501-OS CORNIMBOQUES MALDITOS-

-Versão adaptada para o livro "Senhora das Coroas"

Havia chovido na madrugada e o chão do cemitério estava encharcado. Por isso, andei apenas pela alameda central, que era calçada, onde estão os mausoléus e os túmulos com bonitas estátuas e cruzes de metal amarelo, das famílias ricas.

Todas as vezes que passo por ali, minha atenção é despertada pela linda escultura sobre o túmulo do coronel Capistrano Alvarado: São José puxando o burrico, sobre o qual vão Jesus e Maria, representando a fuga para o Egito. Detenho-me para uma oração, ao mesmo tempo em que me lembro da tragédia do homem que repousa sob as lajes de mármore.

A história toda me foi contada, com detalhes, por Dona Zuca. Era uma mulher misteriosa, que conheci nos tempo em que eu trabalhava no hospital, como enfermeira. Estava proibida de entrar no hospital, devido aos boatos em torno de sua atividade. Diziam ser curandeira e que fazia abortos. Por isso, me procurava constantemente, para saber como iam as pacientes suas conhecidas (ou “clientes”, nunca procurei saber).

Quando o coronel morreu, ela comentou, assim, quase como sem querer:

— Pois é, não podia acabar de outro jeito. Aqui se faz, aqui se paga.

— Por que a senhora diz isso? — perguntei, intrigada, pois pouco sabia da história do coronel, a não ser de um briga de jogo, há alguns anos, no Clube, quando morrera um jogador.

— Minha filha, é uma história comprida. Sente-se aqui no banco e escuta só.

Então ela me contou. Falou do grande criador de gado que era. Rebanho pra mais de mil rezes nas suas invernadas. E da estima, do quase amor, por um touro chamado Corno Branco. Era um animal diferente, muito brabo, e que tinha os chifres totalmente brancos.

— Vi o touro numa das vezes que fui na fazenda, benzer algumas vacas perrengues. — Disse Dona Zuca. — Era enorme, os olhos ferozes e as guampas brancas. Tão brancas como as asas da guiratinga.

O coronel tinha um orgulho danado do touro. Eu lhe avisei:

— Isso de boi com os cornos brancos é coisa do tinhoso.

Mas ele não me ouviu, e até me respondeu, rindo:

— Qual o quê! Gosto tanto dele que ele vai comigo até depois que eu morrer — pro céu, inferno ou purgatório.

Mas o Corno Branco morreu antes do coronel. Picada por uma cobra coral, não deu tempo de fazer nenhuma benzeção de cura. O coronel mandou tirar o couro e os chifres. O couro, depois de curtido, era o tapete da sala da casa da fazenda. E dos chifres mandou fazer dois cornimboques.

—Cornimboque? Que é isso? — Perguntei, pois era a primeira vez que ouvia.

Ela me explicou, com vagar e ouvi com atenção.

É um estojo ou um recipiente para rapé, feita de chifres de boi. Era muito usado nos tempos antigos, pelas bandas da Bahia e do sertão de Minas. A ponta do chifre de boi, limpo por dentro e polido por fora, era guarnecida de uma tampa de metal e com ganchos de metal, nos quais se amarrava uma tira de couro. Ou uma correntinha de metal. Os tropeiros e cavaleiros traziam o cornimboque dependurado no ombro, a tiracolo.

— Tanto cuidado só para botar rapé? — Perguntei, intrigada com a descrição.

— Era um objeto de luxo, não era pra qualquer um, não. Os garimpeiros usavam como esconderijo dos diamantes: colocavam as pedras no fundo e rapé por cima.

E prosseguiu:

— Eu vi os cornimboques feitos com os chifre de Corno Branco. O coronel trazia os dois dependurados nos ombros, as correntinhas cruzando—se sobre o peito e os cornimboques enfiados um de cada lado na cintura.O coronel vivia mostrando pra todo mundo. Além das tampas de prata, mandou incrustar topázios e turquesas. Eram bonitos e muito valiosos. E foi a desgraça do coronel.

