Sangue na Terra da Decadência

Kantherson City era uma gigantesca cidade metropolitana, com mais de vinte milhões de pessoas residindo em seus limites. Era uma cidade próspera, com edifícios gigantescos e mansões luxuosas. Entretanto, Kantherson City também escondia uma realidade suja: escondidos debaixo dos viadutos, pontes e no interior dos becos, vivia uma sociedade esquecida por todos: os mendigos. Os mendigos viviam escondidos no seio da sociedade, com receio de todos, esquecido por todos. Eram pessoas que não possuíam casa, não se alimentavam, faziam suas necessidades nas sarjetas das ruas, e eram abominados por todos. Kantherson City tinha mais de vinte milhões de mendigos em suas ruas, pessoas totalmente esquecidas pela sociedade da cidade. E as pessoas agradeciam aos céus quando um mendigo falecia, pois seria menos um mendigo no mundo. Entretanto, o mesmo céu que os moradores de Kantherson City agradeciam quando um mendigo falecia trouxe à cidade um pesadelo que jamais alguém conseguiria esquecê-lo.

Gil Petterson e Adam Kilate eram dois amigos inseparáveis. Conheceram-se aos cinco anos de idade, quando moravam na mesma rua, e rapidamente se tornaram amigos. Apesar da igualdade em idade, Gil e Adam eram completamente diferentes em todo o resto – Gil era um rapaz inteligente, Adam tinha dificuldades em fazer contas simples; Gil era franzino, Adam era robusto; mas a principal questão que os diferencia era que Gil era defensor dos mendigos, enquanto Adam era mais um morador de Kantherson City que rezava para a morte de todos os sem-tetos. E, em uma noite qualquer, tudo aconteceu. A terra de Kantherson City começou a se encharcar do sangue de seus moradores.

Era pouco mais de duas horas da manhã. Gil e Adam voltavam do show de uma banda local, em uma boate no centro da cidade, junto de Guilherme e sua namorada, Meg. Estavam de carona, no carro do amigo, que os levaria para casa, antes de se dirigir com sua namorada para sua casa.

- Que cansaço! – disse Gil, bocejando

- Nem me fala. – disse Guilherme – Mas foi um show e tanto! – completou

- Então... – disse Adam – Nem me fala.

- Também estou morta de cansaço! – disse Meg, bocejando

O quarteto passava por uma grande avenida do centro de Kantherson City, que a cortava ao meio, levando as pessoas da Ala Oeste à Leste e vice-versa. Entretanto, aquela grande avenida da cidade, àquela hora da madrugada, era o lar predileto dos mendigos – as calçadas eram tomadas por diversos deles, que ali faziam sua estada para descansarem da dura vida que levavam. Entretanto, naquela noite, os mendigos, embora deitados estivessem como todas as noites, pareciam se encontrar mais agitados que o de costume. E aquilo chamou a atenção de Gil.

A divagação do rapaz, para o exterior do carro, chamou a atenção de Adam, que se encontrava do seu lado.

- O que foi, Gil? – perguntou o amigo

- Os mendigos... estão mais agitados que o de costume. – respondeu Gil, sem perder a divagação

- Não é nada de mais, Gil. Parecem que estão comendo.

- Eu sei. Mas esse é o problema. Todo mundo sabe que os mendigos não têm o que comer... todo mundo sabe que o povo da cidade deixa os mendigos morrerem de fome... – respondeu Gil, com uma repulsa natural de um defensor ferrenho da causa

Adam se surpreendeu.

- Pare o carro, Guilherme.

Guilherme se assusta.

- Oi? – perguntou

- Pare o carro. É rápido. – disse Gil

Guilherme parou o carro, no meio da rua. Gil desceu do carro.

- Aonde vai, Gil? – perguntou Adam, saindo do carro do lado oposto

- Só vou olhar um negócio. Não vai demorar! – respondeu o rapaz, afastando-se do carro

Guilherme e Meg descem do carro, logo atrás de Adam.

- O que ele está fazendo, Adam? – perguntou Guilherme, para Adam

- Não sei. – respondeu o rapaz

Gil continuou a caminhar em direção aos mendigos afoitos, fitando-os incessantemente.

- O que foi, Gil? – perguntou Guilherme, aparecendo repentinamente ao lado do rapaz

- O que está fazendo, Gil? – perguntou Meg, do lado oposto ao namorado

- Olhem! – disse Gil, apontando para os mendigos – Eles estão comendo algo.

- Sim, a gente já sabe disso, Gil. – disse Guilherme, levemente irritado – O que isso tem a ver?

- Olhem o quê exatamente eles estão comendo...

A frase chamou a atenção de Guilherme e Meg. Viraram o foco do olhar em direção aos mendigos. Perceberam-no comendo pedaços de carne crua, mergulhada em sangue. Comiam avidamente.

- O quê?! – perguntaram Guilherme e Meg, gritando, sobressaltados.

O grito de Guilherme e Meg chama a atenção dos mendigos para si. Estes viram a cabeça em suas direções. Encontravam-se com olhares mórbidos, fundos, com a boca vertendo sangue. Começaram a se levantar um em um, vagarosamente, fitando o trio; este, por sua vez, começou a dar passos vagarosos para trás.

Quando os mendigos se tornaram de pé, Gil, Guilherme e Meg perceberam haver uma quantidade imensurável de corpos no local onde os mendigos se encontravam. Os corpos se encontravam mutilados, embebidos em sangue próprio, com a carne rasgada. Alguns corpos possuíam apenas pedaços, como o tórax e abdômen, cabeça, mãos e pernas... E, ao contrário do que poderia se imaginar a princípio, devido à roupa dos corpos, estes não eram outros mendigos.

Repentinamente, para surpresa geral, eis que os mendigos saem correndo desesperadamente em direção ao trio. Estes, surpresos, viram-se de costas e postam-se a correr em direção ao carro. Corriam a toda velocidade. Atrás deles, uma horda de mendigos com fome insaciável.

Gil, Guilherme e Meg se encontravam a uma distância de aproximadamente cem a duzentos metros do carro. Entretanto, os mendigos corriam com mais vigor que o trio de amigos. Repentinamente, um deles chegou perto o suficiente de Meg e a derrubou.

- Socorro! – gritou a garota, em desespero, enquanto era envolvida pelos braços mortais de um dos mendigos. Este a empurrava ao chão.

