A Marca Imperial - Parte 2: Destino

Em uma tarde fria de final de novembro, Jaques Tavares recebeu em sua enorme e bela casa, que com suas paredes de pedra e jardim com árvores altas mais parecia um castelo, os três homens que vieram em um opala preto. Eram jovens e muito bem afeiçoados, se apresentando como correspondentes de um Instituto de pesquisas associada a uma grande universidade.

- Sinto muito em não poder oferecer um café. Vocês chegaram justamente quando a única empregada que não está de folga hoje saiu para fazer compras. Mas há uísque e vinho se quiser – ele indicou uma prateleira com copos e garrafas na sala ampla com uma tapeçaria enfeitando a parede, enquanto ele próprio segurava uma taça de bebida.

- Obrigado, mas não será necessário – disse o mais alto dos três, de cavanhaque e segurando uma maleta de couro preto.

- Está bem – Jaques falou desdenhosamente – De onde vocês são mesmo? - perguntou. Parecia não se lembrar, ou se importar.

- Instituto de Massachusetts. Viemos ver as suas mais recentes adições ao seu acervo – disse um dos visitantes, o mais baixinho, de rosto rechonchudo e cabelos vermelhos.

- Certo. Certo – Jaques pareceu entediado – Podem voltar outro dia? Não sei se estou em condições para isso agora. Marquem hora com a minha secretária.

- Desculpe senhor – falou educadamente o primeiro – Mas viemos de longe. Não pretendemos demorar. Prometo que seremos rápidos.

Jaques revirou os olhos. Não fazia a menor questão de esconder sua impaciência.

- Já que insistem. Só um minutinho – ele foi até a prateleira, pegou uma garrafa e encheu seu copo de uísque, bebendo tudo de um gole – Podem me acompanhar – disse, abandonando o copo e se afastando pelo corredor largo.

Os três o seguiram, até passarem por uma grande entrada que dava para a galeria. Ao redor de estendiam jóias, cartas, leques antigos, peças de roupa pequenas como luvas entre outros pequenos objetos protegidos por vidros em espécies de painéis, abaixo de quadros, e até armas meticulosamente expostos nas paredes.

- Nesta seção eu guardo as peças de mais valor. Por aquele lado podem ver leques que foram usados por madames na inauguração da torre Eiffel. Não é uma aquisição recente, admito, mas é uma que tenho grande carinho – Jaques continuou falando, mas os visitantes não deram a menor atenção ao que era dito. Os três se separam e olharam as peças, examinando e passando de uma ala à outra com uma velocidade que sugeriria que eles estavam mais procurando algo do que apreciando os objetos.

O mais novo deles parou e olhou maravilhado para a parte do painel que exibia moedas de várias nacionalidades, valores e estilos, quase ao fundo da galeria, se concentrando em um grupo especial no centro.

- Aqui! – disse.

Os outros dois se aproximaram em prontidão, acompanhados por Jaques.

- Algum problema? – perguntou o colecionador de artes e antiguidades.

- Essas moedas – disse o de cavanhaque – Foram elas que o senhor adicionou recentemente?

- Sim. Boa parte delas.

- Como as encontrou? – perguntou o ruivo, observando as moedas um pouco atrás de Jaques.

- Bem, eu pesquisava uma base militar abandonada perto daqui. Esta região foi uma grande zona de batalha na Guerra Civil, onde um pequeno grupo de sulistas venceu de uma maneira que ainda não se sabe uma tropa do norte. Venho pesquisando como isso aconteceu há anos, e um dia encontrei essas moedas em uma caixa. Elas parecem ser romanas, mas são um pouco maiores que as moedas daquela época, o rosto não corresponde a nenhum imperador conhecido e estão muito conservadas para terem mais de mil anos. Mas é possível dizer que são pelo menos do tempo da guerra.

- Bem, senhor Tavares. Queríamos justamente falar sobre elas – o mais alto abriu sua maleta e tirou uma série de papeis que entrou a Jaques – Gostaríamos de levá-las conosco para o Instituto onde serão submetidas a um teste de carbono para determinar a idade, e logo após elas serão devolvidas ao senhor. Pode analisar a papelada.

- Levá-las? – Jaques folheou rapidamente os papéis, mas já sabendo a resposta – Não. Não. Não gosto que fiquem levando e trazendo itens da minha coleção dessa forma.

- Será bom para sua pesquisa, senhor Tavares – insistiu o rapaz – E o teste será realizável da maneira mais profissional possível.

- Veja bem, se eu puder falar com os superiores de vocês, eu... – Jaques sentiu uma pontada no pescoço, como uma picada de abelha, depois uma dormência e então o mundo escureceu. O corpo pesado cambaleou, quase caindo na vitrine das moedas e em seguida desabou no assoalho da galeria, sob o olhar surpreso do jovem e de seu colega.

