O Sorveteiro

O sorveteiro girou o botão do toca-fitas e os auto-falantes no teto exterior do furgão soaram uma melodia doce e agradável: uma versão em dó menor de “Dance Of The Sugarplum Fairy”. A canção percorreu as quadras arejadas do distrito, e um cão vadio - que descansava na sombra de um carvalho - levantou as orelhas.

Estacionou na esquina onde a doze e a treze se cruzavam. O sol de verão formava um círculo dourado no céu quase sem nuvens, castigando a terra com seu calor filisteu, ainda vestibular naquele início de dezembro. Estava tão quente que até mesmo o pavimento parecia suar, exilando vapores condensados e produzindo miragens no horizonte. A bulevar estava vazia. Nenhuma brisa soprava e os carvalhos amarelados - que ladeavam a rua - permaneciam imóveis, quase congelados em uma espécie de fotografia antiga.

Desceu do furgão e deslizou a porta lateral, revelando um alentador compartimento refrigerado. O vapor friolento subiu em contraste com o ar seco e abafado do lado de fora. O sorveteiro destampou - uma a uma - as caixas de isopor, deixando a mostra os variados sabores de sorvete numa alquimia de aromas de morango, baunilha, nozes e frutas campestres...

Enxugou o suor na testa com a manga da camisa. Ajeitou o chapéu embicado e contemplou as crianças irromperem de todos os cantos, como ratos que sentem cheiro de queijo fresco. Meninos e meninas, a maioria entre os seis e nove anos; mas também haviam algumas mais velhas, de dez, onze e doze; exibindo sorrisos largos e caminhando em saltos; alegres e coloridas, com as bolsas de moedas tintilando na direção do caminhão de sorvete.

- Venham a mim, todas as criancinhas... - disse o sorveteiro - porque delas é o reino dos céus!

A primeira, lembrou ao sorveteiro um porquinho gordo e rosado, mas com curiosos cabelos louros e andando sobre duas patas, no melhor estilo da revolução dos bichos. Ele queria chocolate, uma boa escolha. Chocolate acompanhado de Agente Laranja, o conhecido herbicida usado pelas tropas norte americanas para destruir florestas durante a guerra do Vietnã. Provavelmente, o menino gordinho morrerá de câncer antes dos vinte anos.

A segunda criança usava maria chiquinhas tortas e tinha sardas por todo o rosto. Com um sorriso banguela, ela pediu amêndoas. O sorveteiro piscou e sorriu. Amêndoas salpicadas com Fluorídrico, muito usado na indústria metalúrgica e na fabricação de Teflon, que absorvido pelo organismo, reage com o cálcio no corpo atingindo e destruindo os ossos.

O sorvete de morango sempre esteva no topo da lista dos mais vendidos. Todos gostam e aqueles eram morangos especiais. A receita simples incluía uma boa dose de arsênico que pode causar fortes convulsões, induzir coma e, por fim, matar; na pior das hipóteses (para o sorveteiro) seus clientes poderiam desenvolver câncer, diabetes e doenças cardíacas.

Um par de irmãos. Dois garotinhos negros, gêmeos, com não mais de oito anos: sorvete de baunilha com chumbo, cuja intoxicação pode causar uma série de sintomas, de diarreia a distúrbios neurológicos. Eles levaram um sorvete extra, e o sorveteiro desejou que fosse para a mãe grávida, assim (com um pouco de sorte) a criança poderia nascer com retardo mental...

Depois, uma mocinha de saia trançada que segurava carinhosamente um urso de pelúcia contra o peito. Comprou sorvete de milho. Ela esfregou uma pitada de creme amarelo com bacteriotoxinas na pseudo-boca do brinquedo. Se o ursinho fosse um ser humano, sofreria em duas ou três horas, uma desagradável aglomeração de ferro nas células sanguíneas, impedindo que elas transportem oxigênio pelo corpo e matando por asfixia.

Dez minutos depois, o sorveteiro - satisfeito - deslizou a porta lateral. Algumas crianças protestaram, mas já vendera o bastante naquele dia. No seu ramo de negócio, não existe tempo para acompanhamento pós-vendas. O esquema sempre foi negociar o produto, apenas. Saber o que vem depois, não é importante.

Desligou o toca fitas e deu partida no furgão. Os pneus cantaram levantando uma poeira fina e rodopiante. Pelo retrovisor, viu os pontinhos coloridos voltando para casa. Dobrou a esquina e partiu na direção do próximo distrito.

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NOTA:

Lembro-me bem do "carro do sorvete" que passava em minha rua, anos atrás. Ainda criança, ele me fascinava e recordo-me de quando meu pai negou-se a comprar um sorvete para mim. "Não conhecemos a procedência desse doce", ele dizia. Com base nessa lembrança, tive a ideia de criar um conto que desse razão ao que dizia meu velho. Espero que gostem, e não esqueça de avaliar essa história com um comentário!

Att;

Isaac Räja e Stevan Baddillo
Enviado por Isaac Räja em 18/08/2014
Reeditado em 19/08/2014
Código do texto: T4927539
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