Enquanto Meg caía ao chão, o mendigo fincou seus dentes em seu pescoço, arrancando um bom pedaço de carne. Sangue começou a verter em quantidades imensuráveis do machucado e a vida de Meg se esvaía de seu corpo na mesma velocidade. Rapidamente, os mendigos que se encontravam ao lado da garota derrubada no chão caíram em cima dela e postaram-se a alimentar de sua carne. Com a boca, retiraram pedaços generosos de carne, normalmente dos braços, pernas e costas, e os engoliam em uma velocidade imensurável.

- Meg! – gritou Guilherme, partindo em direção à namorada. Gil o deteve.

- Ela já era! – respondeu Gil – Salve sua vida, pelo menos!

Guilherme fitou sua namorada pela última vez. Havia vários mendigos sobre ela, que lhe tampava todo o corpo, deixando apenas seu rosto à mostra. De seus olhos escorriam lágrimas vazias, de um ser que outrora estava vivo. A vida, àquela altura, já se esvaía de seu corpo.

O rapaz correu, junto de Gil, em direção ao carro. Lágrimas vertiam de seus olhos, para tentar apaziguar a dor da morte de sua namorada. Chegaram ao carro e adentraram no banco traseiro, a toda velocidade.

- Vamos? – perguntou Adam, no banco do motorista

- Adam! – gritou Gil, surpreso – Nem me lembrei de você!

- O Guilherme mandou ficar aqui, para ninguém tentar roubar o carro... – explicou o rapaz – Agora vamos?

Repentinamente, para surpresa de todos, eis que uma horda imensurável de mendigos circunda o carro – sendo que alguns deles se jogam, literalmente, sobre o veículo. Todos sobressaltam no local.

- Mas eles já vieram pra cá? – perguntou Guilherme

- Parece que a Meg era só uma entrada para o prato principal! – respondeu Gil, sem perceber que magoaria o amigo ao dizer tais palavras

Os mendigos começaram a atacar o carro de forma violenta. Tentavam de toda forma quebrar o vidro – ou até mesmo a lataria do carro – usando o próprio corpo. Os vidros começaram a trincar.

- Acelera, Adam. Acelera! – gritou Gil, em desespero

- Estou tentando. Mas tem algo travando o carro! – gritou Adam, em resposta, igualmente em desespero. Pisava no acelerador. As rodas do carro cantavam no pneu, entretanto, o carro não se deslocava.

- Vai, vai, vai! – gritou Guilherme

- Estou tentando. – disse Adam

Os vidros do carro – os laterais e o do fundo – estilhaçaram-se, após incessantes golpes dos mendigos. Estes puseram as mãos para dentro do carro, na expectativa de segurar alguém de seu interior.

Gil e Guilherme abaixaram-se, na expectativa de fugir dos ataques dos mendigos. Adam também, entretanto, o mesmo continuava a tentar deslocar com o carro do local.

- Vamos, Adam. Pelo amor de Deus. Vamos! – gritava Gil, no auge do desespero

- Estou tentando. O carro não sai do local! – Adam pisou novamente no acelerador. Os pneus do carro cantaram no asfaltado, todavia, o veículo novamente não se deslocou.

De repente, para surpresa geral, eis que um dos mendigos segura Guilherme pelas costas, na altura dos ombros e começa a puxá-lo para fora do veículo.

- Socorro! – gritou o rapaz

- Guilherme! – gritou Gil. Levantou-se do chão do carro e postou-se a segurar as pernas do amigo, enquanto o próprio tentava se segurar nas laterais da janela do veículo.

Ao perceber a gritaria na parte de trás do veículo, Adam virou-se de costas. Fitou Guilherme sendo puxado para fora do veículo e postou-se a ajudar Gil em salvar o amigo.

Gil fazia uma força inumana para segurar o amigo no interior do veículo. Guilherme era seu amigo de infância – da mesma forma que Adam – e compartilhava de alguns gostos e ideias com o rapaz – como o gosto pelo xadrez e a ideia de tentar ajudar os necessitados. Não poderia deixar o amigo morrer. Não daquela forma.

Gil continuou a puxar Guilherme, que se encontrava aos gritos. Tentava se segurar nas laterais da janela do veículo, entretanto, suas mãos estavam encravadas em cacos de vidros, o que as faziam arder com violência e, em um determinado momento, Guilherme sucumbiu à dor – por impulso, retirou a mão do local.

Ao fazer isso, contudo, acabou retirando quase que por completo sua resistência aos ataques inimigos. Gil por si só – mesmo com a ajuda de Adam - jamais o seguraria. Guilherme foi arrancado com violência do interior do carro e jogado ao chão.

- Guilherme! – gritou Gil

Guilherme ainda gritou por socorro uma última vez, antes de começar a ter a sua carne arrancada de seu corpo pelos violentos golpes inimigos.

Adam percebeu que, quando Guilherme foi retirado do carro, os mendigos também saíram de cima do veículo, possibilitando-o de deslocar-se. E assim Adam fez. Pisou no acelerador e partiu.

No banco traseiro, Gil fitava a cena que deixava para trás. As vísceras de Guilherme estavam expostas na rua, sendo devoradas rapidamente pelos mendigos. À direita, um esqueleto, praticamente limpo, do que outrora fora Meg. Eles comeram, em uma velocidade impressionante, toda a carne do corpo de Meg, deixando-a puramente um esqueleto. E Guilherme seria o próximo...

Gil não conseguia deixar de sentir a culpa pela morte de Guilherme e Meg. Afinal, foi ele quem pediu para o amigo parar o carro. Foi ele que se aproximou dos mendigos. Deveria ter ficado no carro. Deveria ter visto no interior do carro. De onde tirou a maldita ideia de sair do carro? E essa ideia idiota acabou por retirar a vida de dois grandes amigos seus.

- O que será que está acontecendo? – perguntou Adam, sem parar de prestar atenção na via que estava dirigindo

A pergunta de Adam retirou Gil do devaneio.

- Oi, Adam? – perguntou, ainda triste

- O que será que está acontecendo?

- Esse ataque dos mendigos que sofremos? Coisa estranha, não é?

- Se fosse apenas um ataque isolado, eu estaria feliz...

A frase de Adam chamou a atenção de Gil. Este fitou o exterior do carro. Chocou-se.