- Glauco!

- Que tal passarmos logo para o plano B? – disse Glauco, devolvendo ao bolso a caneta com uma agulha de seringa retrátil embutida.

Juliano largou a maleta no chão e se abaixou perto de Jaques, conferindo se ele estava acordado.

- O quanto de toxina isso tem?

- Não muito – disse Glauco – O máximo que pode fazer é deixá-lo desacordado por alguns minutos.

- Não devíamos por ele entre outro lugar?

- Não. Como eu disse, tem pouca toxina. Temos que ser rápidos, porque daqui a pouco ele acorda.

Cassiano se voltou para o painel.

- Como se abre isso? – ele procurou pelos cantos do vidro – Aqui! – no canto da bancada de madeira, achou uma pequena fechadura – Só precisamos encontrar a chave agora.

- Que chave o quê? Sei como abrir – Glauco tirou um clipe do bolso e se dirigiu a pequena fechadura, enquanto Cassiano permaneceu observando as moedas pratas, com o rosto com louros. O símbolo inconfundível da Marca Imperial. Pela primeira vez estava cara a cara com os famosos denários.

- Não parecem moedas mágicas.

- Mas são mais poderosas do que você imagina – Juliano se levantou depois de por os papeis de volta na maleta – Jogue em uma fonte de água que tenha sido enfeitiçada e elas lhe realizarão um pedido.

- Qualquer um?

- Não. Há várias limitações. Quantas moedas têm?

- Contei doze – disse Cassiano, observando através do vidro.

Glauco conseguiu destrancar a fechadura e abriu a tampa. Juliano abriu a maleta e tirou um saquinho cheio de réplicas de denários. Em um processo ensaiado e rápido, retiraram uma a uma com uma luva e substituíram cada moeda pela réplica, pondo exatamente no mesmo lugar e posição. As autênticas foram postas na maleta.

- Pronto. Ele nem vai notar a diferença – Glauco fechou a tampa e trancou a fechadura usando o clipe – Vamos embora.

- Esperem. E o Tavares? – Cassiano olhou para o homem ao chão.

- O que tem?

- Não podemos deixar ele aqui.

- Já temos as moedas– disse Glauco - Vamos dar o fora.

Cassiano se abaixou e pegou os braços de Jaques.

- Alguém me ajuda.

- O que está fazendo? – Glauco ficou alarmado.

- O que parece? Estou ajudando ele. Juliano, por favor, pegue os pés – com certa surpresa, Cassiano viu Juliano se abaixar sem discutir e pegar os pés de Jaques, para ajudá-lo. Os dois o levantaram e o carregaram pela galeria e pelo corredor, o colocando em uma poltrona reclinável com encosto para os pés na sala de estar. Cassiano se afastou ofegante e observou o anfitrião desacordado. Tavares parecia ter por volta de cinqüenta anos. Suas olheiras, seus fios grisalhos no cabelo loiro e suas rugas eram mais visíveis agora, demonstrando uma casca de tristeza que combinava com a escuridão daquela casa escura, um verdadeiro mausoléu de um homem vivo.

- Acha que ele vai ficar bem?

- Eu não confio nessa seringa do Glauco, mas deve ficar – Juliano deu tapinhas em Jaques que mexeu o rosto – Veja. Ele está acordando.

Jaques abriu os olhos, fitando os três em sua frente.

- O que aconteceu? – disse, esfregando o rosto.

- Você teve uma queda de pressão na galeria e desmaiou. O trouxemos para a sala.

- Nossa! Que embaraçoso. Isso nunca me aconteceu antes.

- O senhor está bem? – Perguntou Cassiano.

- Com um copo de uísque ficarei melhor – Jaques simulou um sorriso forçosamente.

- Como o senhor já está melhor, já vamos – Glauco falou – Você precisa descansar.

- Não! – Mesmo zonzo Jaques se levantou – Onde está a papelada? Sobre o teste desse Instituto que vocês falarão?

- Realmente não creio que seja conveniente agora – disse Juliano – Você acabou de ter uma queda de pressão.

- Estou bem – Jaques estendeu a mão – E insisto. Por favor.

Os três se entreolharam. Era preciso manter as aparências

- Claro. Aqui está – Juliano o devolveu os papeis.

- Eu só preciso dos meus óculos. Um minutinho – Jaques saiu para o corredor e entrou no seu escritório ali perto. Fechou a porta e pegou seu telefone, trêmulo. Estava mudo. “Droga!” ele sussurrou, estava tão nervoso que não se deu conta de que falava em voz alta. “Cortaram a linha. Eles pensaram em tudo”.

