462-O PADRINHO MISTERIOSO-Terror Diabólico

A TEMPESTADE se aproximou rapidamente, empurrada por um vendaval fortíssimo. No Grotão das Sucupiras a tarde virou noite e Tião Cândido teve de acender os candeeiros inda não eram três horas da tarde.

—Cruz Credo, Ave Maria! Nunca vi coisa iguar. —Exclamou, enquanto dependurava um candeeiro na parede do quartinho onde a mulher jazia, prostrada, o barrigão coberto por um lençol muito fino.

—Cende uma vela e quema umas parma benta. — Malvina, a esposa, ordenou, entre um gemido e outro. As dores já se manifestavam.

Da cozinha, chega dona Merenciana, a parteira, trazendo uma enorme bacia cheia d´água quente.

— Seu Tião, traz aquela chaleira com água fervendo. Vou precisar de muita água.

A pequena casa de pau-a-pique, coberta de telhas soltas, sofria o embate do temporal. Construída entre altas árvores, estava protegida do vento pelas frondosas galhadas das velhas sucupiras. De vez em quando, gravetos caiam sobre o telhado, assustando os três dentro da casa.

—Virge Nossa Senhora! — Entre ave-marias e gemidos de dor, Malvina invocava a protetora.

Naquela terrível tarde/noite nasceu o menino. A Natureza parecia se manifestar, irada, contra a maldição que iria gerir a vida da inocente criaturinha.

UMA, DUAS, três vezes tentou o pai batizar a criança. A distancia de três léguas não era obstáculo para as constantes idas e vindas de Tião Candido à cidade, a fim de batizar o filhinho. Na primeira, dois dias após o nascimento, não conseguira atravessar o rio, cujas águas subiram a ponto de esconder a pinguela. Na segunda, chegou à cidade no dia de Finados.

—Hoje é dia dos mortos. Não se batiza ninguém neste dia. — O sacristão emburrado fechou a porta da igreja na cara de Tião.

Na terceira vez, foi avisado que precisava de um padrinho. Humilde e desconhecido, não encontrou ninguém que se prestasse a apadrinhar a criança.

Voltou com a criança pagã, desalentado. A mulher, sempre disposta e impaciente, se revoltou. Ainda guardando o tempo do resguardo, falou alto com o marido:

— Pois amanhã mesmo eu vou lá e batizo o nenê. De quarquer jeito. Arrumo quarquer padrinho. Nem que seja o diabo.

Palavras! Cuidado com elas, dona Malvina. Primeiro, a gente pensa. Depois, a gente fala. Então, é impossível recolher o dito. A ação vem a seguir. E dos resultados, nem Deus sabe.

CHEGARAM CEDO. Era domingo, a missa havia terminado,o povo saia da igreja, envolvendo Tião, Malvina e o bebê. Ficam meio confusos. Não haviam providenciado o padrinho.

—Tião, fala com argúem por aí. Precisamo de um padrinho pro minino.

De um grupo descendo a escadaria emerge um homem alto, elegante, trajando terno preto impecável nas dobras, cabelo liso penteado com óleo, bigode e cavanhaque também muito bem cuidados.

Aproxima-se e antes que Tião ou Malvina pudessem falar alguma coisa, diz:

—Posso ser o padrinho da criança?

O casal, pego de surpresa, não teve tempo nem de concordar.

—Uai, moço, nóis tava mesmo...

—Deixa comigo. Me dê a criança, vou lá e batizo num instante.

Pegando a criança, embrulhada em cueiros e num cobertorzinho verde, sobe as escadas, confundindo-se com outras pessoas. O casal não tem tempo sequer de acompanhar o estranho. Permanecem bestificados, esperando.

Não demora muito, o homem de preto aparece ao lado dos dois. Coloca a criança nos braços de Malvina.

—Pronto! Está batizado.

—Uai...Brigado, moço. Mais cumo é o nome dele?

—Anhangá.

—Anhangá? — Malvina estranha. — Mais qui nome mais isquisito.

Só o marido a ouviu. O padrinho desaparecera.

ANHANGÁ recebeu logo apelido : Gazinho. Não foi em nada diferente das outras crianças, até que teve de ir para a escola.

Na classe de Dona Joana, no grupo escolar, dava trabalho demais. Briguento, não se entendia com nenhum colega. Maltratava as meninas, fugia das aulas, jogava pedras nos desafetos e coisas que tais. De nada adiantavam os castigos. Foi expulso antes de terminar o terceiro ano.

Em casa não ajudava nem ao pai nem à mãe. Deu em vagar pelos campos e matos da região do grotão das Sucupiras. Escapava para a cidade, onde, normalmente, aprontava alguma confusão. Foi crescendo sem nenhuma educação, peia ou corretivo. Virou rapaz. Selvagem, a ninguém respeitava. Deu em freqüentar a rua das mulheres ditas “fáceis”, onde costumeiramente aprontava uma baderna.

