Dente-de-Leão DTRL18

-Senhor, é proibido fumar aqui. Senhor, tudo bem?

Um som vago, quase inaudível, adentrava, sem passar pelo tímpanos, na orelha de Carlos. A frentista do posto de gasolina, sem sucesso, buscaria reforço para retirar aquele homem dali.

Vestido de noivo, aquele homem chorava sua desgraça. O céu era cinza e uma fina garoa cortava aquela imensidão trazendo a lembrança de algumas horas atras.

Uma noiva, alguns kilômetros dali, fora despedaçada em um acidente com um caminhão. A limousine, toda enfeitada com placas de recém-casados, não aguentou tamanha batida. Todos os envolvidos no acidente morreram. O noivo, mesmo na igreja, também morrera. Porém, não sabia ainda.

“ Os convidados choravam. A pequena dama de honra, com o pequeno buquê em mãos, não sabia o que acontecera e perguntava à mãe quando iria cumprir seu papel, tão ensaiado nas última semanas. Um sinal da cruz e o padre virava suas costas de volta à igreja. Pouco a pouco, o local do acidente era esvaziado. Apenas o vermelho ainda resistia em ser diluído no chão molhado.”

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Dezenas de esperanças brancas desafiavam a gravidade. Thiago mantinha seus dois olhos atentos a todas. Pouco a pouco, ganhavam, de forma macia, o chão. Mais um Dente-de-leão eram assoprado, ficando, apenas seu caule nu, esquecido na grama seca do campinho de futebol.

“Esse fora, talvez, o último assopro.”

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As batatas, bem cravadas em gravetos, ardiam e pipocavam na fogueira improvisada no muro da escola. Thiago, após cuidadosamente conseguir as últimas batatas da frutera de sua mãe, trazia mais 6. Número suficiente, somado as outras que estavam assando, para o grupo de 4 amigos terem o que comer para a maratona de histórias de terror que iria começar.

-Então, tipo assim, um homem com uma enorme fac....

-Ah!!!!! Não. Thiago, – em uníssono, os amigos cortaram sua fala com insatisfação – vai contar essa mesma história todas as vezes? Já enjoamos, sabia?

Depois dos minutos de chacotas, uma história inédita cortara o clima de brincadeira. Tudo tornava-se sério outra vez.

A lua, laranja e cheia de desejos, iluminava aquela noite. O céu não tinha estrelas.

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Dante e Goethe, disputavam uma briga na mente doentia de Carlos. Beatriz fora o desejo de Dante, e a promessa de Virgílio. Fausto, jovem, dispunha do quisesse. Bastava vender sua alma.

“Poderia ter tudo o que desejasse de volta? Poderia ir ao céu, ou inferno, resgatá-la?”

O filme do casamento era reproduzido, pesadamente, na tv de Carlos. Um gole de whísky, e mais um cigarro acesso, eram sua visão, e sua fuga, naquele momento. Visão que, por vezes, era trocada por aquele maldito acidente que levara Cíntia no dia do casamento.

“Deus, com uma costela, deu vida a Eva. Não poderíamos ficar só. A solidão mata, corrói, destrói. Na grande arca, um casal de cada espécie fora preservado.”

Em vida, Carlos não sobreviveria. Na morte, talvez, teria a chance de encontrar sua amada. Tinha, mesmo que ser em morte. Vender sua alma lhe tiraria a eternidade ao lado dela. Com um sorriso de ódio e alegria, misturadas com as lágrimas de insanidade, Dante vencera aquela luta na face, quase demoníaca, de seu perverso leitor.

“ O barqueiro iria sorrir como nunca dantes sorrira. Uma moeda e uma alma inocente. Tudo em troca do sorriso de Cíntia novamente. O problema era Virgílio, se existisse mesmo, nunca guiaria Carlos à sua amada Cíntia, nem no inferno, purgatório ou em nenhum dos anéis do paraíso...”

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Acostumado em sentir-se humilhado na hora do futebol, Thiago, pontualmente, entrava em sua casa para tomar aquele maldito Biotônico Fontoura antes do almoço.