A praça, que tomava toda a esquerda da rua onde Adam passava com o carro, estava tomada pela carnificina. Para onde se olhava, tinha gente sendo atacada pelos mendigos, sendo devoradas completamente por eles. Em um ponto, pessoas estavam sendo mortas no interior de um ônibus invadido, enquanto no outro uma mulher estava sendo partida em quatro pedaços – estando ainda viva – pelos mendigos. A carnificina se encontrava por todo o lugar.

- O que será que está acontecendo? – perguntou Gil, sobressaltado. Tamanho o medo do rapaz de repetir a cena do ataque anterior, que o mesmo falava quase sussurrava.

- Não sei, Gil. – respondeu Adam, fitando a cena na praça – Mas espero que tudo acabe o mais rápido possível.

Este também era o desejo de Gil.

De repente, para surpresa de Gil e Adam, um grito desesperado ecoa pela praça. Parecia um grito de socorro. Junto dele um forte e contínuo barulho de impacto de algo no chão.

Percebendo vir de uma parte da rua onde passaram outrora, Gil e Adam viraram-se, com o intuito de enxergar o fato. E sobressaltaram. Uma jovem, de idade similar a deles, puxava pelo braço um garoto, de idade não superior a oito anos. Fugiam desesperadamente do ataque de uma horda infindável de mendigos.

Era a jovem quem gritava. Entretanto, para desagrado dela, o próprio grito dela atraía para si os mendigos que já não mais se encontravam alimentando. Percebendo a situação, Adam postou-se a ligar o carro.

- Espera! – disse Gil, fitando a garota e o jovem

- O que foi, Gil? – perguntou Adam, desesperado

- Temos que salvá-los.

- Você está louco? Não estamos conseguindo nem nos salvar direito.

- Deixa o motor ligado. Na hora que precisar, é só arrancar... – disse o rapaz, seguro de si

- Espero que você esteja certo... – disse Adam, não querendo mais discutir com o amigo e começando a executar o plano

Gil abriu a porta traseira esquerda do carro e sentou-se do lado direito do banco. Fitava continuadamente os acontecimentos. Adam ligou o motor do carro.

- Agora é com você, Gil... – disse Adam

Gil se benze com um sinal da cruz e continuou a fitar os acontecimentos. A jovem e o garoto corriam continuadamente pela rua. Atrás dela, a horda de mendigos era imensamente superior à vista anteriormente pela dupla de amigos. Ao mesmo tempo, a mesma horda aumentava, com os mendigos da praça correndo afoitamente atrás dela.

- Aqui! – gritou Gil, com a cabeça de fora do carro. Chamou a atenção da garota para si.

A jovem, ao perceber o automóvel parado, lhe esperando, acreditou haver alguma chance de sobrevivência daquele Inferno. Correu com o garoto em direção à porta aberta. Contudo, ao fazer a curva, a garota tromba com um mendigo. Ambos vão ao chão.

O garoto, ao perceber a jovem caído no chão, começa a chorar e a chutar o mendigo, que, assim, não conseguia cravar seus dentes na carne da garota.

- Merda! – gritou Gil, saindo desesperadamente do carro

- Gil! – gritou Adam

Enquanto corria em direção ao casal em perigo, Gil grita para Adam:

- Fica preparado, Adam!

Em poucos passos, Gil chegou perto do casal o suficiente para ajudá-los. Entretanto, o rapaz chegou junto dos demais mendigos.

Gil chutou a cabeça do mendigo que se encontrava em cima da garota. Esta foi arrancada do lugar onde se encontrava e voou, em direção ao peito de outro mendigo. Com o impacto, o referido mendigo foi ao chão. Junto da cabeça, voou uma imensa quantidade de sangue.

Em seguida, Gil levantou a jovem do chão e pegou o garoto no colo. Por último, correu, puxando a garota pelo braço.

O rapaz olhou para trás. Percebeu que a horda de mendigos se encontrava próxima o suficiente para atacá-los, Gil soltou a mão da jovem e colocou o garoto no chão.

- Correm! Correm! Correm! – gritou

A garota e o jovem correram em direção ao carro.

- O que ele vai fazer? – perguntou Adam, preocupado com Gil, fitando toda a cena. O casal adentrou no interior do carro, no banco traseiro.

Rapidamente, sem perder nenhum segundo – que, àquela altura, era mui precioso -, Gil virou-se de costas. Deu um pequeno salto, rodopiando o corpo no ar e chutou a cabeça do mendigo, com a ponta do pé, em direção ao chão. O golpe, na parte superior do crânio, foi profundo, desestabilizando o mendigo e derrubando-o. Enquanto o mendigo caía imóvel no chão, à frente de Gil, este aproveitou para chutar, de baixo para cima, sua cabeça. Esta foi arrancada do lugar, indo para cima, inundando a roupa de Gil e do mendigo de sangue.

Para sorte do rapaz, a cabeça não foi tão somente para cima, mas também para trás, acertando o peito de um dos mendigos da frente, que, recebendo o impacto no peito, caiu para trás, acertando outros que se encontravam atrás e indo todos para o chão. Nesse momento, aproveitando a queda de um número de mendigos, Gil vira-se novamente de costas e corre, em direção ao carro.

- Nunca imaginei que minhas aulas de shoudetshuju valeriam a pena! – disse Gil, para si mesmo.

Com alguns segundos de vantagem em direção aos mendigos, Gil chegou ao banco traseiro do carro com folga. Saltou em seu interior, caindo deitado no banco, de bruços, com a cabeça no colo da garota.

Ao perceber que Gil se encontrava no interior do carro, Adam deu partida no veículo, cantando pneu e partindo a toda velocidade. A porta traseira do carro ainda se encontrava aberta e Gil continuava deitado, sem condições de se levantar.

A horda de mendigos corria a toda velocidade atrás do quarteto. Embora a velocidade do carro fosse imensamente superior a dos mendigos, estes ainda corriam com ânimo de alcançá-los.

Todos pensariam que, em questão de segundos, ficariam livres dos mendigos. Entretanto, no meio do caminho, ainda havia vários.

- Segurem-se! – gritou Adam, pouco antes de o carro sofrer um poderoso baque. Um estrondo acontece na frente do carro. Em seguida, o mesmo estrondo acontece em cima do veículo e, dois segundos depois, atrás do carro. Adam começa a ziguezaguear com o carro. Do banco traseiro do carro, percebe-se facilmente ser mendigos na pista o motivo do zigue-zague infindável de Adam. Poucos segundos depois, a porta aberta do veículo é arrancada violentamente por acertar algo.

