A Multiplicação Espontânea

O contador Bezerra foi seguramente o último a perceber que a situação em sua casa estava complicada. Primeiro foram suas duas filhas que sem aviso nem um bilhete de despedida abandonaram o lar paterno logo às vésperas do Natal. A esposa já era ex fazia um bom par de anos, mas continuavam a se tratar bem por convenção. Os meninos mais novos relutaram um pouco mais, porém não deixaram de seguir os passos da mãe e das irmãs. No Ano-Novo, ele já estava sozinho.

Digo sozinho, mas minto, porque ele pouquíssimo tempo passava em casa, ao menos sóbrio. A verdade é que quase não havia mais espaço para gente em seu humilde lar. O contador Bezerra, a propósito, demorou um bom tempo para perceber a falta de sua família, simplesmente porque fazia mais tempo ainda que pouco dava para enxergarem uns aos outros devido ao exacerbado acúmulo de livros, por toda a parte e por todos os cômodos.

O contador Bezerra sempre se considerou um intelectual, um amante da boa literatura, desde Asimov até o mais recente fenômeno literário retumbante, Cinquenta Bons de Chifre. A família sempre o apoiara e de certa forma se beneficiava, até, das posses do contador, muitas interessantíssimas.

O problema começou quando eles decidiram se multiplicar.

Não avisaram ninguém, nem pediram licença. Sim, senhores, os livros, acostumados a ser comprados de cinco em cinco, jogados sobre a mesa e empilhados às pressas, pois o contador não tinha tanto tempo assim para ler as centenas de obras que acumulava quase compulsivamente, decidiram reproduzir-se, em uma promiscuidade desavergonhada. Entendam. O amor do nosso contador pelos livros atingia um nível platônico, obsessivo, quando as obrigações de um homem (trabalho e depois cerveja) o impediam de apreciar em sua totalidade os magníficos volumes que atochavam sua nobre casa. Então eles começaram a ficar carentes.

Um sobre o outro, página após página, em sua solidão empoeirada eles começaram a trocar suas experiências adquiridas aqui e ali. Um tinha anos de sebo, outro viera do outro lado do Atlântico, e mais outro ainda nem havia saído do plástico. Um bebezinho. Mesmo assim, esse intercâmbio começou a produzir frutos, frutos literários em papel couchê de primeiríssima qualidade.

E que foram se empilhando espontaneamente, ultrapassando os limites das estantes e se instalando onde lhes parecesse mais confortável. Debaixo dos lençóis, sobre os travesseiros, nas gavetas de calcinhas das meninas. Quando desalojaram os rolos de papel higiênico, a família já estava de tal forma reduzida que os livros começaram a se parabenizar pela batalha vencida.

Com que então, eles haviam dominado até o espaço sobre o tampo da privada. Ninguém poderia dar a descarga por receio de molhá-los. A mesma situação se repetia na cozinha, na pia de louça, no tanque de lavar a roupa. Uma lástima, uma bibliofilia devoradora de espaço. E cada vez mais faminta.

O contador Bezerra só notou a diferença quando a empregada enfim desistiu de aparecer para tentar ordenar aquele caos e mandou-lhe um torpedo cheio de erros ortográficos em que apresentava sua demissão. Aí as coisas passaram a se manifestar para o nosso contador.

Primeiro, passou uns bons quinze minutos amaldiçoando a pequena, xingando-a de nomes ofensivos, alguns dos quais lhe renderiam uns bons anos de cadeia se os livros fossem capazes de testemunhar contra ele na Justiça. Depois pensou melhor e percebeu que a bandida já fazia anos que só lhe dava despesas, e recusou-se a procurar outra. Não faziam a menor falta, essas pequenas.

Para se distrair e provar que estava muito bem sozinho, decidiu procurar uma passagem especial de Raymond Carver, em quem estava se inspirando para escrever seu interminável livro de contos. Foi aí que reparou em algo estranho, pela primeiríssima vez.

A única coisa que lhe interessava na casa era a (des)organização de seus livros e a sua eterna e imprescindível presença dentro daquelas paredes, mesmo a daqueles que nunca chegava a abrir. Orgulhava-se muito de ter se cercado de bons livros e tinha por eles o maior ciúme.

Então, o que era aquilo? Por que as prateleiras pareciam estar quase desmoronando sob o peso dos livros, arriscando amassar ou mesmo rasgar alguma daquelas preciosas páginas? O contador Bezerra amaldiçoou mais uma vez a falta de bom senso de sua (ex) criada e retirou, em pequenas pilhas, os volumes que sobrecarregavam as estantes. Naturalmente, procurou um espaço onde depositá-los, para poder continuar sua caça ao livro específico que estava buscando. Foi aí que o problema apareceu.

Com exceção do ponto em que estava de pé, da largura (redonda) exata para acomodá-lo, e um fino corredor sinuoso a suas costas, não havia lugar vazio no chão de seu modesto apartamento. O contador Bezerra suspirou, calorento, e afastou com os dedos a gola molhada de suor de seu pescoço bolachudo. Foi um alívio momentâneo, pois o tecido barato e artificial tornou a grudar-se em sua pele assim que o soltou. Era demais, precisava de um banho.