-É pra você v...

-Tá, eu já sei mãe. - Disse Thiago ofegante e ansioso para voltar logo ao futebol, escondia, estrategicamente, sua ferida no joelho que seria destino do ardido Merthiolate – Me dá logo. Já já venho pra almoçar.

“Enxugando a boca com o braço e tentando colocar, enquanto corria, de volta a correia do chinelo, seguia para sua, talvez, última partida de futebol.”

Com os calçados no cotovelos, Thiago, não hesitou em partir em alta velocidade em busca de uma pipa que sobrevoava, já sem dono, perto dali. Na rua do futebol, sobraram apenas 4 chinelos, 2 de cada lado, apenas aqueles que outrora serviram de traves. Os meninos levantaram poeira e, com os olhos somente ao céu, correram em busca daquele prêmio. Algumas meninas que brincavam de boneca perto dali, olhavam com reprovação aquele desperdício de energia, e voltavam suas atenções para os cabelos de seus pequenos objetos.

“Meninos...”

“Thiago já ensaiava um: Tá na mão!

“ Nesta noite, sera lua cheia. Nesta noite, não teremos fogueira.”

“Longe dali, um vento natural, ao cair da tarde, desintegrava um Dente-de-leão”

“O sol, como quem já soubesse, brilhava laranja permanecendo mais tempo no horizonte.”

"Impossível, daqui a pouco, a lua teria que aparecer mesmo".

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´ Uma criança, pura e ingênua deve lhe matar. Depois que ela o fizer, deve suicidar-se por vontade própria. Não importa qual meio ela venha morrer, deve ser por vontade dela mesma. A angústia que ela levará consigo, será sua moeda ao barqueiro. Plante o ódio. E só assim, somente assim, você poderá ser guiado à sua amada'.

Na cabeça de Carlos, os flashs, da orientação do guru da morte em seus pesadelos, não davam trégua a outros pensamentos. Morte, morte, morte e renascimento, era tudo que pensava em fazer.

"De que importava uma criança qualquer quando o assunto era sua amada?"

Ali, na esquina, um garoto enrolava na sua mão a linha de um pipa que acabara de pegar. Satisfeito e cheio de energia, deliciava-se com aquele momento.

"Um carro ao seu lado lhe oferece mais pipas e uma lata de linha..."

Thiago dormia, resultado do sonífero, no banco de tras do Fiesta preto. O litro de conhaque saltou na primeira lombada que o carro passou em alta velocidade. Felizmente, o líquido se encontrara vazio. Já fazia parte da insanidade daquele condutor.

O controle remoto fechava a garagem. O sol estava quase se pondo no horizonte. Adormecido, Thiago não conseguiu visualizar a cor alaranjada que diminuía lentamente.

"Gritos de crianças, próximas dali, era resultado de mais uma pipa a ser pega. O último prêmio do dia enrolou-se nos fios de um poste, entristecendo os pobres meninos."

**

-Mãe, qual o nome dessa plantinha? - Maravilhado, Thiago perguntou assoprando, dessa vez com a vazão do nariz, o pequeno Dente-de-leão.

-É um Dente-de-leão, meu filho. - Respondeu sua mãe enquanto colocava a roupa no varal.

-Mas, por que esse nome? Os Dentes do Leão também soltam-se assoprando assim?

Thiago já estava longe para saber a resposta. Corria em direção ao campinho de futebol. Junto com os trevos de 3 folhas, azedinho e bom para comer, o Dente-de-leão, eram as plantas que mais lhe fascinavam. Um simples assopro e mudava o destino, tardio, daquela maravilha que um dia seria amarelinha.

-Thiago, quer ficar de próximo? - Guilherme, o dono da bola, perguntou torcendo para que a resposta fosse sim. -Já nos dividimos, os times já estão certos.

-Certo, - respondeu enquanto limpava-se dos fragmentos do Dente-de-leão - vou ficar aqui de gandulinha. Acaba 2.