Após o baque da porta, uma calmaria tomou conta do cenário. Gil finalmente pôde se levantar do colo da garota. Sentou-se.

- Desculpe-me pelo embaraço. – disse Gil, sem graça

- Tudo bem! – disse a garota, igualmente sem graça

- E como você se chama, garota? – perguntou Adam, sem parar de fitar o caminho

- Me chamo Laura! – virou para o irmão – E este é meu irmão, Matt.

- Prazer. – disse Gil – Eu sou Gil. E este é meu amigo Adam.

- Prazer em conhecê-los.

Gil percebeu que Matt se encontrava no canto oposto do carro, escondido, de cara fechada.

- E o seu irmão? Não fala nada? - perguntou

- Ele é tímido. Não gosta de conversar com estranhos.

- Ainda mais com esta cidade do jeito como está... – disse Adam

Gil e Laura ficaram em silêncio durante alguns segundos, pensando no quê a cidade que conheciam e moravam havia se transformado. Gil ficou pensando em seus pais. Será que eles estão bem?, se perguntava constantemente, em pensamento

- Será que é só aqui em Kantherson City que se encontra dessa maneira? – perguntou Laura

- Provavelmente, sim. – respondeu Gil

- Como tem tanta certeza?

- Você ainda não entendeu o porquê dos ataques?

Laura estranhou a pergunta do rapaz.

- Não! – respondeu, apenas

- Fome! – Laura arqueia a sobrancelha, de surpresa – Os mendigos estão atacando por se encontrar com fome. Eles sempre tiveram fome, entretanto, ninguém lhes dava de comida – isso quando não tinha o gosto de deixá-los morrer de fome. Um dia, a raiva pela humanidade foi tamanha que o instinto de sobrevivência foi mais forte... precisavam se alimentar. Iriam se alimentar de quem? Dos seres humanos. Por isso eles devoram os corpos de suas vítimas até o final. Não é raiva, não é vírus, não é nada... os mendigos se transformaram em “zumbis” por causa da fome que lhes assolava... tanto que ainda estão vivos, e morrem com os mesmos golpes que nos matam.

Laura ficou em silêncio. Não tinha ideia de que aquela situação toda era gerada pelo egoísmo das pessoas.

- Então, quer dizer que o fato de esse problema estar resumido a Kantherson City se dá...

- Exatamente! – cortou Gil – Pelo fato de somente o povo desta cidade tratar desta forma os seus mendigos.

Laura ficou em silêncio durante alguns segundos.

- E... o que faremos daqui em diante? – perguntou Laura

Aquela pergunta pegou a todos de surpresa. Ninguém tinha ideia do que faria dali em diante.

Gil e Adam ficaram em silêncio durante alguns segundos. Não tinha noção nenhuma do que faria dali em diante.

- Vocês não têm ideia do que fazer daqui em diante? – perguntou Laura, levemente irritada

- Não. – respondeu Adam – Estávamos tentando salvar nossa pele primeiro!

- Mas agora temos que ter um plano do que faremos daqui em diante. Não há condições de ficar...

- Nós sabemos! – cortou Gil – Nós sabemos que não dá mais para ficarmos em Kantherson City.

Laura estranhou o corte repentino de Gil em sua fala.

- Adam, vamos para sua casa. É só atravessarmos a ponte.

- Mas, por que iremos para uma casa? Tínhamos que sair da cidade – Laura não hesitava em contestar as palavras dos rapazes

- Não sei quanto a vocês, mas eu estou exausto. Preciso dormir. – disse Gil

- Eu também. – respondeu Adam

- Além do mais, já são mais de três horas da manhã. E é perigoso ficar dirigindo de noite...

- Verdade.

- E eu ainda quero ver se meus pais estão bem.

- Eu também. – Adam apenas concordava com as palavras de Gil.

Laura não queria assentir com as afirmativas de Gil, entretanto, naquele momento ele estava certo. Ela estava igualmente cansada – e, provavelmente, Matt também. E sabia que ambos necessitavam ver seus familiares.

- Tudo bem. – respondeu Laura – Mas sairemos da cidade tão logo o dia raiar.

- Lá tracemos um plano... – disse Gil

Laura apenas assentiu com a cabeça.

- Vocês quem sabe! – respondeu, apenas

Passaram-se cerca de doze a catorze minutos que a discussão entre Gil, Adam e Laura terminara. Um silêncio constrangedor reinava no local. Adam dirigia com bastante velocidade e cautela, os faróis estavam ligados, pois poderia surgir um mendigo a qualquer momento. Em um determinado momento, chegou a um cruzamento. Sem pestanejar, virou o carro a toda velocidade à esquerda, em direção a uma gigantesca descida, com curvas, que saía na ponte que deveriam atravessar.

- Que barulho é esse? – perguntou Gil, tão logo o carro virou no cruzamento.

- Não estou escutando nada! – disse Laura. Ainda parecia levemente irritada com a situação.

- Nem eu! – disse Adam. – Barulho de quê, Gil?

- Barulho de multidão. – disse Gil

Adam, Matt e Laura espantam-se diante a fala de Gil. O carro faz as curvas da descida, adentrando na sua parte reta, onde facilmente conseguia ver o que havia adiante. Nesse momento, o quarteto sobressalta-se.

A descida se findava em uma gigantesca ponte, que atravessava um rio de iguais proporções. Do outro lado, havia a outra parte da cidade. Daquele lado, havia uma horda de proporções incomensuráveis de mendigos tentando atravessar uma potente força policial, que bloqueava – ou, pelo menos, tentava bloquear – a ponte. As pessoas ainda vivas que tentavam atravessar a ponte do lado oposto para o lado seguro eram interceptadas pela polícia, sendo alvejadas como mendigos fossem.

Do lado onde se encontravam o quarteto, estava uma concentração gigantesca de pessoas vivas. Estavam desesperadas, pois a força policial não iria aguentar por muito mais tempo interceptar a todos os mendigos que tentavam atravessar a ponte. Também estavam horrorizadas, com a ação policial no local - principalmente pelo fato de muitos ali serem parentes ou amigos uns dos outros. A polícia, em resposta, jogava-lhes spray de pimenta.

- Que caos! – disse Gil, ainda sobressaltado

- E não tem mais como irmos para minha casa! – disse Adam

- O que faremos agora? – perguntou Laura

Repentinamente, o quarteto escuta alguém da multidão gritando:

- Olha só. Um carro!

