À LUZ DO CREPÚSCULO

Por algum motivo, o pôr-do-sol sempre me meteu mais medo do que a meia-noite. Talvez, pela associação com a morte. Quando vejo o sol mergulhando no horizonte e sua luz se esvaindo devagar, ocorre-me à mente a idéia de uma vida também se esvaindo, pouco a pouco. Ademais, a forma como as imagens das coisas perdem a cor nesta hora me faz pensar na maneira em como a memória dos mortos vai esmaecendo, até se desfazer no esquecimento. Ainda, por ver alongarem-se as sombras, até se irmanarem todas na grande sombra da noite, parece-me que, no crepúsculo, as próprias sombras tentam demonstrar que são capazes de vencer a luz.

Não sei exatamente onde foi, e nem quando. Sei que foi antes de inventarem a luz elétrica, com a qual o homem tem a pretensão de fazer da noite dia. E bem antes de automóveis barulhentos trazerem o ruído de seus motores às nossas estradas silenciosas.

Pois bem, naquela hora tão bela, tão mágica e, ao mesmo tempo, tão assustadora, em que o sol morre e é sepultado no poente, vinha um jovem viajante, a cavalo, por uma estrada de terra. Voltava da aldeia, em direção à sua casa, na propriedade rural onde vivia. Pensava em chegar depressa e encontrar sua amada esposa, que, com seus cuidados e carinhos, o faria esquecer de todo o rigor da jornada.

Logo após uma curva, ele viu, sentada à beira da estrada, uma figura de mulher que, pelos trajes, pareceu-lhe ser uma cigana.

- Boa-tarde! O que fazes por aqui? perguntou-lhe o jovem.

A mulher lhe deu uma resposta, mas não na língua pátria, e sim num idioma cujas palavras eram-lhe completamente desconhecidas. Estranhando que uma cigana estivesse sozinha àquela hora, o homem teve medo de que se tratasse de uma emboscada. De que, enquanto falasse com ela, outros ciganos surgissem e o atacassem, para tirar-lhe os poucos bens que trazia consigo, e talvez a vida. Tornou a açodar o cavalo, que seguiu a trote. Porém, a mulher começou a soltar gemidos que lhe pareceram tenebrosos, sinais de uma dor intensa. O jovem teve piedade dela. Reuniu suas forças, parou o cavalo e deu meia-volta. Apeou, receoso, levando a mão a uma adaga que trazia na cintura, olhando em volta, pedindo a Deus que o protegesse, e perguntou à mulher:

- Por que estás sozinha? perguntou. – Onde está o teu bando?

- Meu bando me deixou para trás – respondeu ela, em português, com um sotaque carregado de sua língua original.

- Por quê? perguntou o homem.

- Por isso – e deixou pender para trás o véu que a cobria.

O jovem recuou, aterrorizado. Havia chagas profundas em seu rosto, que exalavam um odor nauseabundo, cobertas de pus e de sangue. Percebeu que as mesmas feridas espalhavam-se por seu pescoço e por seu colo, e pôde notar que haviam-lhe carcomido os seios, que já não faziam volume sob a vestimenta da cigana. Teve ímpetos de voltar ao cavalo e fugir a galope, mas a compaixão o deteve.

- Vou te levar à aldeia, cigana – disse. – O médico saberá o que fazer.

- Não, meu filho – respondeu a mulher. – As chagas são malignas e já me corroeram até os ossos. Mas há algo que podes fazer por mim. Como podes imaginar, padeço dores atrozes. Sei que tens uma adaga. Acaba com meu sofrimento. Mata-me, filho, e que o teu Deus te recompense por esse ato de piedade.

O jovem estremeceu. Não tinha coragem de cravar sua adaga naquele corpo disforme, talvez contaminar-se com aquele sangue apodrecido...

- Não posso – respondeu, tentando apaziguar a consciência com a desculpa de que não lhe cabia eliminar uma vida.

Os olhos da cigana brilharam de raiva, como se fossem de fogo.

- Podes! disse ela. – Claro que podes! Pensa em tua jovem e bela esposa. Não temes que, caso não me livres do sofrimento que me desespera, venha sobre ela um castigo igual ao que me consome?

- Que Deus me proteja! exclamou ele, horrorizado. – Que Deus me defenda de tuas pragas, maldita! Sabe-se lá por quanto mal que haja em teu coração estás pagando assim, de forma tão terrível!...