- Senhor Tavares? Está tudo bem? – veio uma voz do lado de fora.

- Sim – Jaques foi até a porta e a abriu – Não consigo achar meus óculos. Pode me ajudar?

- Está bem – Glauco entrou e antes que percebesse Jaques saiu e fechou a porta por fora – Senhor Tavares? – ele exclamou, se virando logo que ouviu a batida. Forçou a maçaneta, mas não adiantava – Você está aí?

- Droga! – Jaques se fez de irritado – A porta trancou. Preciso da chave reserva.

- Algum problema? – Juliano se aproximou ao lado de Cassiano.

- A porta emperrou, prendendo o amigo de vocês lá dentro. Podem ajudar?

- Com licença – Juliano se aproximou, deixou a maleta ao lado e pegou a maçaneta, sacudindo a porta. Cassiano ficou ao lado, e até ensaiou uma investida se jogando com o ombro, mas antes que pudesse aplicá-la a porta abriu, quase fazendo Juliano cair para dentro, sobre Glauco.

- Juliano, você conseguiu! – disse Cassiano.

- Que Juliano que nada! - corrigiu Glauco – Estava só trancada. Eu usei o clipe – disse, saindo – Ué?! Cadê o velho?

Os outros olharam em volta.

- Estava aqui há um minuto.

- Ah... Não! – exclamou Juliano, olhando para todos os lados

- O que foi?

- A maleta!... Onde está a maleta?

- Não deixou na sala?

Juliano correu até a sala e procurou por todos os cantos.

- Não. Eu estava com ela. Tenho certeza – saiu correndo para a galeria, mas era inútil. Ele sabia que não estava ali.

- Por favor, diga que você encontrou – suplicou Glauco, se aproximando com Cassiano.

- Não. O velho e a maleta sumiram – logo que Juliano falou, os três trocaram um olhar, entendendo a gravidade da situação. Jaques sabia. De algum modo sabia da troca, mesmo aparentemente desacordado.

- Você não disse que ele estava desacordado, Juliano?

- Ele estava. Como poderia saber que ele estava ouvindo tudo?

- Senhor Tavares! – Glauco saiu em disparada para fora da galeria, chamando por Jaques. Os outros dois saíram e o imitaram, adentrando vez ou outra nos cômodos de portas abertas que encontraram, perscrutando o máximo possível do casarão.

- Esperem! – Cassiano parou abruptamente na entrada de um corredor – Ouviram isso? Parece uma ignição – ele correu pelo corredor, acompanhado pelos outros dois.

Acabaram chegando a uma garagem a tempo de ver a porta terminar de subir e um carro dá a arrancada, derrapando as rodas no piso e saindo.

Glauco tirou um revolver preso no cinto à suas costas e correu dando tiros, seguindo o veículo pela rua desolada, cuja vizinhança se resumia às árvores e aos esquilos, mas o carro já havia ido embora, virando em uma esquina ao longe.

- Era ele? – Cassiano veio correndo ao encontro de Glauco.

- Só podia ser.

- E agora? A Efígie vai nos matar.

- Não se matarmos Tavares primeiro – Glauco deu meia volta e começou a andar depressa na outra direção. Cassiano o acompanhou e eles se encontraram com Juliano que os seguiu.

- Você vai matá-lo?

- O que você acha, iniciante? Por sua culpa ele não só fugiu com as moedas, como ouviu nossa conversa sobre elas. Por causa de sua preocupação, vamos ter que matá-lo para proteger o segredo da Marca.

Cassiano permaneceu calado, andando ofegante ao seu encalço.

- Não adianta trocar acusações agora – disse Juliano – Temos que encontrá-lo.

- Analisei o mapa antes de vir – disse Glauco – A estrada por onde seguiu se bifurca e segui para o norte e para o sul. Pelo norte se chega a um hotel e depois dele há a cidade.

Os três estavam terminando de contornar a propriedade e, virando o jardim, já visualizavam o carro.

- E pelo sul?

- Um bosque e um lago. Muito improvável que tenha seguido por aí – chegando ao carro, Glauco se virou para os companheiros – Juliano, fique aqui na casa, para qualquer coisa – se virou para Cassiano – Irei para o norte com o carro, e você irá conferir na direção oposta – dizendo isso, praticamente empurrou o revólver nas mãos de Cassiano – Se o encontrar nos telefone, mas esteja pronto para fazer o que for necessário.

Cassiano olhou para o revólver, sentindo o peso da arma e da responsabilidade. Sequer sabia se era capaz de dar um disparo.

- Não irei decepcionar – disse, mesmo assim

Glauco assentiu. Era isso mesmo que ele queria ouvir.