"Os oitos meninos que jogavam ali, por 1 minuto, ficaram maravilhados na grade, poucas delas ainda estavam sem furos, do campinho. Um enorme carro branco desfilava com uma bela noiva dando tchauzinho, para aqueles babões, pelo vidro abaixado."

"Eu que não quero casar. Eca!"

"Muito menos eu. Beijar... credo. Sai fora"

"Eu já quero, e quero ter muitas mulheres que nem meu tio. Elas dão dinheiro pra ele. Posso comprar muitas pipas"

"Mentira...."

"A bola descia sem destino a rua. Thiago, descalço, desceu em enorme velocidade. Um caminhão chegou antes e passou por cima da bola estourando-a. O futebol acabou e os meninos xingavam o motorista que subia a mesma rua do carro da noiva".

"Seu idiota"

"Deve estar bêbado, olha como dirige".

"Quem topa brincar de esconde-esconde? Põe o dedo aqui".

**

Thiago acordou há 10 minutos. Descobrira, embora sendo mentira, que toda sua família havia morrido. Chorando aos soluços, esmurrava, com toda sua força, Carlos. O bafo de conhaque lhe dava ânsia de vômito. O quarto estava a meia luz, e as janelas estavam lacradas com filme negro. As paredes eram vermelhas, e em cima da mesa de cabeceira, repousava, um revólver 38.

Carlos sorria ao narrar a morte da família de Thiago. Detalhava como tudo aquilo fora tão fácil. Como sua mãezinha gritava pedindo que não. Como batia em seu pai. Como foi bom provar todo aquele sangue.

Com o revólver agora em mãos, insinuava tiros em direção ao garoto.

-Você não quer matar quem matou sua família? - Repetia fervorosamente Carlos tragando seu cigarro - Você é fraco que nem seu paizinho.

"Alguns pássaros, assustados, levantaram voo na árvore ao lado daquela casa. O sol piscou sua última gota de luz no horizonte. A pipa, já sem vento, estava calma no fio de alta tensão, mas era incomodada por dois garotos jogando uma pedra amarrada numa linha. Uma mãe, escorada no portão de sua casa, olhava na rua procurando seu filho. A panela de pressão fazia barulho na cozinha."

"A noite esta clara, porém não se vê a lua".

Tremendo, Thiago estava assutado com aquele sangue e aquela engrenagem de ferro na sua mão. Não ligou em desviar do líquido vermelho, que já molhava seus pés, brotando daquele corpo inerte. Seu choro cessara. Seu pequeno shortinho estava ensopado de xixi. Estava em choque.

"Como disparar aquilo na própria cabeça como mandou aquele monstro?"

“Poderia ver mesmo seus pais se fizesse aquilo"?

**

Um pequeno fragmento de Dente-de-leão, que pousou em seu joelho, chamara a atenção daquela pequena criança na clínica psiquiátrica. No pátio, sem conversar com ninguém há 1 mês, o pequeno sorriu pela primeira vez. Desesperado, procurou em todos os cantos do jardim para ver se encontrava. Ao correr atrás de uma borboleta, fixando agora seus olhos ao alto, lembrava-se daquelas pipas disputando o lugar no céu. Olhando as próprias mãos, lembrou-se, depois de todo aquele tempo, pela primeira vez de seu nome.

"Thiago..."

" De longe, uma mãe, com um punhado de Dentes-de-leão, tomando um enorme cuidado para o vento não beijar-lhes, sorria ao ver seu pequeno filhinho correndo em sua direção com os braços abertos e as lágrimas escorrendo pelo vento no canto dos olhos".

"No porto de sombras e sofrimentos, o barqueiro conduzia seu barco vazio. Virgílio, ao longe, deu as costas para a escuridão. Nas águas dos pecadores, mãos suplicavam seus últimos desejos."

"O barqueiro segue sua viagem".

Tema: Desejos

Eduardo monteiro
Enviado por Eduardo monteiro em 29/09/2014
Reeditado em 29/09/2014
Código do texto: T4980966
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