Foi obrigado a devolver os livros com que enchera as mãos à prateleira saturada, jurando voltar em poucos minutos para resolver aquele probleminha inconveniente. Mas um problema um pouco maior o aguardava.

As pilhas de livros que o cercavam chegavam agora quase ao teto, que lhe parecia mais distante de sua cabeça do que ele se lembrava. O que estava acontecendo? Só lhe restava um estreito caminho, entre os honoráveis amontoados de papel, para procurar a desejada porta do banheiro.

Livros são criaturinhas geniosas...

A habilidade de encontrar pares adequados para a reprodução não foi problema para os rebeldes livros do contador Bezerra. Eles não são tão exigentes como poderia parecer. Isto o deixou em uma situação bastante desfavorável. Ainda praguejando, ele tentou afastar de seu caminho uma pequena pilha já bastante promíscua que o fizera tropeçar. Mas os danados nem se mexeram.

Agora o nosso contador estava começando a se desesperar, e não sem motivo. Estava quente, ele tinha fome e queria tomar um banho, mas não conseguia sequer encontrar uma porta que o libertasse para o banheiro, a cozinha ou para o diabo que o levasse!

Tentou gritar por socorro. A única resposta foi o ronco onipresente de uma máquina qualquer que estava sempre ligada em uma obra vizinha, aparentemente interminável. Também podia ouvir o ruído macio dos carros esvoaçando pela avenida em frente ao prédio. Sentiu inveja, porque percebeu que também queria um pouco de ar fresco.

Em seu crescente desespero, entendeu loucamente que precisava se dirigir aos livros - sim, aos livros, pois haviam se tornado o seu único empecilho e companhia - a não ser que quisesse se enterrar ali até que os paleontólogos o encontrassem. O que se seguiu foi um aparente acesso de loucura (a não ser para nós, que acompanhamos seu trágico destino em silenciosa solidariedade).

Para qualquer lado que o pobre contador tentava voltar suas esperanças, um amontoado maligno de respeitáveis livros de capas grossas o encarava, como se o desafiassem a ler um por um antes de passar. Desse jeito seu sonhado banho não sairia antes do Natal!

- Com licença, pelo amor de Deus! Não é possível eu não encontrar o meu próprio banheiro, na minha própria casa!

Sim, meus caros comensais, não pensem que estou mangando de vocês. Tentem levar a sério; nosso contador dirigiu-se diretamente aos livros. E, acreditem, eles responderam.

- Sua? Esta casa é nossa! - riu-se um imenso dicionário de folhas frouxas, que devia estar desatualizado havia umas duas reformas ortográficas.

- O quê? - revoltado com a insolência, o contador Bezerra soltou um grito que ecoaria pelas paredes, se elas não estivessem imobilizadas por pilhas de papel. O pobre homem percebeu como sua voz soava enfraquecida, e pouco se surpreendeu de estar conversando com um dicionário.

- Recolha-se à sua insignificância, verme! - gritou um minidicionário de alemão, muito gorducho, sacudindo as folhas com lascívia.

- Verme! Verme! - um coro de livrinhos infantis repetiu alegremente os insultos, agitando para ele seus desenhos coloridos do meio.

- Mas o que é isso? - o contador Bezerra esbravejou, furioso, vermelho, quase apoplético - Calem a boca já! Saiam do meu caminho!

- Ele quer que a gente saia - choramingou um manual de autoajuda sobre conquistas amorosas. Era bastante sentimental e não reprimiu um soluço, ao que foi consolado por um bom policial de Conan Doyle.

- É elementar... Ele se sente oprimido.

- Oprimido! Oprimido! - esgoelavam-se os livretos de contos de fadas, que pareciam se multiplicar mais depressa que os outros.

- Parem de se reproduzir! Parem! - gritava o contador, tentando jogar longe os livros que conseguia alcançar, mas só conseguia afastá-los por alguns centímetros, e outros logo começavam a ocupar seus lugares.

- Não podemos... - outro manual de autoajuda tentou se desculpar, enquanto um chick-lit bem atrevido balançava as páginas no nariz do contador.

- Você é nosso pai! Papai! - um manual sobre criação de bebês já se adiantava para abraçá-lo.

- Papai! Papai! - os livros-crianças agarraram-se a esse mantra e atiraram-se sobre o pobre contador Bezerra, que esperneava.

Pilhas e mais pilhas de livros dissolutos continuavam a se amontoar, multiplicando-se cada vez mais desavergonhadamente. Após alguns dias, romperam as paredes do apartamento, e vários tijolos e nacos de massa, portas e janelas rolaram metros e metros até se espatifarem no chão. Mas os gritos e súplicas do contador Bezerra já haviam sido abafados muito tempo antes disso.

Virginia Barros
Enviado por Virginia Barros em 18/08/2014
Código do texto: T4927479
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