* * *

A casa do lago não deixava de contrastar com a casa de Jaques que, com sua magnitude sólida, paredes trabalhadas em pedra e janelas arqueadas, demonstrava a firmeza de uma fortaleza, ao passo que a primeira era praticamente uma cabana às margens rochosas do lago. No teto existiam painéis solares que forneciam energia, e uma clarabóia combinando com as muitas janelas de vidro que aproveitavam a iluminação do dia. Plantas aéreas pendiam de jarros presos às paredes de madeira, balançado ao vento como pêndulos de um relógio.

O carro freou, derrapando na terra e deixando com suas rodas rastros que lembravam uma marca de garras. Jaques saiu do veículo abraçado à maleta e bateu a porta em um baque, saindo angustiado até a casa.

- Melissa! – chamou, olhando em volta – Melissa! – suas batidas na porta reverberaram pelas vidraças. Antes que decidisse sair e procurá-la em outra parte da propriedade, Melissa abriu a porta. Era uma jovem que tinha idade para ser sua filha, cabelos curtos, usando calça jeans e camiseta.

- Jaques? O que...

Jaques entrou sem ao menos deixar Melissa terminar de falar. O interior preservava a mesma naturalidade que o lado de fora. O bosque era visível através dos vidros das janelas, as folhas das árvores caindo secas, anunciando a chegada do inverno.

- Você tem que me ajudar. Por pouco eles não me pegaram.

- Quem? – perguntou Melissa, notando o estado excepcionalmente agitado de Jaques – Quem quis te pegar?

- Três... Três homens foram até a minha casa dizendo que queriam ver o meu acervo de antiguidades, mas era mentira. Eles queriam roubar.

- Você foi assaltado?

- Não. Não exatamente – Jaques se levantou e foi à janela, olhando se não havia alguém por perto – Só queriam algumas moedas antigas que encontrei alguns meses atrás.

- Moedas? Por quê?

Jaques se voltou para ela.

- São mágicas – disse – Eles disseram que elas realizam desejos.

Melissa continuou olhando para ele.

- Quê?

- Isso mesmo. Antes de pegar as moedas eles me envenenaram injetando alguma coisa em mim e eu caí no chão. Eles pensaram que eu estava desacordado, mas eu estava apenas paralisado e ouvi toda a conversa deles.

Melissa pegou o braço de Jaques, o conduziu ao sofá e o fez sentar entra as almofadas.

- O que realmente você ouviu?

- Estou dizendo – Jaques continuou depois que Melissa se agachou a sua frente para ouvi-lo – Eles disseram que são mágicas e que podem realizar desejos. Eles aparentemente trocaram as moedas verdadeiras por falsas e depois me puseram na sala, dizendo que tive uma queda de pressão e desmaiei – falou, e Melissa pode sentir o odor forte de uísque a cada palavra. Pobre Jaques. Não era o mesmo desde a morte da mulher, vivendo sozinho naquela casa, entre aquela velharia, se entupindo de bebidas e tendo apenas sua obsessão pela guerra civil como sua razão de viver. Era questão de tempo até que ficasse perturbado.

Melissa se levantou.

- Vou chamar a polícia.

- Não vai adiantar. Eles já dever ter se escondido e como não há sinais de arrombamento nem nada, os policiais vão achar que fiquei louco.

- O que não é uma hipótese totalmente descartável, se me permite dizer.

- O quê?... Acha que não estou falando a verdade? Veja – Jaques abriu a maleta, exibindo o interior – Isso é deles. Tive tempo de pegar antes de fugir – entre papeis em branco e um mapa estava a sacola com os denários falsos restantes, os verdadeiros estavam bem protegidos em uma bolsa, disfarçadamente anexada ao fundo.

Jaques a desprendeu do zíper e a abriu, vendo o conjunto de moedas prateadas brilhando como um tesouro recém descoberto.

- Essas são verdadeiras – ele descartou a maleta de lado e se levantou.

- Acha mesmo que são mágicas?

- Bem, do jeito que falaram pareciam realmente convencidos disso. Aposto que fariam qualquer coisa por elas.

- É? – Melissa pensou um minuto – Inclusive segui-lo até aqui? – ela foi até a janela e olhou entre as árvores, não vendo algo fora do comum saiu andando pela casa em direção à saída dos fundos.

- Aonde vai? – Jaques a seguiu.

- Ver se não tem ninguém no vigiando.

Os dois saíram, chegando a um piso de madeira que se estendia até o lago, se projetando sobre as águas como um píer quadrado. Pelos lados se via continuar a praia de pedrinhas brancas que margeavam o bosque.

- Você pode ser vista ou pega por alguém – Jaques alertou – Você não está entendendo, não é? Eles são perigosos.

Melissa parou perto da beira da plataforma e se virou para ele.