A história prometia ser comprida mas eu fiquei curiosa. Dona Zuca continuou:

O coronel gostava do carteado. Jogava no clube todas as sextas e sábados. Entre os amigos de baralho, dizia que se sentia protegido pelos cornimboques. E que eles lhe davam sorte no jogo.

Mas deu foi muito azar. Pois foi numa mesa de jogo, uma discussão se tornou acalorada a ponto de os parceiros entrarem numa confusão, numa briga entre eles. Socos, pontapés, cadeiras quebradas, cabeças rachadas, tudo aconteceu naquela noite. Por sorte nenhum deles estava armado de garrucha ou punhal. Mas no entrevero, o coronel sacou de um cornimboque e enfiou a ponta afiada no peito de Lucas Setepaus. Como se fosse um punhal. Ninguém teve coragem de tirar o cornimboque o peito de Setepaus, que sangrou até morrer.

Pela cidade correu a notícia, com o boato de que os cornimboques eram de chifres brancos, coisa do diabo.

Eu já tinha avisado o coronel, mas ele não me escutou, até debochou de mim.

O cornimboque que matou Lucas Setepaus desapareceu. Ninguém sabe onde ele foi parar. Ouvi dizer, na ocasião, que ele tinha sido recolhido por uma mulher que era a amante do jogador.

O coronel conseguiu safar-se da cadeia, não foi nem mesmo julgado. Mas ficou abalado com o acontecimento. Começou beber e logo estava viciado, bebendo desde manhã e seguindo-se pelo dia e até à noite. Bebia na fazenda, bebia no palacete que tinha na cidade. A administração da fazenda desandou. O filho mais velho, Adriano, é quem tomou conta da fazenda e do gado.

Uma tarde, apareceu lá em casa um mulher que pediu para me ver. Atendi. Ela trazia um cornimboque branco, com enfeites de pedras preciosas — o cornimboque que matara o jogador.

— Ele era meu marido — ela disse. — Fiquei com o cornimboque, mas não quero mais. Quero devolver pro coronel. Mas desejo que meu marido seja vingado.

Dona Zuca parou de repente a narrativa.

— Tá ficando tarde, tenho de ir. Depois lhe conto o resto da a história.

Dona Zuca nunca me contou o resto da história. Fiquei pensando se a mulher queria algum “serviço” ou aconselhamento. Tenho certeza que Dona Zuca jamais faria um trabalho para matar alguém.

Mas sei, sim, o resultado da presença da mulher na cidade.

Quem me contou foi a empregada da casa-sede da fazenda do coronel, durante o velório.

— Foi ontem de manhã, quando acordei. Passei pela sala e vi o coronel deitado. Já era costume ele dormir derreado no sofá ou sentado de mau jeito nas poltronas. Acordava zangado, nervoso e pedindo um café forte. Ontem, pelas nove horas, chegou o Adriano, o filho, vindo do curral. Falei pra ele:

— O coronel num levantou ainda. Tá na sala, durmindo. Vê se acorda e traz ele pra tomar um café.

Fiquei olhando pela porta. Adriano focou de cócoras ao lado do coronel.

— Pai, acorda. — Ele disse.

Passou a mão no chão, por debaixo do coronel. Quando tirou, os dedos estavam vermelhos.

Adriano sacudiu o pai. Quando empurrou mais forte pelo ombro, corpo virou. No peito estava cravado o cornimboque branco enfeitado com pedras preciosas.

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O velório do coronel foi muito concorrido. A sala onde estava o corpo ficou cheia de gente desde que o corpo chegou até a hora do enterro, no dia seguinte. Dezena de coroas foram encomendadas. Era um homem importante e muito conhecido. É claro que havia muita gente curiosa, devido ao modo estranho com que o coronel tinha morrido.

Vendo o seu túmulo, não consigo atinar que significado possa ter a escultura da Sagrada Família fugindo para o Egito e o coronel e seus cornimboques, Mas fica sempre a certeza de uma coisa: quem com ferro fere...

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 30 de maio de 2008 –

Conto # 501 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/11/2014
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