Half-Dead(Metade mortos) Parte 1

A dor não parava, e a ferida começava a piorar. A pungência lancinante era ressaltada por uma vermelhidão da qual eu tinha certeza de que daquela vez não coagularia, pois não era sangue que estava ali.

Eu, como médico experiente, havia sido chamado para tentar investigar a infecção, mas tudo aconteceu tão depressa que toda equipe médica foi pega de surpresa.

O primeiro caso ocorreu a uma semana: Uma jovem de no máximo vinte e cinco anos chegou com fortíssimas convulsões. Os procedimentos de primeiros socorros foram feitos, posteriormente os de reanimação, mas a febre e os sangramentos internos somente pioravam. Por fim, ela acabou morrendo. Já na autópsia, após ser deixada cerca de doze horas em espera, o legista chegou para trabalhar e encontrou a gaveta vazia. Até hoje, não se sabe seu paradeiro.

Mais três pacientes chegaram depois dela, com sintomas similares e, inclusive, um deles fui eu quem pessoalmente atendi; uma garotinha de nome Michele, que passou rapidamente de fortes dores de cabeça a uma perda de atividade cerebral irreversível. Setenta por cento do cérebro comprometido, praticamente morta, com os neurônios apagados e sinais mais evidentes da delicada situação por fora do corpo.

Ela se contorcia, algo que evoluiu rapidamente a um quadro nunca antes visto pelos médicos do mais conceituado hospital de traumatologia belo horizontino.

Chamei o doutor Rafael para consultar o procedimento a ser tomado. Eu estava aflito, e ele por sua vez estava atônito.

-Walter, corre aqui! – Olhei para ele, que estava com sangue nas mãos, algo que eu já estava acostumado.

-Acho melhor VOCÊ vir aqui. – Gritei, mas meu grito saiu meio abafado por passos apressados de duas enfermeiras que passavam correndo.

Nesta hora, Maria José, uma médica e amiga, passou correndo, sem se importar comigo e com o doutor Rafael. Ambos estranhamos.

Michele gritou dentro da sala de exames. Os dois enfermeiros que me acompanhavam vieram ao meu encontro. Marina e André, os profissionais, tremiam diante da situação.

-Quarenta e dois graus de febre. Impossível! – Gritei.

Fui conferir. O doutor me seguiu, aflito.

-Desfibrilador. Rápido! – Olhei para Rafael, ainda esperançoso. Ele retribuiu o olhar, piedoso pela garotinha. Correu na sala ao lado para conferir algo que ele não me disse, e voltou mais rápido do que deveria. Eu vi quando conteve a enfermeira Joyce na porta, questionando algo que ela não soube responder.

Algo que a assustou e a fez colocar a mão na boca cheia de pavor. Saiu correndo.

Segundos depois, um grito estridente veio do lado direito do corredor. A energia falhou rapidamente. Gelei.

Os aparelhos baquearam um pouco, mas indicavam que Michele ainda lutava. Dei um pulo quando ela gritou fortemente, um estampido e um tiro ressoaram pelo hospital ao mesmo tempo. Outro tiro, e mais um. Uma enfermeira que eu não conhecia caiu na porta da sala onde estávamos. Gritava. Várias pessoas passaram correndo pela porta.

Girei a cabeça novamente e deparei-me com três rostos de olhos marejados, que me encaravam como se esperassem comandos. Senti uma gota salgada descer de meus olhos em direção ao suor que lambia minhas bochechas rosadas.

-Acho que, ao menos, deveríamos tentar salvá-la. – Apontei para a garota que convulsionava no catre.

Mais um choque com o desfibrilador, e desta vez foi ela quem pulou com a pancada, assustando a todos nós. O aparelho ao lado da maca bipou ainda mais uma última vez antes de zerar os batimentos cardíacos por completo.

-Precisamos salvá-la, vamos! – A essa altura, eu também tremia. Marina tropeçou no cabo de um dos aparelhos. Vi André ajuda-la a se recompor e recoloquei o plugue na tomada, porém, não ligou. Agora, a energia realmente havia acabado.