- Se são tão perigosos como fala, devia entregar as moedas para irem embora. Não é apenas isso que querem? Ou quer ficar com elas porque também pensa que são mágicas?

Jaques olhou para a pequena bolsa de moedas.

- Podem não ser mágicas, mas deve ser a ponta do fio que levará para algo muito maior. Dificilmente pessoas agem como eles agiram por conta própria. Ele dever ser enviados por alguém, um organização ou algo mais obscuro. Eles moedas são a chave para descobrir.

Melissa se aproximou, pegou em seus ombros e o olhou afetuosamente nos olhos. Era uma das poucas pessoas com quem Jaques mantinha alguma amizade.

- Você e suas teorias. Você chegou aqui nesse estado com uma história mirabolante, não me deixa chamar a polícia. Queria saber como posso te ajudar.

Jaques suspirou, exausto.

- Só me deixe pensar um pouco – disse – Preciso pensar no que devo fazer.

Melissa o soltou.

- Está bem. Vou respeitar seu espaço – ela se afastou em direção à entrada - Estarei lá dentro se precisar – e entrou, deixando Jaques sozinho no fim de tarde.

Ele andou até a beira do lago, pegou uma moeda da bolsa e a observou na palma da mão. Talvez Melissa tivesse certa ao dizer que ele estava louco. Tinha se tornado um velho maluco e bêbado que ouvia coisas e suspeitava de magia e conspirações. Um solitário amargurado que colecionava lembranças.

- Ah, Amélia – chamou o nome da esposa, a falta que sentia era fria e cortante como os ventos de inverno – Se você estivesse aqui – fechou a mão, prendendo a moeda entre os dedos e olhou para o lago, como se este fosse um enorme espelho onde pudesse ver algo no reflexo do céu distorcido e tremulado pelas marolas.

Não teve consciência de quanto tempo passou fitando o vazio, até que ouviu o som de passos sobre o cascalho. Ao se virar, sentiu uma leve tontura como o de uma maresia ou embriaguez ao ver o mais novo de seus visitantes subindo o degrau da plataforma e lhe apontando uma arma.

- Como... Como me encontrou?

- Intuição – disse Cassiano – E seu carro lá fora foi uma bela pista.

- Vai me matar?

- Se você for bonzinho e colaborar – Cassiano se aproximou pé ante pé – Só preciso que me entregue as moedas.

- Por quê? Acha que possuem poderes mágicos? – o coração de Jaques martelava dolorosamente e o sangue em suas veias gelava, mas ele permaneceu firme.

- Só me entregue as moedas – Cassiano estava a poucos metros de Jaques que estendeu o braço sobre as águas.

- Chegue mais perto e vai ter que ir pegar suas preciosas moedas debaixo d’água.

Cassiano prendeu a respiração.

- Não faça nada que possa se arrepender. Facilite a situação e vamos chegar a um acordo. Ninguém precisa se machucar.

- Não me diga. Os seus amiguinhos não vão gostar e vão vir aqui me pegar? Porque você não parece muito disposto a fazer alguma coisa – Jaques afastou o medo, o sufocando sob a carapaça de sarcasmo e deboche que sempre o protegeu – Acha que isso realiza desejos, guri? E se eu fizesse um pedido agora jogando uma moeda no lago?

- Não funciona assim. As moedas têm limitações.

- É mesmo? Que tal testar os seus limites? – Jaques mostrou a moeda que segurava fora da bolsa – Um pedido bem absurdo, o que acha? Eu desejo... Sei lá... Que apareça aqui um dinossauro – dizendo isso jogou a moeda que seguiu sua trajetória livre pelo ar, cintilando em prata, até sumir caindo na água, uma série de círculos concêntricos se espalhando do ponto onde ela caiu em um clique agudo.

- O que você fez?! – bradou Cassiano.

- Ora, eu joguei a moedinha. Não é assim que se faz o pedido? E jogarei uma por uma se...

Uma onda irrompeu, percorrendo a superfície da água e quebrou ao atingir a plataforma. A água se espalhou, molhando os pés dos dois e ensopando o piso de madeira. O vento rugiu com mais intensidade, como se uma tempestade localizada ameaçasse a nascer naquele momento.

- O que foi... – Jaques parou de falar quando seu olhar foi levando da base para o centro do lago, onde mais uma onda surgia bem maior que a primeira, mas ao contrário desta, ela não se espalhou, continuou subindo, crescendo. Ambos, Jaques e Cassiano, se esqueceram um instante um do outro e observaram a massa de água tomar forma, se avolumar e depois cair como uma cascata provocando uma espuma através da qual uma superfície escamosa se tornava visível. A partir desse turbilhão se elevou outra massa de água que se ergueu como uma muralha, a água caindo e revelando um imenso arco que subia se pondo ereto como um tronco gigantesco sobre a superfície. Um instante se passa e o longo pescoço estava totalmente visível.

