A boneca russa

BOOBY SE AGACHOU NA BORDA DA CALÇADA, com a cabeça enfiada nos joelhos, ansiando pelo fôlego que podia ver como poeira no ar e com o suor já esfriando na pele quente. O camisão azul flanelado escurecera quase dois tons por causa da transpiração de um corpo sedentário. Os olhos se estreitaram por causa da vertigem, e aos poucos, as folhas dos carvalhos começavam a ficar sem cores; quase tão cinzentas quanto o céu de outono daquela manhã.

Ele não estava na melhor forma, mas obrigara-se a uma corrida no parque, algo que não fazia desde que Susi o abandonara. Sua bunda tornara-se uma coisa larga, desde então, e a pança cresceu consideravelmente nos últimos anos. Mas precisava colocar seu corpo ao limite, só assim poderia afastar os pensamentos que corroíam sua mente fazendo-a pipocar como cabos elétricos.

Precisava operar um dos olhos, a hipoteca estava atrasada e possivelmente não teria emprego na semana seguinte, quando a Price - consultoria de investimentos - assinaria o termo de férias coletivas para cento e cinquenta e três consultores. Não fora muito bem na última inspeção: seu desempenho estava abaixo das metas e havia muita papelada atrasada na mesa do escritório.

Finalmente ele arregalou os olhos absorvendo a explosão de cores do parque. Se ele não dissesse a alguém o quão ruim estava se sentindo, ele achou que se partiria ao meio. Então a moça de moletom cor-de-rosa - que ele vira a doze metros atrás - passou por ele, agachando-se próxima a sarjeta para amarrar os tênis de corrida.

Booby percebeu que havia uma marca roxa-avermelhada no pescoço perolado da garota. Graciosamente, ela ajeitou os cabelos loiros sobre o pescoço e Booby não viu mais nada além de uma cascata sedosa e amarela. Sorriu para si mesmo, e lamentou, pensando qual teria sido a última vez que alguém o deixara uma marca de amor no pescoço...

A prostituta chamada Tina Walker percebeu o olhar cobiçoso do gordo sentado na sarjeta. Ajeitou os cabelos e continuou a correr, detestando cada homem que pisava na face da terra.

A marca que Jhonny deixara em seu pescoço na última noite ardia, pulsando em avisos regulares de que ela sempre fora uma mulher marcada. Que abrisse as malditas pernas para outros homens em troca de um punhado de dinheiro, tudo bem, mas Jhonny não aceitaria um olhar que viajasse além disso.

Ele faria questão de esfregar seu rosto na lama durante a primavera ou lavá-lo na neve do inverno. Os socos e agressões eram para lembrar de que não havia canto naquele mundo onde se esconder. Mesmo no parque longínquo, ela sentia os olhos de Jhonny observando com raiva, sedentos de sangue.

Acabara de pisar a sola do tênis na milha sete do calçadão de corrida, marcado com uma inscrição garrafal no pavimento. O ar matinal estava amargamente frio. Crianças barulhentas brincavam no playground, deslizando no escorrega e trepando nos brinquedos de aço inox, observadas de perto por suas mães e babás, sentadas de pernas e braços cruzados, jogando comida para os pombos e rindo das suas vidinhas perfeitas. Tina as odiava.

Odiava porque nunca viveria num mundo parecido. Seu mundo tinha cor de sombra, e fantasmas banhados em sangue. A única criança era ela própria, absorvida numa lembrança tão distante, que já quase fora completamente esquecida.

Selena pedia aos gritos para que Pet tivesse cuidado no balanço. Naquele playground, o filho a deixava louca. Por ela, ficariam em casa, assistindo televisão e tomando um chocolate quente, mas o marido dizia que o menino precisava de um pouco de ar fresco. Nisso ele tinha razão. Era bom que Pet sentisse o cheiro da grama, brincasse com outras crianças e contemplasse o maravilhoso cinza azulado do céu porque em breve, tudo isso lhe seria tirado.

Pet tinha uma doença cerebral degenerativa, e até o momento, sem cura ou tratamento. Selena sabe que no próximo outono, o filho já terá partido. O fato faz com que sinta mais do que tristeza, ela sentia ódio. Raiva da própria vida, e culpa por ter insistido na ideia de ser mãe. Sim, tudo aquilo era sua culpa e esse maldito demônio a perseguirá pelo resto da vida. Olhou para onde um velho estava sentado, envolvido numa disputada partida xadrez consigo mesmo. Tudo que Selena desejou, foi envelhecer tranquilamente.

O velho chamado Hermes moveu a rainha branca três casas a frente, na vertical. Movimentou o bispo preto para a E4 e contemplou a própria jogada. Achou que foi uma boa jogada. Escapou com o cavalo branco, mas o capturou imediatamente com a torre preta. Que jogo. Achou que estava sendo um bom jogo.

Sua atenção foi tomada momentaneamente pela figura de um rapaz gordo com camisão de inverno azul. Ele vinha trotando desajeitadamente, arfando, arqueando como um cão, exausto e completamente envolto por suor.

O rapazote nada disse, apenas meneou a cabeça levemente para Hermes e seguiu olhando para frente. Aqueles olhos quentes, azuis e limpos como um céu de faroeste, deixaram Hermes desconfortável. Ele encarou o tabuleiro de xadrez e com um peteleco derrubou ambos os reis. Olhou de volta para o homem gordo e pensou o quanto gostaria de estar vivo.

NOTA

“Boneca russa” na verdade, é um conjunto de bonecas ocas de tamanhos decrescentes colocadas uma dentro de outra. Essa história, assim como as Bonecas Russas, foi feita de quatro pequenas tramas, colocadas cuidadosamente, uma dentro da outra. Enfim, o que acharam? Ficaria extremamente grato pelo Feedback de vocês, nem que seja para dizer que essa história ficou uma grande porcaria!

Isaac Räja
Enviado por Isaac Räja em 26/08/2014
Código do texto: T4937703
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