Tão logo escutou o grito, Adam postou-se a dirigir o carro para bem longe. Deu a marcha ré e postou-se a retirar o carro do local. Entretanto, a multidão era mais rápida. Dois homens sacaram suas respectivas armas e postaram-se a atirar na direção do carro. Um dos carros acertou o para-brisa, na direção de Adam, só não o acertando por pouco, enquanto outro acertou no motor do veículo.

- Descem do carro. Rápido! – gritou Adam, ao perceber o segundo tiro

- Por quê? – perguntou Gil

- Descem. Rápido! – gritou Adam. Abriu a porta do carro e desceu, protegendo-se dos tiros inimigos como pôde

Em seguida, Gil, Laura e Matt desceram-se do carro, todos se protegendo como pôde. Postaram-se a subir a rua o mais rápido que podiam. Entretanto, ao desceram do carro, os tiros contra eles cessaram-se.

Por precaução, o quarteto correu, atravessando o cruzamento onde se encontravam anteriormente e continuou a correu, em sentido reto. Percorreu mais uma ou duas quadras, antes de pararem, em outro cruzamento, mais adiante, totalmente ofegantes e com o coração pulsando no interior do peito.

- Por que eles fizeram isso com a gente? – perguntou Laura.

- Provavelmente acreditavam que, se todos se encontravam a pé, não poderia haver alguém com vantagem, por estar de carro. – respondeu Gil

- Isso é insano! – Laura reclamava

- E o que não é insano nessa terra? – perguntou Adam, com tom filosófico

- Nunca foi de filosofar, Adam. O que deu em você agora? – perguntou Gil, em tom sarcástico

Adam o fitou com olhar de raiva. Gil riu.

- Meninos! – disse Laura, preocupada – O que faremos agora? Não temos mais o carro! Não podemos fiar ao relento...

- É verdade. – Adam olhou para o céu – Guilherme, desculpa pelo carro. Não fique irritado com a gente. – Adam abaixou a cabeça novamente – E o que faremos agora?

- Eu tenho uma ideia. – disse Gil

Adam chuta a porta que dá acesso ao interior de um pequeno apartamento, abrindo-a. Gil adentra no local, acendendo a luz. Era um pequeno apartamento, com sala, cozinha, dois quartos – sendo um suíte – e um banheiro social. Ficava no segundo andar de um prédio próximo do local onde se encontravam.

- Que achado, hein, Gil? – perguntou Laura, adentrando no interior da casa e assentando-se com toda força no sofá. Parecia exausta.

Gil fica sem graça com a fala de Laura.

- De quem é o apartamento, Gil? – perguntou Adam

- De uma amiga da minha mãe. Só que ela está fora do país. E creio que ela não voltará para Kantherson City tão cedo...

- Verdade. – disse o amigo

Matt senta-se ao lado da irmã no sofá.

Gil se espreguiça no meio da sala.

- Que cansaço...

Adam aparece ao lado do amigo e lhe diz:

- Me ajude a ver se tem água encanada, gás e comida para a gente...

- Claro, claro! – disse Gil

A dupla de amigos retira-se do local em seguida, em direção ao interior do imóvel. Adentraram no banheiro social do apartamento e foram em direção ao fundo do banheiro, onde se encontrava o box com o chuveiro. Adam adentrou sozinho no box. Gil esperava do lado de fora, do lado da pia e do vaso sanitário.

- Até que é gata, né? – puxou conversa Adam

- Quem? – perguntou Gil, na ingenuidade. Lembrou-se de algo. – A Laura? – falou, em um tom extremamente baixo

- Não. A Madre Teresa de Calcutá... – respondeu Adam, irritando Gil temporariamente – Claro que estou falando da Laura.

Adam abre o chuveiro. Sai água quente, com força, de seu interior. Adam o fecha.

Laura realmente era bonita. Com idade semelhante aos rapazes, cabelo enegrecido, curvas do corpo delicadas, não era a garota mais linda existente, entretanto, inegável era o fato de que a garota era atraente.

- Está de olho nela, hein safado? – perguntou Gil. Entretanto, Adam percebeu que o rapaz não diria do jeito tradicional de se caçoar quando um homem está de olho em uma mulher

- Será que sou eu mesmo? – perguntou Adam, em tom satírico, fitando Gil

O rapaz enrubesceu-se.

- No que está dizendo, Adam? – Gil desviou o olhar

Adam gargalhou.

- Está doidinho nela, não é, safado? – perguntou o rapaz, saindo do box

- Claro que não, Adam. Que viagem! – disse Gil, virando o foco do olhar

- Aham. Então, tá. Ficarei eu com ela então. – disse Adam, saindo do local

- EI! – protestou Gil, no ímpeto. Percebendo o ato, enrubesceu-se, tampando a boca

Adam só olhou para o amigo, com um sorriso no rosto.

- Acho que alguém protestou...

Gil abaixou a cabeça. Ficou envergonhado.

- Não precisa ter vergonha dos sentimentos, Gil... – disse Adam, repousando sua mão no ombro do amigo

- Eu não estou apaixonado por ela, se você quer saber... eu só... me interessei por ela...

- Dar uns beijinhos, né?

- Adam! – protestou Gil

Adam gargalhou.

- Foi por isso que você a salvou, não foi?

Gil apenas meneou positivamente a cabeça.

- Era o que eu esperava... – disse Adam, rindo – Bom, pode deixar que eu mesmo verei se tem comida e gás para nós. Fique a sós com ela...

- Não precisa disso, Adam...

- Deixe de ser fresco, Gil. Seja homem. – respondeu Adam, com certa rispidez

Gil apenas meneou em seguida a cabeça, ainda cabisbaixo.

- Que seja assim então! – disse Adam, retirando-se do banheiro

Adam atravessou a sala em direção à despensa do apartamento – uma pequena porta no interior da cozinha -, enquanto Gil adentrava na sala, onde se encontravam deitados no sofá – cada um no seu – Laura e Matt. Laura assistia ao noticiário, enquanto Matt se encontrava dormindo, em um profundo sono.

- O que o noticiário está dizendo? – perguntou Gil

- Sobre Kantherson City? – perguntou Laura – Nada!

- Nada como?