Jaques cambaleou para trás e acabou escorregando no piso. Ele caiu e soltou seu querer a bolsa, fazendo as moedas se espalhar pela madeira da plataforma escurecida pela água, se destacando em prata como estrelas no céu. O colecionador tentou se levantar às apalpadelas e teve tempo para catar apenas três moedas antes de o pânico falar mais alto e ele correr para longe dali, através da pequena praia de cascalhos.

Cassiano não se importou com a fuga de Jaques, de início. Preso em seu próprio corpo petrificado de espanto e encantamento, não tinha olhos para outra coisa além da criatura imensa que se movia lenta e graciosamente na água. Ela ergueu uma pata e seu passo provocou um pequeno tremor, enquanto andava devagar arrastando ondas. Sua pele – azulada, Cassiano reparou apesar da distância – se destacava como uma aquarela entre o lago o as nuvens crepusculares, com o animal se movendo como uma ilha a deriva, transportando quem olhasse para uma época remota, tempo que em seres como aquele reinavam sobre a terra.

Um rugido calmo e ao mesmo tempo retumbante, parecido com o canto de baleia, ecoou pelos ouvidos e pela mente de Cassiano, esclarecendo os pensamentos como uma lufada de ar fresco. Seria possível? Cassiano tentou recuperar o fôlego diante daquele prodígio. Como? E ao se perguntar isso ele lembrou. Jaques. As moedas

- Tavares! – ele piscou e olhou em volta.

O rapaz correu com a arma em punho, sem reparar que o que procurava estava logo ali, espalhado, ao alcance de suas mãos. Correu pela margem do lago, certo de que Jaques teria corrido por ali. Ainda ouvia o rugido do animal gigantesco se assomando na água ao longe, mas ele mal o olhava, procurando pelo homem que tinha fugido. As palpitações eram intercaladas pelos calafrios que tinha só em imaginar o que poderia ser pedido, o que mais as moedas poderiam fazer.

Estava dando a procura como inútil, beirando a desistência diante do cansaço, quando viu um homem não muito longe, ajoelhado sobre a praia de cascalhos brancos. Cassiano ergueu a arma e se aproximou, observando a cena que parecia saída de uma pintura impressionista: o homem ajoelhado com as mãos no rosto às margens do lago cinza com o fim do dia, as árvores atrás dele, acenando com a brisa, como se conversassem entre si, comentando a sorte do pobre infeliz.

Cassiano se aproximou vagarosamente, contando cada passada sobre as pedras. Se, por acaso, chegou a acreditar que estava sendo silencioso, deve ter ficado surpreso ao descobrir que estava sim sendo ouvido, o que estava mesmo era sendo ignorado.

- Eu pedi – a voz de Jaques saiu abafada. Ele tirou as mãos do rosto e olhou para Cassiano – Eu fiz o pedido e joguei a moeda, mas ela não me atendeu.

- O que você pediu? – perguntou Cassiano, temendo a resposta.

- Eu desejei que ela aparecesse aqui, na minha frente, viva.

- Ela? – Cassiano abaixou um pouco a arma – Quem?

- Amélia. Minha mulher que morreu. Eu joguei uma moeda e desejei com todas as minhas forças, mas não adiantou – tinha um clamor quase infantil na maneira como falou – Eu joguei outra moeda e de novo nada aconteceu. Sobrou apenas essa – mostrou uma moeda prata em sua mão.

Cassiano sentiu um nó na garganta, o sufocando. Talvez esse fosse o limite que seu avô e os membros da Efígie falaram. Não era possível devolver a vida para quem já tinha ido, mesmo com o poder das moedas.

- Sinto muito, senhor Tavares – Cassiano falou – A fonte não atende esse tipo de pedido.

Jaques o olhou com um olhar grave.

- Está mentindo, não está? – falou, parecia convicto do que dizia – Você sabe o que fazer. Como atender esse pedido.

- Não. Não sei. Isso é impossível.

- Impossível como? Essas moedas trouxeram um dinossauro de volta. Por que não uma mulher?

A pergunta colocou Cassiano em xeque.

- Sinceramente em não faço idéia – disse ele, a dúvida também o incomodando – Vai ver é diferente.

Uma sombra passou pelo rosto de Jaques. Sua expressão rubra, ainda efeito do uísque, cedeu lugar à outra mais fria e seca, como a paisagem em volta.

- Não vejo no que pode ser diferente.

- Não é simples de entender – falou Cassiano, sem abaixar a arma totalmente nenhum minuto, o que não parecia incomodar Jaques.

