"Está escrito em algum lugar que a noite habita sobre o dia, tal como o dia faz morada sobre a noite"
(Sidney Muniz)

 


  Um dia me perguntaram se sou louco, se tudo que penso e escrevo não passa de mera ficção, imaginação fértil de uma mente promíscua. Pois bem, lembro-me desse dia como dos demais, recordo até que essa mesma data ainda não chegou, já que faltam onze anos para tudo acontecer novamente. Esses mesmos longos onze anos.
 
  Conhecerei Raquel daqui oito meses, e nesse intervalo de tempo não terei muitas descobertas, por fim a única coisa que compensa viver repetitivamente é minha história de amor com ela, o restante já se tornou entediante demais. Minha vida é assim, e para tudo e para todos há um tempo, e isso deve ser respeitado.
 
   E aqui começo e termino minha história. Sou como aquele animalzinho bandoleiro que carrega um queijo estilhaçado na boca. Sim, apanhado na ratoeira e agonizando, mas teimoso a degustar com escárnio, e engolir por meio de uma garganta comprimida, o suculento e derradeiro pedaço de Gruyere.

 

 
O Profeta, o Dia, e a Noite – DTRL18
 
  Conheço o inferno, e acredite, realmente o aprecio. Não é aquilo que falam ou que pensam. Não. É algo maior e ainda mais intenso. É frio, digamos que quase congelante. E engana-se aquele que imagina que a  besta que assombra as almas possui chifres. Sim, aqui estou a desmistificar uma lenda. E é preciso, afinal vi coisas demais. E afirmo que de tão bela, magnífica e poderosa, que me perdoem religiões e deuses, mas a adoraria a troco de mínguas e até mesmo a deveria mil favores.
  
  Sim, certamente é loucura. Devemos ser todos loucos. A maioria crê que um suposto criador deixou tal livro grosso, de receitas e ingredientes tanto quanto incertos. Porém palavras tortas, e demasiadamente inteligentes se direcionam em nosso córtex de acordo com a mente e estado emocional de cada individuo. Parábolas, distribuídas por antenas paranóicas. "E aquele que nunca pecou, que atire a primeira pedra" ele disse. Mas então, responda-me: Jesus por acaso lançou alguma?


  Ah, onde está a coerência dos atos? A exatidão dos fatos? Simbolicamente correto é o amor, que anestesia até mesmo o mais horrendo ser. Seremos nós o prelúdio de algo ainda pior que a própria raça humana. Blasfêmias, sim, mas salve o erro, pensemos: Minhas blasfêmias, ou suas?

  Dentro do ventre da terra cresce a raiz do que regamos aqui de cima. Ali, bem abaixo desse inferno. Um castelo construído por paredes sólidas de ódio, onde apenas aguarda o momento de seu reinado sobre o refúgio. Aqui, bem onde estamos cresce a verdadeira imagem do que representa o poder da criação, e para o nosso bem, esse também é o similar poder da destruição. Pois é, o que precisamos nesse momento é uma boa dose de caos.

 E que o amor próprio reine. Ame a si mesmo muito mais do que ama ao próximo e assim cuidará do que está a sua volta, e fará com que os que te rodeiam preservem seu habitat.
 
  Deixem-me esclarecer no que de fato acredito. Bom, tenho uma dádiva. A primeira vez que soube de meu dom, foi como quando um flash de uma câmera fotográfica nos acerta em cheio, e nos cega. A principio fiquei estático ao perceber tão ofuscante luz. Pense em um fotografo que com um simples e leve pressionar de um dedo repentinamente lhe arremessa uma luz tão intensa que o cega, e assim da mesma forma tão abruptamente essa mesma claridade estarrecedora se vai, tal qual um raio corta o céu numa noite tempestuosa. Foram apenas segundos em transe e subitamente me vi desperto, embora não o estivesse. E quando é que de fato estamos?