Preso por diversas vezes, conseguia evadir-se com facilidade, sem deixar pistas da fuga. Um dos companheiros de prisão jura que, antes de desaparecer inexplicavelmente da cela, disse em voz baixa:

—Padrinho, me tira daqui.

O NOVO PÁROCO ficou sabendo do rapaz e de suas diabruras. Estranhou os “desaparecimentos” da cadeia, narrados pelo próprio delegado. Intrigado, procurou saber de quem se tratava.

—Gazinho! Mas que apelido estranho. Qual é o nome dele?

—Anhangá. — informou o sacristão.

—Anhangá? Mas...mas... os índios dão esse nome ao... — Não completou, temeroso de falar alto o nome da maligna entidade a que se referia.

Curioso, Padre Bento procurou os pais de Gazinho. Visitou-os e ficou sabendo de detalhes da vida do moço.

—Mas, como é que o padre Damião batizou seu filho com esse nome?

—Bão...verdade verdadeira, foi o padrim dele que escolheu o nome. Nois nem vimos a cerimônia.

—Quando foi isso? Esse batizado. E quem foi o padrinho?

—O dia foi cinco de otubro de novicentos e quarenta e dois. Lembro bem. Agora, o nome do padrinho, sei não sinhor. O home desapareceu assim que vortou, devorvendo o Gazinho batizado. Ele que falou que o nome era Anhangá.

O padre se persigna quando o pai diz o nome do filho.

De volta à cidade, padre Bento consulta o livro de batistério. Nada encontrou na data informada pelo Tião. Nem em datas anteriores ou posteriores.

—O menino não foi batizado aqui.

UNINDO as peças do enigma, como um quebra-cabeças, Padre Bento chegou a uma conclusão terrível e temível.

—Com esse nome...sem registro no livro...com esse comportamento... desaparecendo das cadeia sem deixar pistas... esse jovem só pode ser afilhado do... — Interrompeu seu pensamento ante a perspectiva de que se lhe apresentava.

Homem de ação, destemido e determinado, procurou o delegado.

—Quando o senhor apanhar de novo o Gazinho, quero que me avise de imediato.

—Não vai demorar. O meliante apronta uma todas as semanas.

—E não coloque em cela, não. Deixa ele amarrado fora da cela, aqui no seu escritório ou na sala de interrogatório.

Sábado de noite. Novo tumulto na zona das mulheres da vida. Causador: Gazinho, como soe acontecer. Os soldados efetuam a prisão do arruaceiro.

O delegado observa a chegada do rapaz algemado. Os cabelos desgrenhados, roupa suja, rasgada, olhos vermelhos, quase saltando das órbitas. Não apresenta resistência. Pelo contrário, um sorriso malicioso aflora nos lábios.

Antes de qualquer providência, o delegado telefona para Padre Bento. Só depois determina aos praças:

—Mantenham ele na sala de interrogatório. Não judiem dele. Fiquem atentos. Não deixem ele escapar.

Padre Bento chega no seu Ford-1929, acompanhado pelo sacristão. Desce já com a estola preta sobre o pescoço, enquanto o sacristão porta uma galheta com água-benta.

—Onde está o homem?

—Na sala de interrogatório. — Responde o delegado.

Em passadas largas, batina e estola agitadas, padre Bento toma a galheta enquanto atravessa o corredor. Chega de inopino à sala onde está Gazinho e, sem dar tempo a qualquer movimento, lança pingos de água-benta sobre o preso, exclamando em voz alta:

—Vade Retro, Satanás!

UM ESTRONDO, partindo da sala de interrogatórios, é ouvido em toda a cadeia e alhures. Cadeiras são lançadas ao ar, móveis estilhaçados. Os dois soldados, padre Bento e o sacristão são empurrados violentamente, por uma força descomunal, para fora da sala. O delegado chega a tempo de ver uma densa nuvem se espalhando, cobrindo a visão do interior da sala. Sente um fedor insuportável.

Depois, um silêncio. Silêncio profundo e sinistro. Padre Bento ouve uma gargalhada, enquanto se levanta do chão. Ajuda o sacristão, que tem os olhos abertos exibindo um terror incomensurável. Os dois soldados e o delegado pulam para dentro da sala, em cujo centro jaz o preso. Deitado em posição escabrosa, braços e pernas abertos como se os membros tivessem sido puxados violentamente. Os cabelos chamuscados, bem como as sobrancelhas. Olhos abertos, fixos em algum lugar remoto. Imóvel.

O delegado agacha-se. Apalpa o homem. Movimenta a cabeça. Abre a camisa, ausculta o peito. Coloca dois dedos no pescoço, sobre a jugular. Olha para o padre, que também se ajoelha ante o corpo. E diz:

— Está morto.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 15 de novembro de 2007

Conto # 462 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/10/2014
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