Corpo Que Sangra

Do alto de uma colina. É possível vislumbrar pássaros negros com asas curtas, voando ao redor de corpo putrefatos. O fogo extinto revela cinzas de ossadas mal enterradas. Tudo é paz no corredor de jazigos, onde os mortos vestem-se de túmulos. A luz solar deixa de brilhar para que os uivos sejam abraçados pela madrugada lunar. Cada estaca carrega o fardo de suportar o peso do cadáver que lhe foi ofertado, servindo de banquete a moscas vorazes. Lobos rosnam em volta do braço amputado, disputando o pequeno desjejum. A brisa cobre o lago congelado, com afogados petrificados no fundo, formando um espelho tumular. Aquele som de galhos estalando, ao caminhar oculto. Pés descalços tateiam cada folha, procurando o apoio mais confortável. Só existe a morte. Em todos os lados.

Um rosto. Desnudo de peles. Os dentes pontiagudos rangem. Cada dedo decepado poderia formar um exército de excluídos. A distância facilita o deserto. Alguém pede socorro e só tem como resposta o eco. Fotografias revelam pistas deixadas em outras épocas. Sentado sobre as próprias pernas e raspando os cabelos com uma lâmina cega, cortando o couro cabeludo e deixando porções significativas de pelos. O disparo corta o silêncio na velocidade do projétil. Um estrondo que explode o crânio, fazendo um sujeito tombar sobre um monte de folhas secas. Vai demorar até o galo cantar. Por isso o desejo de um abrigo, na angústia de mãos calejadas. A bíblia queima. Apenas alguns versículos guardados, para serem enrolados na confecção de um baseado. A seda fina e o resto de cannabis que acende a brasa e provoca um sinal de fumaça. Com o estilete esfola o próprio pênis, deixando as peles penduradas, feito um copo de plástico despedaçado.

Bêbados bebem o sangue de bebês mortos e empilhados. A lâmina de um machado logo desvenda o que a caixa craniana tenta esconder. Lesmas rastejam sobre o decapitado. Os abutres não conseguem dar conta da fartura e seguem no solo, sedentários e obesos demais para levantarem voo. Apenas um ceifador, que ergue a foice introduzida no baixo-ventre, fazendo a lâmina deslizar até o queixo. Com o pique da tesoura alarga as risadas dos rostos sérios dos mortos. Os lobos se alimentam das vítimas dependuradas, começando pelos pés. O chorume dos corpos escorre fossa adentro. Padres são empalados com suas suntuosas batinas, que tremulam ao sabor dos ventos. Um cristo aqui é apenas mais um podre cadáver. A neve, sempre púrpura, faz do inverno um tapete vermelho.

Animais esfolados são abandonados junto aos esquartejados, para que outros carnívoros possam ter o direito de escolha. Cadeados pequenos lacram os lábios de bocas esfomeadas, que são deixadas diante dos moribundos. Um diabo caminha entre os suplicantes. Na verdade não parece ser nenhuma demônio. Seu corpo é vermelho devido ao excesso de sangue que carrega. Seu traje único é alimentado por novas vítimas. Talvez seja mesmo o diabo. Os olhos escuros se salvaram da vermelhidão. Anda destemido por entre a selvageria. Sem nome e sem época. As unhas grossas de tanto cavar. Parecem mais cascos. No meio da escuridão, dois cornos alguns dizem poder avistar. Um alucinado inclina o corpo sem parar, sentado próximo a uma caverna, dizendo uma frase repetidas vezes:

­- O Diabo é meu pastor e nada me faltará!

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 16/11/2014
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