  Vislumbrei amaldiçoada cena, e assim a vi, e revi. Vezes seguidas, e dias sucessivos, como uma intermitente e maliciosa enxaqueca que não cessa a custo algum. E sim, devia ter dado ouvidos aquele maldito aviso, e consultado os médicos, visto que não seria um Dorflex ou uma Neosaldina que iriam amenizar tamanha e complexa dor. Não, os sintomas continuaram até que minha mente entendeu como controlar aquilo.

  E o filme indigesto e litigioso passou. Não em preto e branco, pois se o fosse, a cor purpúrea do sangue não seria tão perceptível. O gosto da morte não me lembraria o cheiro de sofrimento, tampouco as feras seriam tão assombrosas. Era uma viagem no tempo, e continua sendo e não para nunca. Por quê? Acho que porque é assim que ele quer.

  Estava aqui e tão repentinamente estava lá. Passeava de bicicleta quando uma chuva de folhas secas denunciou o outono, chegaram dançando em ritmo algum em razão do vento soturno que as atingia, insólito. Deslizavam em arcos de vento, surfavam no pitoresco ar que conduzia as pragas e a morte. Nuvens cínicas, aveludadas, disformes e cinzentas, irrompendo espécies diversas de pássaros fazendo com que esses debandassem em alvoroço incomum. Donde as espiava, as aves se assemelhavam a um bando de gafanhotos dispersos no ar. Senti certo desconforto, uma tonteira, e qualquer súbita náusea confrontou-me. A primeira experiência foi dolorosa.

  Ainda fora de órbita caí da bicicleta como se nunca houvesse montado numa, mas isso não era relevante naquele momento. O que de fato me acometia era não saber como afinal havia parado ali? E meus joelhos bateram contra o calçamento, arranharam-se e sangraram, e ouvi os gritos da multidão que se aproximava em desacerto. Vozes e mais clamores desconhecidos, zunzunzuns conturbados. Mas onde eu estava? Onde estou? Eu nunca sei e não sabia. A multidão não se preocuparia com minha situação, não mesmo. E se não me erguesse com certa agilidade, me pisoteariam como uma boiada desnorteada, isso se pudessem é claro. Enfim, nunca estive lá, mas onde é que estava afinal?

 O mundo é algo alucinante demais, é sim. Ergui meus olhos e as nuvens se moviam rápidas demais, varriam o céu como se o dia virasse noite, como se a noite tão logo fosse eterna, mas não era. E algo é? Não sei... Espero que não. Pássaros continuavam a fugir, uns atropelando outros e todos indo a lugar algum. O mais assustador é que não havia para onde ir, visto que tal fenômeno arrebatador partia de todas direções.

  Quem eram eles? Anjos ou demônios?

O céu se abria e asas brotavam de nuvens. Dentes ferozes derramavam sangue, atacavam a carne e a essência. Subjugavam a vida e cuspiam a morte. O mundo estava acabando? Sim, há tempos ele está.


  Esse é apenas o começo, e entenda, por mais que pareça confuso, acredite em mim, isso aconteceu. Todos morremos. Todos! A morte é apenas o principio. E o que é o principio? Não seria ele o fim?

 É... É difícil acreditar. Muito mais é compreender. Vivo duas vidas para conseguir assimilar isso tudo, e não serão palavras mal encaixadas que conseguirão dar razão ao que escrevo nesse maldito diário, não!

O que escrevo é a verdade, e nada mais. É uma fissura que contradiz mentiras pregadas por meio de tinta, papel e palavras.

O apocalipse nada mais é que um sonho, a profecia de um deus que insiste em destruir o que mais ama. É a mais sólida palavra de um livro que conta tão simplesmente uma estória.

 

Dia 12 de abril de 2017

 Esse é meu diário. São minhas lembranças. Eu o conheci. O nome dele é Erik. Ele me pareceu tão familiar. Como ele é especial. Ao primeiro olhar, ao visitar aqueles olhos cinzentos e me ver dentro daquele espelho de lobo percebi que minha vida sem o homem não fazia sentido algum.