Ia tomar o cavalo e fugir dali o mais rápido possível, mas ocorreu-lhe que não podia deixar a criatura ao léu, naquele estado. Encheu-se de coragem e tomou nos braços a cigana. Colocou-a na garupa do cavalo, já pensando em abater o animal e atear fogo aos arreios, assim que a deixasse na aldeia, aos cuidados do médico. A mulher começou a lançar-lhe imprecações na língua desconhecida. Ao cabo de algum tempo, porém, calou-se. Então, ele a sacudiu, e percebeu que já não respirava.

Era noite alta, e o jovem quis livrar-se imediatamente daquele cadáver, já em decomposição desde a vida, cujos miasmas não podia mais suportar. Tirou-a do cavalo, arrastou-a para o meio de uma touceira e cavou, um pouco com a adaga, um pouco com as mãos, uma cova rasa, onde a enterrou. Depois, considerando cumprido o seu dever de cristão, foi para casa, exausto.

Porém, nos dias que se seguiram, a imagem da cigana veio assombrá-lo. Primeiro, em sonhos. Em pesadelos terríveis, a mulher lhe aparecia e lhe pedia que a matasse. Depois, na lida do campo, parecia-lhe que a enxergava, com o canto dos olhos. Quando fixava o olhar, a figura desaparecia. Por fim, dentro de sua própria casa, imaginava vê-la de relance. Com medo de que a cigana viesse cumprir as ameaças feitas à sua amada esposa, resolveu ir à aldeia e procurar o padre.

O padre, após ouvi-lo em confissão, recusou-se a encomendar a alma da defunta, dizendo que não rezaria por uma bruxa amaldiçoada. Sem saber o que fazer, o jovem montou no cavalo e tomou o rumo de casa, perto da hora do poente.

Estava no mesmo ponto da estrada em que se dera o encontro quando viu, desta vez, em pé e caminhando em sua direção, a figura da cigana, que abriu as vestes e mostrou-lhe o peito horrivelmente deformado, enquanto pedia:

- Mata-me!

Apavorado, açoitou o cavalo e fugiu a galope, tão rápido quanto pôde. Mas quando chegou em casa e entrou, ofegante, distinguiu, à pouca luz do crepúsculo, o vulto de uma mulher.

- Não vais ferir a minha esposa, desgraçada! gritou. – Vou te dar o que me pedes!

Então, puxou a adaga, lançou-se sobre o vulto e atravessou-o com sua lâmina.

Acendeu uma lamparina e teve um sobressalto. Quem jazia a seus pés, esvaindo-se em sangue, não era a cigana, mas sua jovem e querida esposa...

Não negou a autoria do crime. Contou ao juiz tudo o que se sucedera. O magistrado não acreditou em sua história e, pelo assassinato, inclemente, condenou-o à morte. Determinou que a sentença deveria ser executada ao pôr-do-sol.

Na hora marcada, levaram-no ao patíbulo. O carrasco colocou-lhe o laço em volta do pescoço, e o jovem rezou, implorando piedade para sua alma. De repente, quando o algoz já estava para abrir o cadafalso, ouviu-se um tropel de cavalo, e um cavaleiro irrompeu na praça, gritando:

- Parem!

Todos os presentes se espantaram ao ver de quem se tratava. Era nada menos do que o próprio juiz, que interrompeu a execução e ordenou que o réu fosse levado novamente à sua presença.

Mandou deixarem-nos a sós e disse ao jovem:

- Resolvi mudar a minha sentença. Não serás morto. Mas sai agora mesmo da cidade, e jamais voltes a pisar aqui.

- Obedecerei imediatamente – respondeu ele. – Mas minha alma não terá sossego se eu não lhe perguntar o que fez reverter sua decisão.

O juiz o encarou, pálido e aterrorizado.

- Acontece que, quando eu ia, a cavalo, pela mesma estrada em que me disseste ter visto a assombração, eu mesmo enxerguei o espectro da cigana, que, coberta das chagas de que me falaste, avançou para mim e suplicou-me que a matasse...

E desta forma o infeliz livrou o pescoço da forca, embora, por muito tempo, o remorso e a tristeza ainda o atormentassem. Mas o tempo acabou por curar as feridas de seu coração, e ele conseguiu viver em paz.

Porém, durante muitos anos, qualquer viajante que passasse por aquela estrada na hora do sol morrente jurava ver a figura aterrorizadora da cigana, que implorava pela morte, até que um outro padre, mais tolerante, aceitou rezar-lhe uma missa pela alma...

MAIO DE 2007

Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.

Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 20/05/2007
Reeditado em 29/06/2007
Código do texto: T493693