- Não é simples – o homem mais velho repetiu com desprezo – Sabe o que é simples? Pedir que você morra caso não possa me dizer o que fazer para trazê-la de volta. É um pedido simples o bastante para a fonte dos desejos? – ele estendeu o braço com o qual segurava a moeda com o punho cerrado, e manteve-o estendido sobre as águas na margem. O coração de Cassiano pareceu parar por um momento.

- Senhor Tavares, por favor... – a voz de Cassiano vacilou. Ao julgar pelo ódio cortante no olhar de Jaques, tanto era possível ele desejar aquilo, como era possível do lago o conceder o pedido. A resposta era sim. Era um pedido simples o bastante para a fonte dos desejos.

- Você deve saber muita coisa sobre essas moedas, meu jovem. Vai me ajudar ou não vai?

- Desculpe.

- Vou contar até dez. Sete... Oito...

Cassiano estremeceu. Calculou a distância entre eles, constatando que não era possível correr até Jaques e o impedir sem que ele soltasse primeiro a moeda.

- Nove.

- Tudo bem, eu posso ajudar. É só me seguir – Cassiano falou, mas dava para ouvir a mentira na sua voz, vê-la em seu olhar, em suas mãos trêmulas e no suor que escorria por seu rosto, apesar do início de uma fria noite de novembro.

- Não, meu rapaz – Jaques falou de maneira pesarosa – Você não pode me ajudar – seus dedos foram aos poucos soltando a moeda – Eu desejo que...

O tiro interrompeu o resto da frase. O braço estendido foi abaixado, os dedos abriram frouxos, e a moeda finalmente caiu no lago, mas não causou mal algum. O pedido não tinha sido feito, e o homem que o deveria ter concluído olhava o nada, uma mancha vermelha aflorando sobre o peito. Exatamente sobre o coração ferido.

O corpo desabou na água, sob o olhar incrédulo de Cassiano.

- Não! – seu dedo soltou o gatilho e ao se dar conta do que tinha acontecido jogou a arma que caiu estalando nas pedras – Senhor Tavares! – correu até o corpo, se abaixou sobre ele e pôs a cabeça em seu colo – Você vai ficar bem – Cassiano pôs a mão no ferimento, a mancha escarlate maculando a água e o cascalho – O que eu faço? – suplicou para ninguém em particular, vendo os olhos de Jaques saindo de foco, suas pálpebras fechando e a vida se esvaindo dele.

- A moeda! Onde está a moeda? – tirou a mão do ferimento, e tateou em volta e por baixo de Jaques. Esticou-se sobre ele e encontrou a moeda perto do pé. Segurou a peça prateada com força ao ponto de os nós dos seus dedos ficarem brancos, e desejando veementemente jogou a moeda que estalou, caindo na água – Eu desejo que ele fique vivo – disse alto – Eu desejo que fique vivo – repetiu, mas já era tarde. Esperando que algo acontecesse, e o silêncio dominando o lugar como a noite, teve a mesma lição que o homem inerte em seus braços: Não. Não é possível trazer os mortos de volta.

- Eu sinto muito – Cassiano sussurrou. As desculpas não eram apenas para o cadáver em sua frente, mas também para outro alguém, um homem que o tinha ensinado a pescar, e que tinha acreditado que ele podia ser diferente em uma irmandade corrompida de orgulho e ambição.

Um chamado o alcançou em meio à desolação. A criatura pré-histórica veio se aproximando como se sentisse sua presença, avançando pelo lago feito um navio quebra-gelo até perto de onde estava Cassiano, a cabeça imensa quase alcançando as árvores não muito longe.

Cassiano se levantou, andou um pouco, molhando a barra de suas calças e pegou a moeda nas águas claras. Pensou no que tinha dito a Jaques, um pouco antes, sobre ser diferente trazer uma pessoa e um dinossauro da morte. Um animal podia ser apenas uma ilusão, um ser que nunca tinha existido realmente e apenas se parecia com o que foi pedido, enquanto uma pessoa precisava de sua alma, sobre a qual a magia não tinha nenhum controle.

- Eu quero que suma! – Cassiano deixou a moeda cair na água e olhou para o dinossauro. Uma camada de gelo brilhante como o luar se espalhou pela pele da criatura ancestral, a cobrindo da cabeça à cauda, e a transformando em uma montanha gelada que se desmanchava rapidamente, voltando para onde veio.

Cassiano se abaixou e apanhou novamente a moeda, mas esta perdeu seu brilho logo que saiu da água, passando de um aspecto prateado para algo mais opaco. Um sinal de que se o pedido era válido, a moeda não poderia ser mais usada. Cassiano a segurou e permaneceu onde estava, ouvindo o vento e o gelo que se quebrava, sumindo para o esquecimento.