 Nem mesmo a dor de saber que viveríamos tão pouco tempo juntos poderia me desanimar. Sei que isso pode soar de forma cruel, mas preciso dele, o amo de um jeito muito especial. É minha alma gêmea, e sou a dele. Como Eva feita da costela de Adão, tão real, tão fabuloso.

Como esse sentimento se aflorou assim? Meu Deus! Por que demorei tanto para perceber...



Dia 12 de maio de 2017

 Um mês se passou e esse desejo maluco só aumenta. Não me encontrei com ele hoje, na verdade nos desencontramos, porém inevitavelmente o senti dentro de mim. Descobri-me molhada e me envolvi em carícias múltiplas ao pensar naquela voz rouca e inebriante, e senti aquele perfume surreal.

 Nunca havia me tocado antes, no entanto a energia era tão forte que explodi de dentro para fora. Pêlos arrepiados, mamilos enrijecidos, lábios secos, coração acelerado, e a imagem dele... Ah... O desejo irrefreável por uma noite mais. O queria, e quero muito!

 O demônio do pecado entrou na minha casa hoje, sorriu e me abraçou com suas labaredas de desejo, com aquelas asas sacanas a me envolver por camadas.

Pequei hoje, e com sorte talvez peque amanhã novamente.

Quem sabe?


Dia 24 de janeiro de 2019

 Estou ouvindo os passos dele. Ele está andando pela casa, descalço, está indo em direção a geladeira. O corpo está quente, ainda banhado em suor. Sei que logo voltará para cama. É... Ele sempre volta e se apodera de mim. Gosto de senti-lo aqui, gosto tanto quanto parece.

Por que afinal precisamos tanto de outra pessoa?

Pelo pouco que me lembro, a solidão é dolorosa.


Dia 08 de setembro de 2019

 Está tomando conta de mim. Sei que parece loucura, contudo não consigo mais evitar. Não posso fugir. Ontem sonhei com a morte. Estava tudo tão escuro, bem como ele havia me dito que um dia aconteceria. Ele me contou que um de nós não sobreviveria a tanto amor. Seria possível?

Nunca acreditei nele, mas Erik parecia ter sempre razão.

Dia 14 de janeiro de 2023

 Senti o sexo dele de uma forma incomum. Abracei – o com meus dedos, enquanto tocava meus seios, e quase não acreditei que eles eram tão meus. Como o quero... Desejo a mim também. Erik adora o ritmo frenético que minha mão impõe. Sei que gosta, pois cochicha ao meu ouvido todas as noites, como aquela voz suave e rouca.

  É assim que ele gosta... Danadinho. Enfiei meu dedo na boca dele e ele chupou, e mordeu, e lambeu de uma maneira que experimentei algo tão inusitado e perfeito. Gozamos juntos, eu e ele. Ele e eu. E um só corpo se fez dois, e dois corpos residiram num só coração.

  Saborear um amor assim pode ser melhor que qualquer coisa, e pode ser pior do que nada. É complicado demais. Ninguém pode nos entender... Ninguém.

Dia 06 de janeiro de 2026

 Queria saber o porquê de tanto medo, se nossos conflitos são resolvidos da melhor maneira possível. Nossa relação se resume a seguinte frase. ‘“Nada pode nos separar”. Ainda assim ele acredita naquele maldito sonho. O pesadelo de Erik não parece ter fim.Por que não me conta o que os sonhos significam?

 Ele acordou duas vezes ontem, tentei acalmá-lo, mas foi em vão. Não me disse nada, mas o conheço, sei até mesmo seus medos, e o que diz até quando se cala. Ele também sabe que não podemos viver mais isso, afinal desde que descobriu que o mundo iria acabar ele mudou, deu mais valor a si mesmo. Acho que ficou louco de tanto desejo por mim.

  Estou com medo do que faremos. As aves estão aglomeradas no céu, como ele me disse que estariam. Está tudo tão cinza. Uma tempestade está vindo, mas o que vem depois disso? O quê?

 Dia 30 de julho de 2027

  Há mais de dez anos somos dois amantes. Isso é confuso. Hoje encontrei o diário dele em meio a minhas coisas. Ele nunca me contou, mas estou lendo e é terrível. Não pode ser. Precisei parar um pouco para escrever aqui, e sinceramente não acredito que seja tão real.