Decidimos, sem trocar palavras, que o melhor seria deixar a garota desfalecida no catre gelado. Sua vida perdida esvaiu-se em minhas mãos. Seu coração batera uma última vez, com minha mão em seu pulso recebendo o resto dessa energia vital.

Alguém puxou meu braço com força, de certa forma abrupta, e eu quase gritei de susto, mas estava tão absorto em meus pensamentos que nem tive reação eficiente. Era André, que me chamava atenção para a porta.

Lá, a mulher que, a uma semana, havia morrido. A que fugira da gaveta. A que eu mesmo vi com o corpo aberto, morta, morta e MORTA. Mas não, ou a morte havia tirado a tão desejada folga ou então a vida cansara-se de matar. Viver já era difícil. Morrer então...

O que fazer? Olhei para André e Marina. Rafael saíra. A garota semiviva parada na porta olhava para o fundo do corredor. A enfermeira ao meu lado abraçou o companheiro.

-Eu te amo! – Beijou-o como se fosse o último dia de sua vida. Ele retribuiu.

A defunta não havia olhado para mim, então pude reparar em seus traços funestos, e pela primeira vez senti o cheiro da morte depois de muito tempo. Fedia. Mesmo. Um cheiro ruim e uma aparência em decomposição, que ruíra junto com a dignidade da mulher que morrera. Ela estava nua, com um lençol antes azul agarrado a um pedaço de pele que se destacara de uma costela. Aliás, com uma delas aparente e o coração negro no peito aberto. Um líquido grosso tentava escorrer pelo buraco no tórax.

-Vai, Walter, faz alguma coisa. – Marina sussurrou, quase sem voz.

Peguei o bisturi gelado.

Alguém deixara a porta do necrotério aberta.

O bicho do outro lado da porta aberta virou-se repentinamente. Seus olhos pretos estavam cravados no vazio. Seu nariz, seus braços, suas pernas, seu corpo, sua vida. Tudo contrariava a física, a química, a biologia, a medicina, enfim, todas as faculdades humanas.

Começou a andar em minha direção. Fiz sinal para o mais novo casal se armar do jeito que podiam, e André agarrou uma pinça cirúrgica para si, dando uma tesoura esterilizada para Marina.

-Eu também te amo. – Roçou a voz rouca nos ouvidos da mulher, que arrepiou da cabeça aos pés, parte pela declaração apaixonada nos ouvidos, parte pelo frio que invadia o local, ou também pela imagem moribunda que não lhe saía da cabeça.

Foi neste momento que outro deles se juntou à mulher, e encorajou a morta-viva a perseguir as presas. Correram, desengonçados, e quase tropeçaram na enfermeira que jazia caída do lado de fora da sala. Era óbvio que chegariam lá em poucos segundos.

Lembrei-me da fazenda do interior, em Vermelho Novo, e recordei-me de que um boi que se prepara para chifrar, não costuma olhar para os lados. Esperei até o último segundo para me mover um pouco. Usei porcamente meus conhecimentos sobre o método científico e vi que ela, a garota morta, se guiava mais pelo som do que pela visão.

Lentamente, fui me desviando e fazendo sinal para André e Marina. O doutor Rafael chegou à porta rapidamente, parecia correr de algo, mas assustou-se com essa tal coisa e bateu em retirada. A enfermeira permanecia caída ao chão, agora suja e um pouco esmagada pelas centenas de pés que insistiram em sair do hospital. O outro morto ficara estagnado, esperando por mais sons e cheiros para prosseguir, já que parecia cego.

Cheguei próximo à porta, silenciosamente, e me afastei o máximo que pude da moribunda. André e Marina continuavam abraçados. Apertei o bisturi em minha mão e isolei-o do frio que vinha de fora. Um vulto passou correndo atrás de uma paciente, do lado de fora. Ela chorava alto e soluçava, enquanto arrastava um suporte para soro injetável. A mulher que cambaleara para me atacar virou-se com os sons que ouvira do corredor. Atabalhoada, passou por mim, e eu instintivamente pus as mãos em sinal de defesa. Ela nem me notou, e passou direto. Era nossa deixa.

Um grito estridente saiu de um escritório ao lado. Precisávamos sair do prédio. Porque fui me instalar logo no quinto e último andar?