- Nada. – respondeu Laura – Olhe! – a garota apertou o controle e mudou de canal várias vezes, até voltar ao canal onde se encontrava anteriormente. Todos os canais, sem exceção, davam o mesmo noticiário: “INCÊNDIO NA IGREJA ADVENTISTA MATA SETENTA E SETE PESSOAS EM ADILEN CITY”

- Incêndio em igreja?! – perguntou Gil

- Exatamente. Setenta e sete pessoas morreram intoxicadas. Estranhamente, as portas da igreja estavam trancadas na ocasião do “incêndio acidental”... – o modo como Laura proferiu as últimas palavras deu-se a entender sua intenção em usar as aspas.

- Muito estranho...

- Estranho é o fato de ninguém comentar nada acerca de Kantherson City.

- Verdade... nenhum noticiário...

Gil e Laura ficaram alguns instantes em um silêncio sepulcral, até que Laura, ainda sem deixar de fitar a TV, perguntou:

- O que você e o Adam tanto conversavam no banheiro?

Gil sentiu o rosto enrubescer-se.

- Nada de mais. – respondeu.

- É serio? Pensei que estivesse falando em algo importante. Estavam tão entretidos na conversa.

- Não era nada de mais. Sério!

- Será mesmo? – perguntou Laura. Levantou-se e caminhou até ficar frente a frente a Gil – Pois eu jurava que ouvi alguém falar meu nome lá dentro.

Gil enrubesceu-se. Laura aproveitou a deixa para beijá-lo. Os dois ficaram ali, de pé, beijando-se, um caloroso beijo. Repentinamente, para surpresa e desagrado de ambos, eis que Matt acorda e, ao ver sua irmã beijando Gil, gritou:

- Irmã?!

No susto – e na vergonha – Gil e Laura param de se beijar.

- Você fala, guri? – perguntou Gil, debochando de Matt, que, envergonhado, se irrita

Adam fez um jantar divino com as coisas que achou na despensa do apartamento. Todos estavam mortalmente famintos e atacaram avidamente a comida – fazendo Adam soltar uma piada entre a semelhança entre eles e os mendigos na questão da fome. Gil levou a sério a brincadeira.

Durante o jantar, Matt se mostrou mais solto e mais comunicativo, o que deixou Laura mais feliz. A garota ainda contou sobre sua família – Adam estranhou o fato de ela não parecer ligar para sua família – e ela explica que sua casa foi invadida pelos mendigos e seus pais foram literalmente devorados por eles.

No final do jantar, em um tom mais sério, Laura, Adam e Gil pensaram em como seria o dia seguinte, depois de acordarem. Laura pensou que o melhor seria fugir da cidade tão logo o dia amanhecera, e Gil e Adam acabaram aceitando, pois de lá seria mais fácil saber de seus familiares.

Depois do jantar, todos foram dormir. Laura e Gil ainda conversaram sobre o beijo. Laura explicou que não tinha nenhum sentimento forte de Gil, apenas retribuiu o favor de ele ter lhe salvado a vida. Gil entendeu, e disse a ela que também não havia nenhum sentimento além de um beijo. Eles trocaram um segundo beijo e cada um foi dormir em um canto diferente do apartamento.

Adam dormiu em um dos quartos do apartamento, enquanto Laura e Matt dormiram no outro – no que havia a suíte. Gil estava deitado no sofá da sala. Estava tendo mais uma crise de insônia – “também, com um bando de mendigos na rua, querendo me devorar vivo, como vou conseguir dormir direito?”, perguntou, a si mesmo. Arrastou-se durante o restante da madrugada sem adormecer.

O Sol forte da manhã adentrava no interior do apartamento. Gil se encontrava cochilando no sofá da sala, com a TV ligada, ainda noticiando o estranho incêndio em uma igreja, que resultou na morte de setenta e sete pessoas.

Repentinamente, ouve-se um disparo, oriundo do lado externo do apartamento. Seguido de um segundo e de um terceiro. Os tiros tornam-se incessantes. O barulho de multidão toma a rua.

Gil começa a acordar de sua semiconsciência. Levanta-se.

- Que algazarra é essa? – se pergunta

Laura e Adam aparecem correndo a toda velocidade, do interior de seus quartos.

- O que está acontecendo? – pergunta Laura, desesperada

- Não sei! – respondeu Gil.

O trio de amigos caminha em direção à janela do apartamento. Fitaram a rua e sobressaltaram. Estava tomada de mendigos, que devoravam avidamente os inúmeros seres vivos que ali se encontravam.

De um lado ou de outro, havia alguns policiais que, ao invés de defenderem a população, fugiam da morte iminente.

- O que está acontecendo aqui? – perguntou Laura, desesperada

- Parece que a polícia fugiu da ponte... – disse Gil

- Mas... mas... isso é errado...

- Era óbvio que o dever constitucional da polícia em defender a população iria ficar de lado quando os policiais teriam de defender a si próprio. – disse Gil, dando uma pausa – Isso eu já sabia que iria acontecer.

- E como faremos para sairmos daqui agora? A rua está tomada deles...

- Acho que, se não fizermos nenhum barulho, não chamaremos a atenção deles para nós. E logo, logo eles dissiparão da rua. É só termos paciência!

- Como sabe que som chama atenção dos mendigos para nós? – perguntou Adam

- Eles ainda são seres vivos. Só porque se tornaram criaturas bestiais, sedenta por carne humana, não se significa que perderam a vida...

- Bom, então parece que agora só precisamos ficar quietos no apartamento que tudo ficará bem para a gente, não é? – perguntou Laura

- Sim, exatamen... – dizia Gil, antes de ser cortado por um poderoso grito, oriundo do interior do apartamento. Todos se sobressaltaram com o grito.

- Matt! – gritou Laura, ao perceber de quem era a voz que gritara

Matt estava dormindo tranquilamente no interior do quarto que sua irmã escolheu para ser o seu naquela noite – logicamente, o que possuía suíte, embora a mesma ainda não tivesse sido utilizada até então.

O garoto acordou, com a preguiça comum existente entre as crianças. Sentou-se na cama e espreguiçou-se. Olhou para o lado oposto da cama de casal que dormia. Percebeu estar vazia. Sua irmã já havia levantado. Em seguida, levantou-se, ainda um pouco sonolento. Calçou um chinelo velho que existia no apartamento, que tomou para si como sendo seu, e caminhou em direção à suíte. Era de manhã, e o garoto se encontrava com necessidade urgente de utilizar o banheiro.