  Erik está morto, ele se matou, foi a única forma de enfrentar seu dom. Pensei que eu morreria, mas não... Deus não existe... Eu estou amaldiçoada. Todos estamos. Deixe-me escrever aqui o trecho final do diário dele.


O Diário de Erik – Meu fim

 Meu nome é Erik, a minha idade não importa, parei de contar há cerca de cento e oitenta anos e ainda sou tão jovem. Conheci o amor e a desgraça. Enfrentei a miséria, a guerra, e a fortuna e não venci nenhuma delas. Todas levam algo de nós e o pouco que resta deve ser degustado.

 Raquel morreu no dia 12 de abril de 2031. Foi um ano de depressão sem mim. Não sei como ela pode estar aqui se está morta, mas ela vive.
 
 Um pastor certo dia me disse que eu era um pecador e que o inferno seria meu lar. Ele tinha razão, aqui estou. Vivo ou morto, não importa. Apenas espero que isso um dia acabe.


  O tempo não para. O sangue será derramado dia após dia. A multidão passará por nós e não nos verá. As doenças virão de todos os lados, mas nada apagará o que somos de verdade. A solidão fez com que eu me encontrasse aqui e revivesse tudo todos os dias de minha eternidade. Lembranças promíscuas. Realidades dispersas, soltas e tão acorrentadas a minha memória que mal sei em que dia estou. O tempo não para, mas volta... Girando como uma roleta russa.

 Sonhei com o dia que o mundo acabaria. O meu mundo. Então descobri que não existia dor maior do que não viver o que sempre quis. Um amor. A beleza da vida está naquilo que amamos, então decidi amar a mim mesmo acima de todas as coisas. Foi aí que Raquel surgiu, no tempo certo, e é assim que o amor sempre surgirá.

 No meu sonho me alimento de minha própria carne, devoro meu próprio sexo, e bebo o sangue que corre dentro de minhas veias. Sacio-me de minhas vontades e desejos, sou o senhor de minha felicidade e o portador de minhas alegrias. Nessa minha utopia sou aquele que decide quando vivo e quando morro, se sou alma ou se sou corpo, se sou Deus ou criatura.

  Sou o inferno, o céu, o mar e a terra. Se vivo em círculos e acredito no que você duvida, é assim que sou feliz.

  Eu sou aquele que você vê, mas não pode compreender. Sou o pior inimigo do próprio homem, e para sempre serei.

Sou eu mesmo.

Sou você.

 
Dia 12 de abril de 2028

  Meu nome é Raquel. Um dia fui outra pessoa. Noutra oportunidade voltarei a ser eu mesma. Esse é nosso diário, meu e daquele que amo. Não existe lógica no amor, no tempo e tampouco na vida, muito menos nesses dois diários. Hoje é o dia de minha morte, e também é o dia em que tudo recomeça.

 Já posso ouvir o barulho deles caminhando em minha direção. Estou tonta. Eu vejo aquela criatura. Sim... É ela.

 Um demônio? Um anjo? Um deus ou um homem? Realmente não importa. Agora escreverei as ultimas palavras, talvez as primeiras que você lembrará.

  Deus é tão cruel que plantou o amor em nosso coração, uma isca, uma armadilha, ainda que esse amor pudesse nos aprisionar mesmo quando a outra pessoa não nos amasse. Mas eu matarei meu amor, farei isso degustando até a ultima gota de desejo, pois é assim que sou...

  "Sou como aquele animalzinho bandoleiro que carrega um queijo estilhaçado na boca. Sim, apanhado na ratoeira e agonizando, mas teimoso a degustar com escárnio, e engolir por meio de uma garganta comprimida, o suculento e derradeiro pedaço de Gruyere."
 
 Fim.


Temas: Desejos - Crime Passional  - Profecias


 
Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 14/10/2014
Reeditado em 15/10/2014
Código do texto: T4999268
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