bebê.

Assustada, ela seguiu o barulho e contemplou:

A criança estava viva. Dentro do berço e viva.

Ela chorava com fome e Gina não hesitou. Deu logo de mamar.

Sorrindo, ela cantava uma canção de ninar, e pela primeira vez desde que perdera a filha, seu mundo pareceu perfeito.

Os dias se passaram até a policia chegar. Helder fora levado a um sanatório conhecido como “Casa Santa Ana”, e a policia levava um corpo putrefato após escavar uma parte do quintal. Em mãos, um oficial segurava a carta que dera a localização do corpo.

As linhas trêmulas exibiam uma confusa confissão:

“Não aguentei. Ela me deixou pirado e não aguentei. Gina... Eu te amo mas não aguentei.

Você ali... todas as noites me lembrando de nossa filha. A filha que você matou. A filha que você não conseguiu criar. A filha que você viu nascer mas não foi capaz de permitir que vivesse.

Eu a desprezo por isso. Era sua responsabilidade mantê-la viva e você a matou.

Não me importa ao que os médicos acham quando eu tenho certeza de que a culpa de tudo isso é sua. Foi você quem me fez sofrer e agora é você quem vai pagar por isso.

Você me dizia sobre os choros da Sabrina e eu disse que não escutava. É mentira. Eu sempre ouvi os gritos de nossa filha vindos daquele quarto. E agora ouço sua voz entrando na minha cabeça. Toda a noite é a mesma coisa.

Você e essa maldita cantoria.

Será que não percebe que você é insana? Não notou que o choro de nossa filha é apenas fruto da nossa imaginação?

Quero você morta. Assim como matou nossa filha, quero que você se junte a ela.

Eu já estou morto. Sempre estive desde que ela nasceu. Mas você não. Você tentou viver.

E eu... Eu descontei em bebidas... Cigarros... E em você. Por isso, me perdoe... Mas foi necessário.

Sei que a polícia vai ler esta carta. Ela está enterrada no quintal. Achem e a enterrem com a filha para que tenha paz.

Quanto a mim, sou um covarde. Um vil hipócrita que não teve coragem de tirar a própria vida. Mas eu achei... Achei que depois que a matasse que os choros cessariam... Mas agora tudo o que posso ouvir é sua voz em minha cabeça.

Sua maldita voz, e aquela maldita canção de ninar.

Tenham respeito e não entrem naquele quarto. O quarto de bebe foi o que me condenou. Ainda me lembro dela, morta, segurando nossa filha morta e me convidando a me juntar a elas.

Mas não o fiz. Quero morrer longe daqui e, por favor... Não entrem naquele quarto. Minha curiosidade me condenou. Se amam suas almas... Por favor... Não cometam o mesmo erro que eu”.

Helder T. Syopkt

Bonilha
Enviado por Bonilha em 18/08/2014
Reeditado em 18/08/2014
Código do texto: T4927386
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