Cruzada

Que conste em meu epitáfio o ano da encarnação de nosso senhor 1187, pois que meu nome é Ronaldo de Évora, e me encontro como cavaleiro a serviço de Cristo, da ordem dos Templários, no reino de Jerusalém, sob o governo de Guy de Lusignan. O líder dos sarracenos, Saladino, fechou seu cerco com suas tropas mais numerosas que os grãos de areia do deserto. Encontramo-nos em número ridiculamente inferior para a defesa do muro e da cidade, sem víveres a algum tempo, vivendo somente do que já racionamos para os cavaleiros e para os soldados da infantaria enquanto que a população está a sofrer. Muitos já morreram de inanição e muitos já partiram devido à peste. Foi idéia de nosso nobre defensor colocar a todos para protegerem o muro, independente de sua condição, mas estamos perdidos e temo que muitos já tenham até mesmo perdido a fé.

Estava eu na trilha para o templo de Jerusalém, defendendo os peregrinos de salteadores, quando fui convocado para lutar pela Terra Santa. Uma última luta pela qual foram convocados todos os bravos cavaleiros da cristandade, francos, normandos, teutões... Com o aval do Papa conclamando a Cruzada e a remissão dos pecados de todos que pela Terra Santa lutarem. Mas ainda não chegaram para o embate final, de maneira que estamos nós a mercê de Saladino, esperando o reforço que nunca chega e com nosso contingente cada vez menos numeroso, entretanto são ainda muitas bocas a alimentar.

À noite, pelos muros, escalam os infiéis que, sem se importarem com a morte, partem de cimitarra e adaga para cima, gritando por Alá. São os hashshashin (assassinos) a serviço do velho da Montanha, que promete uma vida de fartura no outro mundo para os que morrerem em nome da fé.

Cansado estou de minha vigília para suster o avanço deles, pelo menos até chegarem os reforços. Dizem que Ricardo Coração de Leão, Felipe II e Frederico Barba-Roxa, sensibilizados pelo papa a terminarem suas disputas, partiram de imediato para defender a cristandade.

Só mais alguns dias e tudo vai estar acabado, para o bem ou para o mal, mas precisamos resistir, se não por nós, pelo menos pelo futuro da cavalaria de Cristo, pelo esforço de ver o reino de Jerusalém sob a bandeira da cristandade.

Como os demais, estou fraco, há dias que não tenho uma refeição decente para me alimentar como deveria. Estou cansado de tantas lutas. Cansado da poeira e do calor do deserto. Como queria agora voltar para minha terra na distante Lusitânia, de onde parti há tanto tempo para expiar meus pecados da carne, no exílio da terra santa.

Pretendia algum dia recuperar meu nome e minhas terras por direito, agora na proteção de meu tio. Meu tio, que enviou-me para o exílio e minha amada Cassandra para o claustro da fé no convento mais próximo. Tudo por ser ela de baixa estirpe e ser eu um herdeiro ao titulo de meu pai, como fidalgo das terras e dos camponeses daquele distante lugar.

Sonhava em ser cavaleiro quando menino, embalado por estórias de dragões e cavalaria. Agora sofro em ter de servir a alguém mais poderoso e ter que obedecer a todas as normas implícitas pelo bom regime dos Templários. Heróis ou vilões? Os primeiros a entrar na batalha e os últimos a sair. Temidos por uns e adorados por outros. Porém sigo a minha própria fé em segredo, jurando por Cristo para o grão duque, e à minha própria espada em segredo. Se algum dia eu pudesse sair daqui ainda vivo e resgatar meu nome, seria pela força de minha espada, não pela fé nas batalhas, porque é isso o que conta no campo de batalha, sobreviver mais um dia.

Agora, porém, estou no fim de meus dias... Caminho feliz saindo da rua cheia de desesperados e vou para as catacumbas escuras sob o templo de Sulaiman, por caminhos escuros ocupados por ratos pestilentos tão sedentos quanto atrevidos, passando por figuras esculpidas com eficiência nas paredes do templo. È lá que encontro eles, a espreita no fim do caminho, esperando por mim.

Devagar e sem tensão eu começo a me despir de minha armadura, meu capacete bifurcado, minhas ombreiras, o traje com capa branca com a cruz vermelha no peito e a malha de ferro. Deixo tudo de lado, e antes de me despir totalmente, encontro em meu pescoço o ultimo lembrete de meu passado, do amor de outrora, em um cacho de cabelo de minha Cassandra, que irá esperar por mim ainda muitos e muitos anos em seu claustro.

Uma fagulha de esperança embala minha alma, o filho que ela carregava em seu ventre e causa primeira de nossas culpas, ainda irá crescer e tomará algum dia o lugar de fidalgo das terras de Évora, na distante Lusitânia. È isso que me anima neste momento derradeiro, a esperança de outros tempos melhores.

Eles chegam com seus grandes olhos e rostos sujos, e agora estão à minha frente sedentos de fome e da justiça que os anima. Minha ruína não representa nada para eles. Para eles interessa a sobrevivência em primeiro lugar. E não é para isso que vivemos agora como animais dentro de um covil, cercados de todos os lados e sem possibilidade de fuga?

O líder deles, ou pelo menos aquele que parece ser o mais velho se aproxima. Olha meus pertences ao lado. Eu o contemplo nos olhos, e ele devolve o olhar sem nenhuma ternura, sem nenhum perdão. São olhos que já perderam a candura. Ele pega da espada e eu me abaixo solene, fazendo uma última oração, reconhecendo meu final nesta catacumba suja. È então que o menino desce a espada em meu pescoço e eu morro ali mesmo, com o sangue a jorrar, guardando como última imagem aquele rosto sardento.

Haverá alimento suficiente para as crianças do reino de Jerusalém por pelo menos mais um dia.

.....Fim.....

Paulo Salgueiro
Enviado por Paulo Salgueiro em 28/09/2014
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