Matt chegou à porta da suíte. Era uma porta de vidro de correr. Abriu-a. Adentrou no recinto. Era um pequeno banheiro, com vaso sanitário e pia a primeiro plano, à frente da porta e, à direita, tampada por box, o chuveiro.

O garoto adentrou no interior do banheiro e começou a utilizar o vaso sanitário. Estava esvaziando a bexiga, que se encontrava muito cheia. Terminou de urinar e postou-se a colocar a roupa no lugar onde se encontrava anteriormente. Caminhou em direção a pia e postou-se a lavar suas mãos. Entretanto, enquanto estava lavando a mão, Matt vê rapidamente, no reflexo do espelho situado à frente da pia, algo no interior do banheiro, mais precisamente no interior do box. Por ímpeto, o garoto vira-se de costas. Era um mendigo, abrindo a porta do box, fitando Matt com um olhar de insanidade... e fome.

Matt solta um grito de desespero e medo.

- Matt! – gritou Laura, de surpresa, tão logo ouvira o grito do irmão.

Laura e Gil saíram correndo em direção ao local oriundo do grito. Adam iria também, entretanto, percebeu a movimentação dos mendigos na rua.

- Merda! – reclamou, antes de deslocar-se para longe da janela.

Laura e Gil chegaram ao interior do quarto com suíte em apenas poucos passos, gastando poucos segundos. Gil abriu a porta do quarto. Matt aparece correndo do interior do box, a toda velocidade. Estava visivelmente desesperado, e sangrava com veemência no braço direito.

Matt abraçou Gil com força.

- Matt, Matt, o que aconteceu? – perguntou Laura, desesperada, ajoelhada, ao lado de Matt – Você está machucado. O que aconteceu?

Matt tentava falar, entretanto, a voz falhava. Apenas balbucios inaudíveis saíam, entre o choro incontrolável do garoto.

Repentinamente, Gil e Laura escutam um barulho oriundo do interior do quarto. Fitam o local. Era um mendigo, com a cabeça sangrando em sua parte superior e vertendo sangue da boca, parado na porta do box. Estava saindo do local, com dificuldades.

- Merda! – gritou Gil – Vamos! Vamos!

Gil, Laura e Matt saíram do local onde se encontraram. O rapaz mais velho fechou a porta e ficou a segurando, com força. O mendigo chega do lado oposto da porta e começa a fazer força para abri-lo. Laura e Matt postam a ajudá-lo.

- O que estão fazendo aqui? Vão. Vão! – gritou Gil

Entretanto, não deu tempo de Laura e Matt cumprirem a ordem de Gil. O mendigo arrombou parte da porta com uma das mãos e estendeu-a para o lado oposto da mesma, arrancando o que poderia agarrar. No caso, o ombro esquerdo de Matt.

O mendigo puxou o garoto em uma velocidade inimaginável. Quando Laura e Gil se deram conta do que estavam acontecendo, Matt já se encontrava com a parte superior de seu corpo do lado oposto da porta.

O casal de amigos segurou a perna de Matt e começou a puxá-lo. O rapaz debatia-se com força. Seus gritos ecoavam por toda a casa.

Repentinamente, o lugar é ocupado por um grito de dor de Matt, antes de ser ocupado pelo barulho de carne sendo estilhaçada. Matt havia silenciado e havia parado de se debater.

- Matt! – gritou Laura, com maior desespero. Tentou puxar Matt, junto de Gil, mas ainda obteve resistência do mendigo. Na terceira vez tentando puxar, entretanto, não houve mais resistência.

Ao fazer a força para puxar, Laura e Gil, não tendo resistência oposta, acabaram por cair no chão junto de Matt – ou melhor, junto com o restante de Matt, pois o garoto já não mais se encontrava com sua cabeça e parte do pescoço no lugar onde normalmente os encontraria se estivesse vivo.

- Matt! – gritou Laura. Começou a debulhar-se em lágrimas e, em seguida, deitou a cabeça no tórax do cadáver.

Gil levantou-se, ao ouvir a porta sendo forçada pelo mendigo.

- Vamos, Laura – disse o rapaz, puxando a garota pelo braço

Esta ainda fez corpo bambo durante alguns segundos, chorando pela morte do irmão, entretanto, logo após, deixou ser puxada por Gil. Este correu, a toda velocidade, a encontro de Adam, na sala.

O mendigo ainda ficou tentando abrir a porta, enquanto Gil e Laura o deixavam para trás.

O casal de amigos chegou à sala poucos segundos depois. Gil parou no local. Laura continuou a chorar a morte do irmão, ainda de mãos dadas com Gil.

O rapaz fitou Adam segurando a porta principal da casa, tampada por sofá e outros móveis diversos.

- O que está fazendo, Adam? – perguntou Gil, surpreso com a atitude do amigo

- Os mendigos da rua... estão invadindo a casa. – disse Adam

- Meu Deus. Como se já não bastasse termos um mendigo aqui dentro, ainda tem mendigos querendo invadir?

- Como assim... mendigos aqui dentro?! – perguntou Adam. Agora foi a vez de Adam ficar surpreso.

Um barulho vem do interior do apartamento. Parecia algo caindo no chão.

- Que barulho foi esse? – perguntou Adam. A porta principal da casa é forçada – e não parece ter sido a primeira vez.

- Provavelmente é o mendigo. – disse Gil. Olhava para um lado e para o outro.

- E como veio parar um mendigo aqui dentro?

Gil deu de ombros.

- Deveria ter feito essa pergunta para o Matt, não para mim! – respondeu Gil, preocupado em fitar todos os pontos do apartamento.

- E cadê o Matt?

Gil ficou em silêncio. Não quis responder para não ferir Laura com maior gravidade. Caminhou em direção à janela da sala.

Adam entendeu o que Gil falara, e resolveu não perguntar mais, por causa de Laura. Ao fitar o rapaz com a cabeça colocada do lado externo do apartamento, Adam perguntou:

- O que está fazendo, Gil?

A porta principal da casa é forçada novamente. Gil volta com o corpo para o interior do apartamento.

- Nunca vi um ser tão faminto para comida como esses mendigos. Estão tentando escalar o prédio de qualquer maneira, para nos devorar! – disse

- Meu Deus. – soltou Laura - E o que faremos agora?

Adam deu de ombros. Gil cruzou os braços e ficou em silêncio.