* * *

Supostamente a ocasião era para ser mais festiva. Alegre, talvez. Mas os senhores no salão de mármore não demonstravam muito contentamento, sentados ao redor de Cassiano que ficava de pé no centro da sala, os rostos impassíveis.

- Pois bem – Marconi falou de uma bancada mais alta, depois da leitura do relatório – Como viram, mesmo errando ao ignorar o aviso dos colegas que pediam para sair logo da casa, o que fez Jaques Tavares fugir temporariamente com os denários, Cassiano Nunes, em uma demonstração de agilidade, conseguiu encontrá-lo, matá-lo preservando o segredo da Marca, e recuperar as moedas que estavam perdidas da Efígie há séculos. Onze ao todo.

Cassiano agradeceu em silêncio pelo fato de a Efígie não saber precisamente quantas moedas estavam com Tavares. Só se tinha conhecimento que existiam denários em meio a outros valores monetários antigos e com a desatenção de Glauco e Juliano na hora da substituição, não repararam que ainda faltava uma que Cassiano não conseguiu recuperar do lago antes que Glauco chegasse depois de seu telefonema.

- Com a missão cumprida, Nunes está integralmente incluído na Marca – Marconi olhou para Cassiano – Algo a acrescentar, iniciante? – perguntou.

- Não senhor – disse Cassiano – Tudo o que tenho a dizer está no relatório – falou, sem o menor remorso por omitir partes importantes, como a menção de Tavares sobre uma batalha da guerra civil vencida de uma maneira misteriosa, e cujos denários eram uma pista para saber como conquistaram a vitória. E tudo sobre um lago que não se sabia, mas estava enfeitiçado, e um dinossauro.

Glauco chegou bem depois que tudo aconteceu, e Cassiano estava feliz que o que se passou era um segredo só dele. Para todos os efeitos, não existiam mais fontes enfeitiçadas.

- É hora de devolver o que é seu por direito – Marconi fez um gesto, e um rapaz foi até Cassiano levando o anel que era de Ludovico em uma almofada, lembrando curiosamente uma dama de honra.

Cassiano pegou o anel e o pôs no dedo anular direito.

- Bem vindo, Cassiano – Marconi se levantou – Seja muito bem vindo à Efígie, a Marca Imperial – ele aplaudiu, e foi acompanhando pelos demais presentes, homens de outras partes do país, representes do círculo dos sábios e outras camadas da hierarquia da Efígie. Homens bem vestidos e educados, pessoas importantes que eram capazes de ações no mínimo questionáveis em nome do poder. Cassiano se curvou em agradecimento e os aplausos continuaram, mas só o que ele ouvia eram palavras, uma voz familiar em sua mente, vinda de uma carta escrita a próprio punho e deixada para ele em um álbum de selos, a voz de quem conviveu entre aquela gente tempo o suficiente para saber o que falava. “Não confie na Efígie, Cassiano” dizia.

Não confie na Marca.

* * *

Uma jovem mulher agasalhada em sua cadeira acolchoada segurava uma xícara de chocolate quente fumegante, enquanto observava o lago em um dia nublado, especialmente triste. Ainda não acreditava que seu amigo tinha sido assassinado praticamente em sua casa, e a pessoa que tinha tirado sua vida estava à solta em algum lugar. Ela não se sentia a vontade, apesar de garantirem que o assassino dificilmente voltaria ao lugar do crime.

Pelo menos dois policiais a visitaram naquele dia. Fizeram perguntas e ela repetiu o que tinha dito na delegacia: que Tavares tinha chegado com uma história mirabolante de que três homens haviam tentado roubar suas moedas por acreditarem que eram mágicas. Ela o deixou à beira do lago e foi tomar um demorado banho de espuma em sua banheira, ouvindo música. Saiu minutos depois, não encontrando mais o amigo.

Os policiais ouviram tudo atentamente. Pareciam acreditar nela, e não levantaram suspeitas quanto à sua pessoa, afinal, não existia qualquer prova que a ligasse à morte de Jaques. Depois que ela terminou de falar, os policiais se entreolharam e assentiram como se confirmassem alguma coisa. Eles disseram que voltariam no dia seguinte, apenas para confirmar se ela estava bem.

A mulher tomou mais um gole de seu chocolate e pensou em um detalhe que tinha reparado naqueles policiais, antes de saírem. Os dois usavam anéis iguais. Prateados, com ramos de louros desenhados. Ela não sabia que tendência era aquela, mas tinha gostado. Os anéis eram belos, de uma beleza límpida e fria, como uma manhã clara de inverno.

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Tema: Sociedade Secreta.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 14/10/2014
Reeditado em 14/10/2014
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