UM CARTUCHO POR VEZ

Estranha coincidência. Receber aquela visita não estava em seus planos, mesmo assim, parecia se encaixar perfeitamente, parecia um sinal divino...

Sobre a cadeira de plástico no centro da sala, a santa de gesso jazia soberana, cuidadosamente posicionada dentro de uma caixa de madeira com porta de vidro. Ela não sabia que santa era, parecia com todas as outras, olhar triste, mãos no coração, vestes azuis. A casa estava completamente vazia, a única coisa que restara foi à cadeira em que a imagem estava, uma mochila e as armas... Duas pistolas e um rifle.

Ela, recostada na parede, sufocava-se com sua própria realidade, emprego ruim, vizinhança ruim, vida ruim, precisava dar um fim em tudo isso, e quando a oportunidade lhe bateu na porta; não teve dúvidas.

Sobre o piso de cerâmica barata, colocava as balas brilhantes enfileiras, e, vez ou outra, trocava olhares com a santa, como se estivesse negociando o futuro, ou simplesmente buscando por um sinal no rosto imóvel da imagem. A luz fraca que entrava pela janela entreaberta permitia que ela visse o reflexo do próprio rosto na portinha de vidro, em seus olhos ela via respostas, via 35 anos perdidos, vias os sinais evidentes do tempo em seu semblante.

As armas reluziam, eram as coisas mais brilhantes dentro daquela casa vazia, daquela vida vazia. Por sorte não foi tão difícil vender o imóvel, e o dinheiro foi o suficiente para comprar o rifle e as pistolas, a munição veio de brinde. Ela nunca tinha visto objetos tão bonitos, tão atraentes. Eram tão fáceis de manusear, como se ela já nascesse sabendo como fazer, foi uma passada de olho pelas instruções e ela montava e desmontava as armas. Os cartuchos eram colocados no carregador e inseridos na pistola, o ferrolho é recuado, ao pressionar o gatilho o percussor batia no cartucho que ativava a pólvora e fazia com que a bala seguisse rumo ao alvo, mais ou menos assim. Com a arma carregada e a santa em mãos, saiu pela porta da sala... Nem olhou para trás.

As moedas tilintavam na caixa de oferendas da santa, que passava de casa em casa. Caminhando a passos seguros, coração batendo rápido... Mas as mãos permaneciam firmes.

Costume estranho esse! Passar uma simples imagem por todas as casas da redondeza, na esperança que isso traga alguma paz de espírito, alguma esperança. Mais estranho ainda, é uma família sem nenhum tipo de respeito, princípios, caráter e educação recebessem a santa uma vez por mês... Era mesmo muita hipocrisia.

Ela acordava, todos os dias, ás 6 da manhã, engolia cinco tipos de comprimidos que ficavam sobre a mesa de cabeceira e saia para o trabalho. Cobradora de ônibus... Os remédios prometiam trazer alívio, fazê-la feliz. Como pílulas poderiam mudar sua vida? Não sabia, mas tomava mesmo assim.

Continuava a passos firmes, o sol forte a incomodava um pouco, seus olhos semiabertos permitia que desviasse das pedras soltas no caminho, a santa era pesada e a pequena cruz de madeira no topo da caixa impedia a visão da casa, mas ela tinha certeza de que ele estava lá.

Todo o fim de semana ela saía da realidade, as latas posicionadas sobre o muro caía uma a uma. Ela era certeira, nunca errava. A espingarda de pressão fora presente do pai, e ela aliviava a tensão do dia a dia treinando a mira. Mochila nas costas fugia da sua vida amarga e se isolava em trilhas, era o que a fazia sentir-se viva, livre.

Subiu a rampa para automóvel, o portão de ferro foi aberto, lentamente, após dois toques na campainha. Era ele. Exatamente como imaginava, ainda usava a roupa do crime, alto, olhos castanhos claros, barba por fazer. Era forte sim, mas, sobretudo tinha o semblante de um viciado, o olhar de um viciado, o cheiro de um viciado e a índole, visível, de um maldito viciado... E ele só tinha 16 anos.

Trabalhava todos os dias da semana, as moedas chacoalhavam na caixa, dinheiro que não lhe pertencia, mas mesmo assim teria que pagar caso fosse roubado. Todo tipo de pessoas passando a catraca barulhenta o dia todo, e ela nem os via, completamente absorta em seus pensamentos, injustiças, sonhos... Enquanto todos lutavam por dinheiro ela só queria um pouco de tempo. Perdia-se no silêncio barulhento de sua mente, enquanto as pessoas ao seu redor tagarelavam sobre coisas inúteis, vidas fúteis; apenas saía do transe quando sentia o cheiro fétido de um viciado... Viciado em drogas, em adrenalina, em violência, em toda forma de subjugar quem apenas tentava sobreviver, e eles sempre apareciam.

Onze e meia da noite de um domingo frio, última viagem sentido centro, no veículo, motorista, cobradora e uma passageira. O ônibus parou em um solavanco e ele embarcou. Jovem, imoral, moletom e boné... Fedia a vício. Deu voz de assalto e encostou o cano frio da arma no rosto dela exigindo dinheiro. Um ódio intenso lhe subiu a garganta em forma de um líquido azedo e viscoso. Olhou-a no fundo dos olhos e repetiu, lentamente, as palavras que, quase a fez cuspir toda a indignação em sua cara: assalto.

Podia ver seu rosto nitidamente se fechasse os olhos, mas agora ele estava bem a sua frente, como que zombando da cara da sociedade e suas leis inúteis. Inclinou-se levemente para pegar a santa das mãos dela, e viu o brilho fosco da nove milímetros entre meus dedos. Antes que houvesse tempo para qualquer reação o estampido ecoou.

Um tiro certeiro entre os olhos que o arremessou ao chão de cimento bruto, a bala atravessou o crânio formando uma cratera atrás de sua cabeça e uma poça de sangue ao seu redor.

Justiça foi feita.

Ela cuidadosamente posicionou a imagem acima do corpo do rapaz, a santa parecia mais feliz, parecia sorrir. A assassina... Não sentiu nada além de redenção. O rapaz teve o que mereceu, e o resto do mundo também teria.

Do outro lado da luneta do rifle de longo alcance, os corpos começaram a cair, a mira era certeira o dinheiro dava para viver bem e, um cartucho por vez, fazia sua fama. No fim... Era como atirar em latas vazias.

Publicado na antologia "A Morte do Outro Lado da Luneta"

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 18/09/2014
Código do texto: T4966711
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