- Vamos abaixar a cabeça e nos render? É isso? – perguntou Laura

- Não, claro que não. – disse Gil. – Estou pensando em uma forma de como sairemos daqui.

Repentinamente, há um estrondo no interior do apartamento, chamando a atenção de todos para o local. Logo em seguida ao estrondo – parecia algo de vidro se espatifando no chão -, o trio ouviu barulho de passos rápidos e incertos oriundos de pontos próximos ao estrondo.

Adam, Gil e Laura não paravam de fitar o local oriundo do som de passos, principalmente pelo fato de o mesmo se tornar mais intenso a cada segundo. O mendigo apareceu às vistas do trio, com a mão direita, cabeça, perna direita, boca e roupas cobertos de sangue. Estava cambaleando, com a perna direita torta e uma dificuldade inumana de se apoiar sobre as pernas.

- Merda! – disse Gil. Laura correu, escondendo-se atrás do rapaz. Este olhava de um lado para outro, à procura de algo. Não encontrava nada de útil para defender-se do inimigo, e isso começava a lhe irritar. Repentinamente, tem uma ideia, muito maluca e inusitada.

O mendigo correu em direção a Gil, o mais próximo do trio. Este, ao perceber não ter nada para defender-se, utilizou-se do braço para tal fim. Deu o antebraço – longe da artéria braquial – para o mendigo morder. E este mordeu com afinco. Cravou com toda força os dentes no braço do rapaz, que urrou de dor. Laura e Adam sobressaltaram-se, e gritaram por Gil, sendo que este respondeu, dizendo que se encontrava bem. Em seguida, Gil, com a cabeça do mendigo em seu braço, segurou-a e girou-a, com toda força. O barulho de um baque, rápido e poderoso, toma conta do ambiente. O mendigo, com o osso do pescoço sobressalente, começou a parar os movimentos e a afrouxar a mordida no braço de Gil. Em seguida, este levantou o mendigo e, utilizando-se muita força, jogou o corpo janela afora.

Tão logo o baque do corpo caindo no chão tornou-se audível para todos, Laura foi ao encontro de Gil e perguntou-lhe, enquanto o mesmo fitava o braço vertendo sangue:

- Como você está? Que loucura foi essa de dar o braço para o mendigo morder?

- Qual o problema? – respondeu Gil, fazendo nova pergunta – Dei-lhe o antebraço para ele não atacar minha artéria braquial. E é bom que, assim, sua boca estava ocupada. E era só segurá-lo pra não puxar a pele...

- Você pode ter sido infectado...

- Não. Não é um vírus que o deixou assim... – disse Gil, enquanto limpava com o dedo o escorrer de sangue em seu braço – É a fome!

Laura ergueu as sobrancelhas; em seguida, silenciou-se - não tinha como debater os argumentos de Gil.

- A conversa está muito boa, mas... – dizia Adam, chamando a atenção de ambos para si -... um problema foi resolvido, mas ainda falta um...

Naquele momento, Gil e Laura percebem que a porta principal do apartamento estava sendo forçada com maior gravidade.

- O que faremos? – perguntou Laura

Gil olhou de um lado para o outro.

- Só tem um jeito.

Gil e Laura se encontravam na janela do apartamento. Seguravam-se como podiam. Tinham o intuito de subir até o topo. Segundo Gil, ali provavelmente seria o ponto mais difícil de os mendigos chegarem.

Laura começou a subir, escalando o prédio como podia. Eram apenas três andares – ou seja, precisava subir apenas um andar para se chegar ao topo. Gil disse a ela para não olhar para baixo, não olhar para o inferno que se encontrava no chão – e nem perceber que havia mendigos que tentavam escalar o prédio.

- Vamos, Adam! – gritou Gil. Adam ainda segurava a porta principal do apartamento.

Este soltou a porta e correu a toda velocidade em direção à janela. A porta foi arrombada com extrema facilidade. Os mendigos começaram a adentrar no apartamento, embora ainda tinham dificuldade de ultrapassar o sofá e os móveis.

- Vamos! – gritou Gil, para Adam. Este chegou à janela e ambos começaram a escalar o prédio, logo atrás de Laura.

Os mendigos rapidamente chegaram à janela. Tentaram segurar a perna de Adam, mas este conseguiu desvencilhar-se, antes de chutar a cabeça de um mendigo, jogando-o para dentro do apartamento.

Laura, Gil e Adam começam a escalar o prédio. Tinham dificuldades severas, uma vez que o edifício não tinha curvas propícias para tal feito. O trio escorrega constantemente com os braços ou pernas e acabava por esfolar parte da pele, próximo do membro que escorregava, no prédio.

Os mendigos do chão escalavam o prédio, com extrema facilidade, como se o edifício propício pro ato fosse. Os mendigos existentes no apartamento também estavam se preparando para escalar o prédio.

Ao ouvir um barulho oriundo de debaixo dela, Laura fitou o que se encontrava no local. Fitou os mendigos subindo o prédio com extrema facilidade.

- Não vai dar tempo. Não conseguiremos! – disse, em tom de desespero

- Laura, não perca a concentração. – gritou Gil, percebendo a ação da garota

Repentinamente, para surpresa de todas, eis que, ao olhar para baixo e entrar em tom de desespero, Laura perdeu o foco e a concentração, fazendo assim suas mãos soltarem a parede do edifício. Sem as mãos ajudando a apoiar a garota no local, os pés deslizam com facilidade, jogando-a edifício abaixo.

A garota rapidamente atravessou o pouco espaço compreendido entre ela e seus amigos, antes de os mesmos reagirem à sua queda.

- Laura! – gritou Gil, quando esta já se encontrava abaixo dele.

Gil saltou para baixo, desprendendo-se da parede. Adam surpreende-se com a ação do amigo e o segura pela perna, deixando-o de ponta-cabeça. O rapaz conseguiu segurar Laura por um de seus braços, muito fugazmente. A mão de Laura suava e deslizava pelo interior da mão de Gil. Em questão de segundos, a mão de Laura deslizou por todo o interior da mão do rapaz.

- Laura! – gritou Gil, enquanto Laura, desesperada, gritando por ajuda, caía em toda velocidade em direção à horda de mendigos. Esta estava com o braço esquerdo levantado, talvez em alusão a um último fio de esperança, por Gil estar com o braço direito igualmente estendido.

[EM BREVE A 2ª PARTE]