Da infância à magia

Manhã calma...
As crianças brincam e as mães se esgoelam com seus repertórios de clichês:  - Menino não faça isso! Filho, não faça aquilo!
E nós, pobres criaturas indefesas e inocentes, somos apenas crianças sendo crianças.
Almoço calmo...
Arroz com bife acebolado, ao molho de feijão preto, com cobertura de batata frita.
- Hummm... batata frita! Adora batata frita!
Tarde calma... ou nem tanto assim.
Cumprimos afoitamente o dever constitucional de nos divertirmos e gargalharmos, correndo prum lado e pro outro freneticamente, até não aguentarmos mais, e num relance dizemos as palavras mágicas – isola – com os dedos cruzados; e tudo resolvia-se sem delongas. O mundo dos adultos não poderia ser tão simples assim?!
Nossas mães? Gritam sem parar! Coro na bunda de Felipinho, o mais arteiro da turma.
Sol à pique, vontade de cagar; maior era a vontade de pegar a pipa “avoada”, mesmo com a freada na cueca.
As três da tarde os ponteiros do relógio se aproximavam, 57, 58, 59, tac.
A brincadeira para, geral corre pra calçada, más não era pique-alto, era medo dela...
- A bruxa tá vindo, corre negada!
Vestida de preto até os pés, nariz enorme (verruga não tinha, era real, nada de conto de fadas), cabelos lisos e brancos, chapéu pontudo, vassoura de palha e uma trouxa de pano amarelada pelo tempo.
Seguiu rua acima, morro acima, mata a dentro. Sem palavra alguma dizer, sem hesitar, más seguindo em frente.
De medo, mãe não tinha mais, só nas janelas. A gurizada gritava:
- Bruxa! Bruxa! Bruxa feia!
Eu borrado de meio ou cheio de pena, nem sei ao certo, dava cascudos em uns e chutes em outros, insistindo:
- Cala a boca idiota! Fecha essa matraca!
Três e três, a bruxa velha cruza comigo, me olha de canto de olho, sem nem virar a cabeça. Seguiu rua acima, morro acima, mata adentro.
Noite calma... hora de dormir, ou quase.
Os cães uivavam em uníssono, repetidas vezes:
- Auuuuuuuuuuuh... auauau... auuuuuuh...
- Quem dorme com esta barulheira, cachorros desgraçados. Eu ainda mato esses danados! - dizia meu pai, morto de sono, após a labuta diária.
Madrugada calma... quem sabe.
“Pesadelos, pesadelos, que aflição!”
Revivi a cena de ontem. A velha bruxa subindo a ladeira de casa, enquanto gritavam:
- Bruxa! Bruxa! Bruxa feia!
Remexo-me na cama sem descanso, suando frio; ela então passa por mim, dessa vez para enquanto fita diretamente em meus olhos, dá um sorriso sem dentes (a essa altura já tinha me mijado todo) e me diz:
- Obrigada!
E foi adiante rua acima, morro acima, mata adentro. Até sua presença desaparecer completamente. De tempo em tempo, me pergunto, quem era ela afinal?
Agora é só uma boa lembrança... da velha infância!